"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/12/2024

Jurisprudência 2024 (73)


Juiz; pedido de escusa;
relação de vizinhança


1. O sumário de RL 9/4/2024 (1047/24.7YRLSB-8) (decisão individual) é o seguinte:

O circunstancialismo de ter sido distribuído um processo ao juiz, onde figura uma pessoa, que conhece e que verá regularmente (como os atuais habitantes do prédio onde reside), não poderá, por si só, ser motivo de escusa, já que, não materializa qualquer motivo grave, negando, aliás, o juiz, alguma perturbação na objetividade do respetivo julgamento e, nessa medida, na imparcialidade que é devida pelo julgador.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II. Conhecendo:

Pretende a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.

Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.

O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031)).

Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.

O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.

Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.

A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.

O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.

Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.

Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.

III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar, essencialmente, que foi vizinha do requerente e da requerida do processo, que coabitaram em andar situado no prédio onde habita a Sra. Juíza, casa onde, presentemente, reside o pai do requerente e a mulher deste, mas que, não teve, nem com os primeiros, nem com os segundos, outra relação que não a de cordialidade, resultante da apontada vizinhança (sendo que, quanto aos requerente/requerida e à criança, desde que deixaram de viver no prédio, não teve outro contacto).

Ora, é dever de um juiz, no exercício das suas funções, ser totalmente objetivo, cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão.

Porém, um juiz integra a comunidade onde trabalha e reside, é um cidadão como qualquer outro, pode conviver em sociedade, ter amigos, vizinhos, sem que tal possa de algum modo beliscar a sua capacidade de isenção e de administração da justiça.

O que revela [sic] é a atuação do mesmo no seu ato de julgar. 

Tudo tem de ser transparente, fundamentado e proferido com o maior distanciamento.

O circunstancialismo de lhe ter sido distribuído um processo, onde figura uma pessoa, que conhece e que verá regularmente (como os atuais habitantes do prédio onde reside), não poderá, por si só, ser motivo de escusa, já que, não materializa qualquer motivo grave, negando, aliás, a Sra. Juíza, alguma perturbação na objetividade do respetivo julgamento e, nessa medida, na imparcialidade que é devida pelo julgador.

Os juízes têm que ser intrinsecamente e extrinsecamente independentes e ter a capacidade de distanciamento suficiente para não se deixarem mover por qualquer outro interesse que não o da administração da justiça.

Aliás, a Sra. Juíza não invoca que se possa sentir parcial, mas, tão só, que receia que a sua imparcialidade não possa ser entendida exteriormente.

Mesmo perante a comunidade é importante que os cidadãos confiem nos Magistrados e na forma como desempenham as suas funções, ou seja, será uma ocasião propícia para que a Sra. Juíza revele a sua imparcialidade, criando o respeito e a confiança dos cidadãos, o que só prestigia a Justiça.

Ao julgador é exigível que adote um comportamento irrepreensível, independentemente de quem são os intervenientes processuais. É isso, aliás, o que transparece do cuidado que foi incutido na redação da pretensão que se ajuiza, formulada pela Sra. Juíza.

Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso."

[MTS]