Advogado; responsabilidade civil;
perda de chance
I. O sumário de RG 4/4/2024 (5469/19.7T8BRG.G1) é o seguinte:
1 – Da alegada conduta ilícita do réu advogado não nasce, sem mais, qualquer obrigação de indemnizar.
2 - A particularidade que ocorre na situação de “perda de chance” consiste em saber como determinar a certeza do dano e respetivo montante quando o advogado descuida o processo e a falta é contrária aos interesses do seu cliente, sendo certo que quem demanda ou é demandado tem sempre à sua frente um resultado incerto.
3 – Nestes autos, não está afirmado qualquer nexo causal entre o alegado facto ilícito – a não propositura de ação de reivindicação – e o dano que se pretende seja indemnizado – por reporte ao valor dos bens a reivindicar.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"3 - Não tendo havido qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto, e dependendo o mérito do recurso interposto integralmente dessa modificação, nos termos do art.º 608.º, nº2, aplicável ex vi n.º2 do art.º 663.º, ambos do C. P. Civil, nenhuma censura nos merece a decisão [absolutória] recorrida no âmbito da subsunção dos factos às normas legais correspondentes, temos que a apelação terá de ser julgada improcedente, mantendo-se e confirmando-se a bem elaborada sentença recorrida.
Cumpre, apenas, acrescentar o seguinte:
O pressuposto desta ação era a conduta ilícita do réu por não ter proposto a ação que o autor pretendia ver intentada e que se traduzia na reivindicação de bens móveis que alegava serem de sua propriedade.
A ação não foi efetivamente proposta e o réu demonstrou os factos alegados e que justificavam a sua conduta.
Ainda que, porém, se tivesse demonstrado a conduta ilícita do autor em não propor a ação, sempre seria improcedente esta ação.
Explicando:
A especificidade do mandato forense é a de que os atos a praticar são atos judiciais, a terem lugar no âmbito de processos judiciais (art.º 44.º, n.º 1, do C. P. Civil). Tal mandato é representativo, como resulta desta norma, à semelhança daquele que é constituído por procuração, nos termos do art.º 262.º, nº 1, do C. Civil.
Cabe ao mandatário a prática dos atos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante, nos termos do art.º 1161º, alínea a), do C. Civil.
No caso do mandato forense, a definição dos procedimentos e do conteúdo e forma dos atos a praticar na sua execução insere-se já numa esfera de autonomia profissional e independência técnica e estratégica, impostas pela tecnicidade da matéria, que deve reconhecer-se ao mandatário. É, de resto, essa tecnicidade, em conexão com a relevância axiológica ou económica das situações jurídicas, que justifica a necessidade, por vezes incontornável, da assistência de um mandatário forense na prática de determinados atos judiciais.
A prestação devida pelo mandatário é uma prestação de meios e não uma obrigação de resultado: o que ao advogado compete é atender os interesses do mandante, seu cliente, e utilizar os meios possíveis e ajustados para a sua realização.
Mas não se obriga ao sucesso da demanda.
A este propósito, Paulo Correia, em estudo publicado na Revista do Ministério Público nº 119, ano 30 (Jul-Set 2009), com o título “da responsabilidade civil do advogado pelo incumprimento dos deveres de competência e de zelo”) afirma: “aquilo que pode oferecer ao mandante são os seus conhecimentos, o seu trabalho, esforço, prudência, sagacidade e apego na satisfação da pretensão. O advogado, tal como o médico, não promete a cura do paciente, mas sim o tratamento adequado, segundo as normas de prudência, perícia, diligência e padrão de conduta ético por parte do profissional no sentido de obter os melhores resultados. Logo, não se pode imputar ao patrono nenhuma responsabilidade pelo insucesso da causa, se o mesmo agiu corretamente no patrocínio da mesma”.
Assim, não se compreendendo na obrigação de um mandatário forense a obtenção de um determinado resultado na causa em que representa o mandante, impõe-se-lhe já o cumprimento pontual e escrupuloso dos deveres consignados no respetivo estatuto, bem como todos aqueles que a lei lhe impõe, designadamente, para com os clientes. Impõe-se-lhe o estudo e o tratamento zeloso da situação jurídica em que representa o mandante, devendo usar todos os recursos da sua experiência, saber e atividade. Impõe-se-lhe assim que exerça o mandato com a diligência de um bom pai de família, na consideração da diligência do homem médio, mas também em função das especificidades inerentes ao tipo de mandato e às circunstâncias em que é executado.
Será em sede desse vínculo contratual que se situará uma eventual responsabilidade do mandatário, no caso de incumprimento da respetiva obrigação, do que resultem danos para o mandante. Estaremos, por isso, perante uma hipótese de responsabilidade contratual.
Tal como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/05/2012, in dgsi.pt, "a preterição desses seus deveres pode fazer incorrer em responsabilidade civil (art. 92º, nº 1, final, do EOA); sendo, segundo cremos, corrente a jurisprudência no sentido de que a responsabilidade do advogado pelos danos causados ao seu cliente, no âmbito e exercício do mandato forense, tem natureza contratual, uma vez que decorre da violação de deveres jurídicos emergentes do contrato com ele firmado. Nesse particular, o facto ilícito constituir-se-á do comportamento consistente na preterição de vínculos decorrente do contrato firmado (art. 798º do C. Civil); o juízo de censura presumir-se-á (art. 799º, nº 1, do C. Civil); e o prejuízo, consistente na quebra que se faça sentir na esfera do lesado, há-de ter sido adequadamente gerado por aquele comportamento (art. 563º do C. Civil)”.
Estabelece o art.º 798º do C. Civil que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
O devedor tem assim de reparar o dano causado, definindo o art.º 562º do C. Civil que deve reconstituir a situação que existia se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, sendo que esta obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não fosse lesado.
Há, pois, que verificar se, tivesse o réu interposto a ação esta teria sido procedente.
É, pois, necessário indagar da existência de um nexo de causalidade entre a conduta ilícita e culposa (se esta existisse) e o dano.
Esta questão tem sido tratada como perda de chance, conforme se refere nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2010 e 05/02/2013 disponíveis in www.dgsi.pt. em que se defende que, no domínio da responsabilidade civil contratual ou aquiliana“…a perda de chance mais não é do que uma oportunidade de obter uma futura vantagem patrimonial que se gorou. Trata-se de “imaginar” ou prever a situação que ocorreria não fora o ilícito”.
O Tribunal seguirá aqui de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2015, proc. 5105/12.2TBXL.L1.S1, in www.dgsi.pt, em que foi relator o Juiz Conselheiro Manuel Tomé Gomes, na parte em que afirma “a questão da ressarcibilidade do chamado dano por perda de chance é uma questão cuja problemática repousa na dificuldade em saber se estamos perante um dano tutelado pela nossa ordem jurídica e, em caso afirmativo, qual o critério a adotar”.
Como nesse Acórdão se refere, reportando-se a várias posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a valoração da perda de chance, “pode concluir-se que a orientação dominante da jurisprudência do SJ vai no sentido de que a perda de chances processuais não constitui um dano autónomo e da causalidade adequada, com ressalva das hipóteses em que a prova permita com elevado grau de probabilidade ou verosimilhança concluir que o lesado obteria certo benefício não fora a chance perdida”.
E continua, por reporte aos critérios balizadores dos arts.º 562.º a 566.º do C. Civil, “importa reconhecer que a responsabilidade civil no nosso direito tem como primordial a função compensatória, ou seja, a reparação do dano, condição essencial e limite da obrigação de indemnizar, ainda que dentro de tais limites se contenham funções acessórias preventivas e mesmo sancionatórias, como decorre da possibilidade de limitação da indemnização aquém do montante do dano causado, nos termos do art. 494º do C. Civil. Nessa linha é pertinente considerar que a obrigação de indemnizar tem como balizas, por um lado, o princípio da reparação integral do dano e, por outro, a proibição do enriquecimento sem causa do lesado à custa da indemnização”.
Como se refere no Acórdão citado “no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chances processuais, em vez de se partir do princípio de que o sucesso de cada ação é, à partida, indemonstrável, talvez valha a pena questionar, perante cada hipótese concreta, qual o grau de probabilidade segura desse sucesso, pois pode muito bem acontecer que o sucesso de determinada ação, à luz de um desenvolvimento normal e típico, possa ser perspetivado como uma ocorrência altamente demonstrável, à face da doutrina e jurisprudência então existentes.
Nessa linha, será de aceitar que uma vantagem perdida por decorrência de um evento lesivo, desde que consistente e séria, ou seja com elevado índice de probabilidade, possa ser qualificada como um dano autónomo, não obstante a impossibilidade absoluta do resultado tido em vista.
De resto, mesmo a jurisprudência do STJ admite a relevância de situações muito pontuais, desde que a prova permita, com elevado grau de probabilidade, ou verosimilhança, concluir que o lesado obteria certo benefício não fora a chance perdida. Esta ressalva mais não parece do que admitir afinal o dano por perda de chance na base de um juízo de probabilidade elevado e que só poderá ser aferido em cada caso concreto. O que parece discutível é se deve ser feito de forma categorial ou se em função da espécie do caso, como propendemos a admitir”.
Decorre do exposto que da alegada conduta ilícita do réu não nasce, sem mais, qualquer obrigação de indemnizar, ao contrário do que parece supor o autor, considerando os factos que foram singelamente por si alegados na petição.
A particularidade que ocorre na situação de “perda de chance” consiste em saber como determinar a certeza do dano e respetivo montante quando o advogado descuida o processo e a falta é contrária aos interesses do seu cliente, sendo certo que quem demanda ou é demandado tem à sua frente um resultado incerto.
Ora, na situação em apreço, nenhuma alegação faz o autor no sentido dessa probabilidade de sucesso da ação que viesse a propor, limitando-se a concluir que a perda da demanda resulta da sua não propositura (e só assim se justificando que o valor peticionado se reporte ao valor dos bens e alegados danos não patrimoniais).
O Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, no Proc. nº 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, de 05/07/2021, votou a seguinte jurisprudência: “o dano da perda de chance, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.
Assim, considerando a jurisprudência a que supra nos referimos, entendemos que, no caso concreto, não está alegado qualquer nexo causal entre o alegado facto ilícito – a não propositura da ação de reivindicação – e o dano que se pretende seja indemnizado – o valor dos bens a reivindicar.
O autor limitou-se a estruturar a sua pretensão no sentido de ser suficiente para exigir uma indemnização do réu Patrono, o mero facto de este ter omitido o dever de propor a ação.
Inexistem nos autos factos alegados que permitam assegurar que, caso aquela ação tivesse sido proposta, esta procederia ou, sequer, que era sério, real e muito provável o desfecho favorável da ação para o autor.
Ora, não vemos como, nem o autor alega, através da propositura da ação a mesma lograria ser procedente, demonstrando aquele que os bens que identifica lhe pertenciam, pois que para tal teria o autor de a alegar uma causa originária de aquisição do direito de propriedade sobre os bens que identifica, à qual não é feita qualquer referência, limitando-se o autor a afirmar, aqui, de forma conclusiva que os bens lhe pertenciam.
Note-se que, como bem salienta o Mm.º Juiz a quo na sentença proferida, a não propositura da ação de reivindicação com o apoio judiciário que lhe foi concedido e no âmbito do qual foi o réu nomeado como patrono, não impedia o autor de a propor, ainda que com recurso a outro pedido de apoio judiciário, depois de se verificar a caducidade da proteção jurídica concedida.
Como aí se refere “esteve, e está, sempre em tempo de intentar a pretendida ação, desde que reúna os elementos probatórios necessários para o efeito, sendo certo o decurso do prazo previsto no artº 11.º, nº 1, al. b), da Lei n.º 34/2004, apenas implica a caducidade daquela concreta proteção jurídica, concedida naquele concreto processo administrativo, nada obstando a que o autor pedisse novo apoio judiciário e procurasse intentar nova ação, reunidas, como é óbvio as condições que, no caso, não proporcionou ao réu”.
Note-se que a caducidade da proteção jurídica não se verifica pelo mero decurso do prazo de um ano sem que tenha sido instaurada a ação, como parece entender o autor, mas pelo decurso desse prazo sem a instauração da ação, “por razão imputável ao requerente”.
Quer isto dizer que a simples não propositura da ação no prazo de um ano, se fosse imputável ao réu (e não ao autor), não teria sequer conduzido à caducidade da proteção jurídica concedida.
Ora, o dano patrimonial que o autor invoca é, precisamente, e apenas, a perda dos bens, pois que peticiona a condenação do réu a pagar-lhe o valor que indica como sendo o daqueles.
Podendo, ainda hoje, ser proposta a ação de reivindicação, nunca existiria entre a sua não propositura pelo réu e a perda dos bens qualquer nexo causal, a não ser que estes tivessem sido destruídos ou estivessem danificados, facto que não foi alegado.
Quanto aos danos não patrimoniais alegados, estes não se demonstraram e, quanto a essa matéria, nenhuma impugnação da matéria de facto foi efetuada pelo autor.
Concluímos assim que, ainda que se tivessem demonstrados os factos alegados pelo autor, no que se refere ao facto ilícito que imputa réu, ainda assim não poderia esta ação ser procedente, pois que inexistia qualquer relação entre o este facto e o dano patrimonial alegadamente sofrido."
[MTS]
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