"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/12/2024

Jurisprudência 2024 (71)


Recurso para uniformização de jurisprudência;
oposição de julgados; excepção de caso julgado*


1. O sumário de STJ 19/3/2024 (3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1-A) é o seguinte:

I- Para se aferir da admissibilidade do recurso de Uniformização de Jurisprudência é necessário que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada contradição assuma carácter determinante fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto.

II- Não existe contradição jurisprudencial quando apesar de acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidirem questões relativas à exceção do caso julgado, no acórdão fundamento a exceção foi julgada procedente, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, foi julgada não verificada a exceção por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença proferida em primeiro lugar não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os Recorrentes/ reclamantes sustentam que a contradição jurisprudencial se verifica com a seguinte argumentação:

O acórdão fundamento decidiu a questão posta nos seguintes termos (processo n.º 1565/15.8VFR-A.S1):

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

A decisão recorrida (processo n.º 3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1, de 11-07-2023), por sua vez, determinou que:

“O caso julgado abrange toda a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é o caso julgado incide sobre a decisão como a conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (…)” mas “os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma não adquirem valor de caso julgado”

Assim “a pretendida factualidade, enquanto fundamentação de facto, autonomizada da sentença proferida no apenso E (…) não adquire, conforme o exposto o valor de caso julgado, pelo que não se mostra desenhada a existência de violação de caso julgado passível de constituir fundamento para a admissão do recurso”.

Considerando o atrás exposto sobre os requisitos da admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência no sentido de que a questão fundamental de direito em que assenta a contradição deve assumir caracter determinante para a solução do caso, ou seja, deve integrar a verdadeira ratio decidiendi e no caso presente, não se verifica, essa contradição fundamental.

Na verdade, no acórdão fundamento consta, no sumário:

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

Nas considerações gerais, sobre o caso julgado como exceção ( função negativa) e autoridade ( função positiva) para além do mais, sobre os limites objetivos do caso julgado, consta o seguinte:

“Quanto ao âmbito objetivo do caso julgado (respetivos limites objetivos), no que respeita à determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal e que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado, durante algum tempo foi dominante o entendimento de que a eficácia do caso julgado apenas abrangia a decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na pretensão reconvencional e limitada através da respetiva causa de pedir ("conceção restrita do caso julgado").

Atualmente, a posição jurisprudencial predominante reconhece, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra (cfr. R.L.J. ano 110º, p. 232) - embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença / a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão ("tese ampla") -, que, apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito enquanto limites objetivos dessa decisão), em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas.”

No entanto, estas considerações traduzem argumentos laterais e suplementares, sendo irrelevantes para a solução do acórdão fundamento, que como resulta da transcrição supra se limitou a decidir a questão de saber se havia identidade de pedidos entre a anterior ação e a ação posterior.

Por outro lado, no acórdão recorrido o cerne da fundamentação consistiu em ter-se decidido que a sentença proferida na ação de verificação de créditos, não tinha força de caso julgado relativamente aos factos nela julgados provados e, por isso, não se verificava a exceção do caso julgado, no pressuposto que o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo principal de insolvência não estava obrigado a atender à factualidade julgada provada na anterior decisão.

Assim, apesar de ambos os acórdãos se terem movido no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica (exceção/autoridade do caso julgado), no acórdão fundamento a questão foi decidida, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença de verificação de créditos não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado.

A questão fundamental de direito decidida nos acórdãos é, pois, distinta.

Os Reclamantes argumentam contra a decisão reclamada por nela constar a referência a “ factos automatizados”, sustentando não ter qualquer fundamento a distinção entre factos automatizados e não automatizados.

No entanto, como se referiu, a fundamentação determinante do acórdão recorrido em que se baseou o não conhecimento da revista por eles interposta, foi ter considerado que os factos julgados provados na sentença da ação de verificação de créditos não tinham eficácia de caso julgado.

Por outro lado, o conceito de “ factos automatizados” com referência à exceção do caso julgado, é utilizado na doutrina , nomeadamente por Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil (2ª edição), pág. 580, onde consta: “ os fundamentos de facto não adquirem quando automatizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado” e ainda Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol.II, pág. 636), que afirma: “ Os factos dados como provados como assentes na fundamentação da sentença não devem, contudo, ( uti singuli, isto é autonomizados da decisão de que são pressuposto), como abrangidos pelo caso julgado.”

Os Reclamantes sustentam ainda que no caso decidido pelo acórdão recorrido, não existem “factos automatizados” porque a primeira e a segunda decisões foram proferidas no mesmo processo (na ação de verificação de créditos e no processo principal de insolvência). Referem ainda que foram utilizados conceitos como “questões preliminares e instrumentais” e valor extraprocessual das provas, inexplicáveis e sem fundamento,

Defendem ainda que a segunda decisão ( acórdão da Relação de Guimarães) proferida no processo de insolvência, devia ter sido desconsiderada por violação do caso julgado formal, da sentença proferida na ação de verificação de créditos, do mesmo processo de insolvência.

No entanto, estes argumentos são irrelevantes, por se limitarem a manifestar o inconformismo dos Recorrentes/reclamantes com o acórdão recorrido.

Ora o objeto da presente reclamação cinge-se à questão de saber se há contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, não para se apreciar se no acórdão recorrido foi indevidamente decidido não se verificar a exceção do caso julgado.

Por último, importa referir, que do acórdão fundamento não resulta qualquer referência ainda que como mero argumento lateral ou obtier dictum que a eficácia do caso julgado abrangia a factualidade julgada provada na primeira ação, até porque não estava em causa haver identidade de causas de pedir entre a ação anterior e a posterior.

Continuamos, pois, a entender que o pressuposto da identidade da questão fundamental de direito, dirimida nos acórdãos recorrido e fundamento, se não verifica."

*3. [Comentário] Talvez se pudesse ter concluído que entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento não há verdadeira oposição:

-- No acórdão recorrido, entende-se (bem) que não há caso julgado sobre factos quando estes sejam autonomizados do silogismo judiciário que integram;

-- No acórdão-fundamento, entende-se (também bem) que o caso julgado se estende "à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

Quer dizer: em ambos os acórdãos considera-se que os factos apurados na acção só são vinculativos fora do processo enquanto integrantes do silogismo judiciário no qual foram utilizados. Por exemplo: se um contrato é nulo por se terem apurado determinados factos, estes factos não podem ser questionados quando numa outra acção se alega, com autoridade de caso julgado, a nulidade desse negócio.

MTS