"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2020

Jurisprudência 2020 (105)


Seguradora; legitimidade processual;
parte principal; parte acessória*


I. O sumário de RG 21/5/2020 (2075/19.0T8VCT-A.G1) é o seguinte:

1. Salvo convenção ou disposição da lei em sentido contrário, o terceiro que seja titular duma relação jurídica conexa carece de legitimidade para intervir como parte principal. Essa ilegitimidade impede que seja directamente demandado ou a sua participação por via dos incidentes de intervenção espontânea ou provocada previstos nos artigos 311º e 316º do CPC, só podendo intervir como interveniente acessório ao lado do réu, circunscrevendo-se essa intervenção à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, nos termos do nº2 do artigo 321º do Código de Processo Civil.

2. À luz do artigo 146º, nº1, do RJCS o lesado tem o direito de usar da acção directa contra a seguradora em todos os seguros obrigatórios, e nos seguros facultativos nas circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3, do artigo 140º, isto é, se esse direito estiver previsto no contrato de seguro ou, inexistindo essa previsão, se o segurado tiver informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador;

3. No caso, sendo de natureza facultativa os contratos de seguro mediante os quais a ré transferiu para a seguradora a responsabilidade civil emergente dos serviços financeiros/profissionais prestados pelos promotores por si designados e a decorrente da sua actividade, e não se verificando as específicas circunstâncias dos nºs 2 e 3, do artigo 140º do RJCS, a seguradora chamada só pode participar na acção na qualidade de interveniente acessória ao lado da ré nos termos do nº2 do artigo 321º do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente pretende que a companhia de Seguros ... Limited-Sucursal em Portugal seja admitida a intervir nestes autos como parte principal nos termos do artigo 316º do CPC, alegando que, pelo contrato de seguro titulado pela apólice ..., transferiu para essa seguradora a responsabilidade civil emergente dos serviços financeiros/profissionais prestados pelos promotores por si designados; e que, por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº. C03140004 transferiu a sua responsabilidade civil emergente da actividade por si exercida.

Sobre uma questão similar, no acórdão proferido a 23.01.2020 no processo 3743/18.9T8VCT-A este colectivo decidiu em sentido contrário ao do pugnado pelo recorrente, não havendo razão para alterar essa posição, que se passa a transcrever:

«Salvo convenção ou disposição da lei em sentido contrário, o terceiro que seja titular duma relação jurídica conexa carece de legitimidade para intervir como parte principal – essa ilegitimidade impede quer a demanda directa quer a sua participação nessa qualidade por via dos incidentes de intervenção espontânea ou provocada previstos nos artigos 311º e 316º do CPC - só podendo intervir como interveniente acessório ao lado do réu, circunscrevendo-se essa intervenção à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, nos termos do nº2 do artigo 321º do Código de Processo Civil.

Como refere Salvador da Costa “o que verdadeiramente parece distinguir a intervenção principal provocada da intervenção acessória provocada é a real posição do interveniente relativamente à relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial, pois se o chamamento daquele se basear na relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial estaremos perante o incidente de intervenção principal provocada, ao passo que se o chamamento se estribar numa relação jurídica conexa com aquela já se tratará do incidente de intervenção acessória provocada” (incidentes da instância – p. 117/118).

À luz do artigo 146º, nº1, do RJCS o lesado tem o direito de usar da acção directa contra a seguradora em todos os seguros obrigatórios, e nos seguros facultativos nas circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3, do artigo 140º, ou seja, se esse direito estiver previsto no contrato de seguro ou, inexistindo essa previsão, se o segurado tiver informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador. Não se verificando essas específicas circunstâncias, a existência do contrato de seguro facultativo apenas viabiliza a intervenção acessória da seguradora nos termos supra enunciados (nº2 do artigo 321º), pelo que se entende ser correcta e bem fundada a solução plasmada na decisão recorrida, que vai de encontro à orientação da doutrina – cfr. José Vasques, in Lei do Contrato de Seguro, 2ª edição, pág. 481 e ss, e Abrantes Geraldes, no citado estudo «O Novo Regime Do Contrato de Seguro, Antigas e Novas Questões».

O recorrente cita o acórdão desta Relação de 09-07-2015 (do mesmo Relator), onde a solução defendida é no sentido da admissibilidade da intervenção principal da seguradora, sucede que a situação aí tratada reportava-se a um.. seguro obrigatório (Decreto-Lei 279/200, de 06.10, que aprovou o regime jurídico das unidades privadas de saúde)."

*III. [Comentário] Convém ter presente os seguintes preceitos do RJCS:

CAPÍTULO II 
Parte especial 

SECÇÃO I 
Seguro de responsabilidade civil 
SUBSECÇÃO I 
Regime comum

Artigo 140.º
Defesa jurídica 

1 - O segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ele tenha assumido, suportando os custos daí decorrentes. 

2 - O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
 
3 - O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador. 

4 - Quando o segurado e o lesado tiverem contratado um seguro com o mesmo segurador ou existindo qualquer outro conflito de interesses, o segurador deve dar a conhecer aos interessados tal circunstância. 

5 - No caso previsto no número anterior, o segurado, frustrada a resolução do litígio por acordo, pode confiar a sua defesa a quem entender, assumindo o segurador, salvo convenção em contrário, os custos daí decorrentes proporcionais à diferença entre o valor proposto pelo segurador e aquele que o segurado obtenha. 

6 - O segurado deve prestar ao segurador toda a informação que razoavelmente lhe seja exigida e abster-se de agravar a posição substantiva ou processual do segurador. 

7 - São inoponíveis ao segurador que não tenha dado o seu consentimento tanto o reconhecimento, por parte do segurado, do direito do lesado como o pagamento da indemnização que a este seja efectuado. [....]


SUBSECÇÃO II 
Disposições especiais de seguro obrigatório

Artigo 146.º
Direito do lesado 

1 - O lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador. 

2 - A indemnização é paga com exclusão dos demais credores do segurado. 

3 - Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, não pode ser convencionada solução diversa da prevista no n.º 2 do artigo 138.º
 
4 - ... 

5 - Enquanto um seguro obrigatório não seja objecto de regulamentação, podem as partes convencionar o âmbito da cobertura, desde que o contrato de seguro cumpra a obrigação legal e não contenha exclusões contrárias à natureza dessa obrigação, o que não impede a cobertura, ainda que parcelar, dos mesmos riscos com carácter facultativo. 

6 - Sendo celebrado um contrato de seguro com carácter facultativo, que não cumpra a obrigação legal ou contenha exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, não se considera cumprido o dever de cobrir os riscos por via de um seguro obrigatório."

MTS