"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/11/2020

Jurisprudência 2020 (91)


Execução fiscal; penhora; 
habitação própria e permanente; reclamação de créditos*


1. O sumário de STJ 23/1/2020 (1303.17.0T8AGD.B.P1.S1) é o seguinte:

I. Da conjugação do disposto no artigo 671.º, n.º 2, alínea a), com o preceituado no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), ambos do Código de Processo Civil, resulta que pode ser objeto de revista o acórdão da Relação que aprecie decisão interlocutória sobre questão de natureza adjetiva quando o mesmo «esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».

II. A ratio legis da norma do artigo 794º, nº1 do Código de Processo Civil, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa relação de dinâmica processual ou, pelo menos, a possibilidade do dinamismo da execução em que primeiramente ocorreu a penhora sobre o mesmo bem e em que o credor deve fazer a reclamação do seu crédito.

III. Não está nessa situação de dinamismo processual a execução fiscal em que a Autoridade Tributária está impedida, nos termos do disposto no artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, de promover a venda do imóvel penhorado por este constituir a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.

IV. Tendo sido suspensa, nos termos do disposto no artigo 794º, nº1 do Código de Processo Civil, a execução comum em que foi penhorado imóvel do executado destinado exclusivamente a sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar e sobre o qual incide penhora com registo anterior realizada em execução fiscal e encontrando-se esta execução parada por a Autoridade Tributária não poder promover a venda deste imóvel, em virtude do impedimento legal constante do artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, impõe-se determinar o levantamento da sustação da execução comum, que deve prosseguir os seus termos, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos na execução comum.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] o objeto do presente recurso prende-se única e exclusivamente com a questão de saber se, quando em execução comum for penhorado imóvel que constitua a casa de morada de família do executado e sobre ele incida penhora com registo anterior realizada em execução fiscal, não podendo o imóvel ser vendido na execução fiscal em virtude do estabelecido na Lei nº 13/2016, há, ou não, lugar à suspensão da execução cível nos termos do art. 794º, nº1 do CPC.

Trata-se de questão que surgiu com a entrada em vigor, em 24 de maio de 2016[...], da Lei nº 13/2016, de 23 de maio, que tendo por objetivo «proteger um direito essencial dos cidadãos, com maior relevância social, no campo do direito à habitação, posto em causa quando, num processo de execução fiscal, a habitação é objeto de venda judicial por iniciativa do Estado, por vezes em razão de quantias irrisórias face ao valor do imóvel »[...], estabeleceu, no seu art. 1º, que «A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado» e, no seu art. 4º, nº1, que «Quando haja lugar a penhora ou execução de hipoteca, o executado é constituído depositário do bem, não havendo obrigação de entrega do imóvel até que a sua venda seja concretizada nos termos em que é legalmente admissível.», permitindo, deste modo, que o devedor permaneça na sua habitação enquanto permanecer o impedimento legal à realização da venda do móvel.

Mas, para além de tudo isto, introduziu várias alterações ao Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), dando, nesta matéria, uma nova redação ao nº 5 do art. 219º, que passou a estabelecer que «a penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições prevista no artigo 244º » e ao artigo 244º, cujo nº 2 passou a dispor que «Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim».

Assim, ainda que, nos processos de execução fiscal, a casa de morada de família do executado constitua um bem suscetível de penhora (cfr. art.219º, nº1 do CPPT), certo é que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) encontra-se impedida de, nestes processos, promover a venda judicial desse imóvel, pois, tal como refere José Henrique Delgado de Carvalho[In “ As Alterações Introduzidas pela Lei nº 132/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no Concurso de credores”, acessível in www.blogippc.blogspot.com.], foi vontade do legislador «impedir situações de desestruturação familiar em consequência da venda forçada da habitação própria, quase sempre associadas a contextos de desagregação social motivados pelo desemprego ou pela fragilidade socioeconómica dos agregados familiares, ocorrendo essa venda por vezes em razão de quantias irrisórias face ao valor do imóvel». [...]

Certo é que o legislador concedeu maior na proteção da casa de morada de família no processo de execução fiscal do que no processo de execução comum, pois, não obstante inexistir, num e noutro processo, qualquer obstáculo à realização da penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, a verdade é que, enquanto o art. 244º, nº 2 do CPPT, na redação introduzida pela Lei nº 13/2016, impede a Autoridade Tributária e Aduaneira, no processo de execução fiscal, de promover a venda daquele imóvel para satisfação de um crédito fiscal, no processo de execução comum não existe um tal impedimento, apenas se admitindo a suspensão da venda nas situações enunciadas nos citados arts.704º, nº 4, 733º, nº 5 e 785º, nº 4, todos do CPC, como as restrições à realização da venda.

Mas porque a proibição da venda prevista no nº 2 do art. 244º, do CPPT vale apenas e tão só nas execuções instauradas para cobrança de créditos do Estado, de natureza fiscal e garantidos por penhora, sendo inoponível aos credores comuns do devedor e porque, no caso de pluralidade de penhoras sobre o mesmo bem impõe-se observar o disposto no art. 794º, nº1 do CPC, há que reconhecer a dificuldade na articulação destes dois preceitos sempre que, em execução comum for penhorado imóvel que constitua a casa de morada de família do executado e sobre ele incida penhora com registo anterior realizada em execução fiscal, não podendo, por isso, o imóvel ser vendido na execução fiscal em virtude do estabelecido no nº 2 do citado art. 244º.

Daí assumir especial relevância a questão de saber se, nestas situações, há, ou não, lugar à suspensão da execução cível nos termos do art. 794º, nº 1 do CPC, o que implica um esforço interpretativo no sentido de compatibilizar o preceituado neste artigo com o estabelecido no art. 244º, nº 2 do CPPT. 

A solução para esta questão, está, porém, longe de ser pacífica, tendo-se formado a este respeito, no contexto da jurisprudência, duas correntes.

Uma delas, estribada nas reflexões de José Henrique Delgado de Carvalho[In “ As Alterações Introduzidas pela Lei nº 132/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no Concurso de credores”, acessível in www.blogippc.blogspot.com], afasta uma interpretação literal do art. 244º, nº 2 do CPPT e defende uma interpretação restritiva deste preceito no sentido da sua inoponibilidade ao concurso de credores na execução fiscal, ficando a sua aplicação limitada aos casos em que a Autoridade Tributária seja o único credor interveniente no processo de execução fiscal.

Ou seja, segundo esta tese, impõe-se interpretar este artigo no sentido de que, em caso de penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, o mesmo impede a Autoridade Tributária de promover a venda desse bem, mas já não impede que, uma vez sustada a execução comum nos termos do disposto no art. 794º, nº1, do CPC, o credor que tenha reclamado o seu crédito no processo de execução fiscal, requeira o prosseguimento da execução e promova, neste processo, a venda do referido imóvel.

E isto, quer porque, no dizer dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.10.2017 (processo nº 249/13.6TBSPS-A.C1) e de 08.04.2019 (processo nº 1325/16.9T8ACB.C1) [...] «este credor se encontra numa situação similar à prevista no art. 850º, nº 2 do CPC, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias», quer porque, na expressão dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 08.03.2019 (processo nº 11128/11.1TBVNG-C.P1) e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.11.2019 (processo nº 7389/17.0T8CBR-A.C1) [...], não contendo o CPPT uma norma idêntica à prevista no nº 2 do art. 850º do CPC, estamos perante « uma lacuna que terá de ser suprida por interpretação analógica, até porque segundo o disposto no art. 246º, nº1 do CPPT “ Na reclamação de créditos observam-se as disposições do Código de Processo Civil, excepto no que respeita à reclamação da decisão de verificação e graduação, que é efetuada exclusivamente nos termos dos artigos 276º a 278º deste código” » .

Perfilharam esta tese, para além dos supra indicados arestos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.05.2019 (inédito)[Acessível in www.blogippc.blogspot.com], sustentando que o disposto n art. 265º, nº 3 do CPPT, não proíbe a realização da venda no processo de execução fiscal para pagamento de créditos não fiscais. 

Uma segunda corrente, que se apresenta como maioritária, e que, tal como nos dá conta o recente Acórdão da Relação de Lisboa, de 22.10.2019 (processo nº 2270/07.4TBVFX-B.L1)[...], assenta, fundamentalmente, no seguintes argumentos:

«i.- A ratio legis da norma do art.º 794º, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual;

ii.- Atento o teor taxativo do nº 2 do art. 244º do CPPT (“não há lugar à realização de venda”), o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, independentemente de ser requerida por qualquer credor comum;

iii.- O CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, não tem norma equivalente ao art. 850º, nº 2, do Código de Processo Civil;

iv.- Estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no art.º 794º, nº1, que tem como pressuposto a ausência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução fiscal e venda do bem penhorado;

v.- O art.º 244º do CPPT encontra-se inserido na Secção VIII, sob a epígrafe “Da convocação dos credores e da verificação dos créditos”, o que constitui um elemento sistemático de interpretação que não pode ser ignorado, donde se infere que nada vale reclamar na execução fiscal o crédito se a sua satisfação só poderia ser obtida pela venda do imóvel hipotecado, venda que está expressamente interdita na execução fiscal.

vi.- A regra da preferência resultante da penhora (art. 822º do Código Civil) não pode impedir a venda do imóvel no processo onde a penhora é posterior, visto que a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução (art. 786º), sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir».

Subscreveram esta tese, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.09.2017 ( processo nº 1420/16.4T8VIS-B.C1); da Relação de Évora, de 12.07.2018 (processo nº 893/12.9TBPTM.E1); da Relação de Guimarães, de 17.01.2019 (processo nº 956/17.4T8GMR-C.G1); da Relação de Lisboa, de 07.02.2019 (processo nº 985/15.2T8AGH-A.L1); da Relação de Guimarães, de 23.05.2019 (processo nº 2132/17.7T8VCT-B.G1); da Relação de Évora, de 30.05.2019 (processo nº 402/18.6T8MMN.E1); da Relação de Guimarães, de 30.05.2019 (processo nº 2677/10.0TBGMR.G1); da Relação de Lisboa, de 12.09.2019 (processo nº 1183/18.9T8SNT.L1) e da Relação do Porto, de 22.10.2019 (processo nº 8590/18.5T8PRT-B.P1) [...].

O acórdão recorrido perfilhou esta segunda tese, sustentando, no essencial, que «tem de fazer-se uma interpretação restritiva do mencionado art.º 794.º n.º 1 do C.P.C. no sentido em que a sustação da execução apenas tem lugar quando o bem penhorado foi objecto de penhora anterior noutro processo executivo que possa prosseguir com a sua venda, sob a pena de se estar a comprimir de forma desproporcionado o direito do credor, que encontra no património do devedor a garantia do seu crédito e tem a expectativa da tutela do seu direito através do mesmo, com a possibilidade de submeter à execução todos os bens do devedor que nos termos da lei substantiva respondem pela dívida exequenda, conforme estabelece o art.º 735.º n.º 1 do C.P.C.» e concluindo que «em face da situação concreta verificada, não há lugar no caso à sustação da execução, nos termos do art.º 794.º n.º 1 do C.P.C., devendo a mesma prosseguir os seus termos com a venda do imóvel penhorado, dando-se a possibilidade à Fazenda Nacional de reclamar os seus créditos na execução comum, se assim o pretender, para deles ser paga no lugar em que venham a ser graduados, impondo-se a revogação do despacho recorrido».

Cientes de que ambas as teses comportam dificuldades de articulação e harmonização entre o regime do processo de execução fiscal previsto no Código de Procedimento e Processo Tributário e o regime do processo de execução comum previsto no Código de Processo Civil, na busca da melhor solução, não deixaremos de perfilhar, de harmonia com o disposto no art. 9º do C. Civil, aquela que melhor se coaduna com o espírito da lei e melhor garante a unidade do sistema jurídico e satisfaz os interesses protegidos por cada uma das normas dos arts. 244º, nº 2 do CPPT e 794º, nº1 do CPC.

Assim, no confronto destas duas correntes, temos por certo ser na primeira das tese que se erguem maiores obstáculos no alcance de um maior equilíbrio entre a salvaguarda do direito à habitação do cidadão (devedor fiscal) e da respetiva família, consagrado no art. 65º da Constituição da República Portuguesa e a tutela dos direitos dos credores comuns deste devedor a obterem a satisfação dos seus créditos, decorrente do direito de propriedade privada constitucionalmente garantido no art. 62º, nº1 da CRP.

E estas dificuldades surgem dadas as especificidades da reclamação de créditos no processo de execução fiscal.

É que se é certo que, ao facto de o CPPT não conter uma norma idêntica à prevista no nº 2 do art. 850º do CPC, sempre se poderia contrapor o argumento de que, estando-se perante um caso omisso, seria de aplicar aquela norma, visto dispor o art. 2º , al. b) do CPPT, que ao procedimento e processo judicial tributário, são aplicáveis, subsidiariamente, « as disposições do Código de Processo Civil», estabelecendo, expressamente, o art. 246º, nº 1 do mesmo código que «na reclamação de créditos observam-se as disposições do Código de Processo Civil, excepto no que respeita à reclamação da decisão de verificação e graduação, que é efetuada exclusivamente nos termos dos artigos 276º a 278º deste código», a verdade é que já se decidiu nos Acórdãos do STA, de 27.06.2007 (recurso nº 0446/07) e de 03.02.2016 (processo nº 087/15) [...] que, não tendo a venda dos bens penhorados, o credor reclamante, não pode requerer o prosseguimento da execução ao abrigo do art. 920º, nº 2 (atual art. 850, nº 2 ), do Código de Processo Civil, por tal faculdade, no caso concreto, não ser aplicável ao processo de execução fiscal.

Acresce que, tal como se dá conta no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30.05.2019 (processo nº 2677/10.0TBGMR.G1), não deixa de ser defensável o entendimento de que constitui «uma flagrante ilegalidade a Autoridade Tributária proceder à venda na execução-fiscal do imóvel que constitua casa de morada de família ainda que a coberto do concurso de credores (cfr. art. 8º, nº 2 , al. e) da LGT)».

Mas, mesmo pondo de parte estas dificuldades, que, na prática, podem comprometer ou, pelo menos, tornar muito onerosa a possibilidade de cobrança do respetivo crédito por parte dos credores comuns reclamantes, e cientes de que o impedimento da Autoridade Tributária em realizar, no processo de execução fiscal, a venda da casa de morada de família do devedor de créditos fiscais, previsto no art. 244º, nº 2 do CPPT, é inoponível aos credores comuns, julgamos que a chave para a resolução da questão colocada nos presentes autos, radica na interpretação a dar ao art. 794º, nº1 [...], do CPC, que estabelece que:

«Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga».

Assim, recaindo sobre o mesmo bem duas ou mais penhoras concretizadas em processos executivos diferentes, susta-se o processo em que a penhora se efetuou em segundo lugar, ainda que a execução respetiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora, pois, como já ensinava Alberto dos Reis, a propósito do art. 871º do anterior Código de Processo Civil, «o que a lei não quer é em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar »[In, “Processo de Execução” , vol. II, Reimpressão, Coimbra , 1985, pág. 287].

No mesmo sentido, refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.10.2004 (processo nº 0454742 ) [...], que « a razão de ser do preceituado no normativo citado, filia-se no facto de a liquidação do património do executado ser única, tendo por base o processo executivo instaurado em primeiro lugar, pois de outro modo, correr-se-ia o risco de poder haver dupla venda ou adjudicação dos mesmos bens».

Sublinha, todavia, este mesmo acórdão que «da “ratio legis” do preceito, a que subjazem razões de certeza jurídica e protecção, quer do devedor executado, quer do(s) credor (es) exequente (s), resulta que, para que o preceito tenha conteúdo útil, a 1ª execução deva estar, senão em movimento (…), pelo menos em fase processual de onde a sua prossecução seja possível, à luz da tramitação processual prevista », pelo que «a execução mais antiga [ onde o credor-exequente que instaurou a 2ª execução, deve ir reclamar os seus créditos em virtude da sustação] tem de estar em posição de poder prosseguir».

Ou seja, «ao conferir a possibilidade de reclamação do seu crédito, por via da execução ter sido suspensa», ao abrigo do art. 794º, nº1 do CPC, «a lei pretende que se pondere a relação dinâmica das execuções ou, quando muito, a possibilidade do dinamismo da mais antiga» 

Dito ainda de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 09.06.2005 (processo nº 05B1358) [...], pretendeu o legislador «aproveitar o decurso de duas execuções em plena actividade na sua tramitação e onde foi penhorado o mesmo bem, remetendo o modo de pagamento coercivo da obrigação para aquele processo que maior funcionalidade e maior comodidade concede ao exequente e sem causar dano ao executado.

Por isso é que só se justificará a reclamação do crédito exigido na execução sustada, desde que a execução para onde se remete a reclamação desse crédito esteja em condições de poder efectivar, com a usual normalidade, esta assinalada prerrogativa do credor exequente».

Daí que, nesta perspetiva, seja de entender, por um lado, que só se verifica utilidade no regime do citado art. 794º, nº1, se ambas as execuções se encontram a correr termos, pois só assim é que o exequente/ reclamante pode obter o pagamento dos seus créditos por via executiva.

E, por outro lado, que suspensa ou por qualquer modo “parada” a execução na qual o credor exequente deve ir reclamar o seu crédito, por força do art. 794º, nº1 do CPC, deve prosseguir a instância da execução que havia sido sustada, nos termos deste mesmo artigo.

Ora, a verdade é que, encontrando-se a execução fiscal “parada” em consequência do regime previsto no art. 244º, nº 2 do CPPT, que impede a Autoridade Tributária de promover a venda, nesse processo, do imóvel penhorado por o mesmo ser a casa de morada de família do executado, não se vê razão para interpretar o citado art. 794º, nº1 de modo diferente, pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido ao decidir que «em face da situação concreta verificada, não há lugar no caso à sustação da execução, nos termos do art.º 794.º n.º 1 do C.P.C., devendo a mesma prosseguir os seus termos com a venda do imóvel penhorado, dando-se a possibilidade à Fazenda Nacional de reclamar os seus créditos na execução comum, se assim o pretender, para deles ser paga no lugar em que venham a ser graduados, impondo-se a revogação do despacho recorrido».

*3. [Comentário] a) Em termos práticos, a oposição entre as duas orientações em confronto não é grande, porque tudo se resume a saber em que execução -- se na fiscal, se na cível -- se vai realizar a venda do imóvel penhorado.

Certo é, no entanto, que, também sob o ponto de vista prático, é muito mais simples considerar que o disposto no art. 244.º, n.º 2, CPPT não impede que o particular reclamante venha a obter a satisfação do seu crédito na execução fiscal (que está -- se assim se pode dizer -- "activa") do que entender que este particular está impedido de obter essa satisfação nessa execução e que, por isso, não ocorre a suspensão da execução cível determinada pelo estabelecido no art. 794.º, n.º 1, CPC. No sentido preferível decidiu RC 25/5/2020 (367/16.9T8CVL-C.C1).

b) A latere, note-se que, se se verificar a venda do imóvel na execução fiscal, nada obsta a que o crédito da Autoridade Tributária seja pago de acordo com a sua graduação. O que o regime legal impede é que a Autoridade Tributária promova a venda do imóvel para pagamento de um crédito próprio; mas nada obsta a que, uma vez reclamado um crédito na execução fiscal e nela vendido o imóvel, o crédito da Autoridade Tributária seja pago. O regime legal visa proteger o devedor perante a Autoridade Tributária, e não a favorecer um credor desse mesmo devedor através da renúncia à satisfação do crédito fiscal por essa Autoridade.  

MTS