"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/12/2024

Jurisprudência 2024 (65)


Matéria de facto; apreciação
dever de fundamentação; ampliação da matéria de facto


I. O sumário de RC 5/3/2024 (2941/20.0T8VIS.C1) é o seguinte:

1. - Havendo deficit de fundamentação da convicção – como no caso de não estar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial –, deve a Relação determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido, para adequada fundamentação da convicção – a inserir na sentença – com base na prova produzida, designadamente gravações efetuadas, ou mediante repetição, se necessário, da produção da prova.

2. - Porém, sendo de reputar deficiente, obscura ou contraditória a decisão de facto, não constando do processo todos os elementos probatórios necessários à alteração dessa decisão, deve ser anulada a decisão recorrida.

3. - E se, para além disso, for necessária a ampliação da matéria de facto, a sentença deve ser anulada, com repetição parcial do julgamento, como no caso de a 1.ª instância não se ter pronunciado, em ação de cumprimento relativamente ao preço de invocado contrato de empreitada, sobre matéria articulada quanto ao contrato celebrado e seu clausulado.

4. - Não cabe à Relação, perante impugnação da decisão de facto, proceder ao aditamento à matéria assente de factos que (embora articulados) não tenham sido objeto de pronúncia/julgamento pela 1.ª instância, exceto se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada plenamente por documentos ou por confissão reduzida a escrito.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] em âmbito de fundamentação jurídica (de Direito), ainda acrescentou o Tribunal a quo:

«Tudo ponderado, e muito resumidamente, um empreiteiro reclama ser pago por uma obra que realizou, mas nem documentalmente – contrato, contrato mais aditamento, alterações, contas correntes? – nem por testemunhos se pode saber qual o preço efectivamente contratado e ou devido.
 
Por seu turno, o dono da obra invoca os costumeiros atrasos e defeitos, que efectivamente ocorreram, mas que se não pode saber quem deve, por eles, ser responsabilizado.
 
Nesta base, e efectivamente, como estatui o art.º 342º do código civil, nos seus nºs 1 e 3, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, sendo que “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”. Assim, competia à aqui autora e à ré reconvinte a prova dos factos em que basearam os seus pedidos. Não o tendo logrado, mais não resta do que proferir decisão em desconformidade com ambas as pretensões, por falta de provas.».
 
Concluindo-se, assim, genericamente, pela «falta de provas», incluindo, eventualmente, em matéria de vinculação contratual – com todo o seu clausulado –, deveria a 1.ª instância analisar cuidadosamente a prova a respeito, fosse documental ou pessoal, âmbito em que deveria fazer transparecer o seu entendimento sobre os ditos documentos, de pendor contratual, juntos pela R., mormente os de fls. 30 v.º a 33 v.º do processo físico, explicitando os motivos pelos quais neles não baseou/formou uma convicção positiva [Visto o disposto no art.º 607.º, n.º 3 a 5, do NCPCiv. – impondo-se que o juiz aprecie as provas acerca de cada facto (ou conjunto homogéneo de factos) –, as exigências de transparência e de completa fundamentação não se poderiam bastar com uma justificação da convicção sem clara/expressa referência aos factos relevantes, conexionando-os com as provas que foram decisivas para formação da convicção (positiva ou negativa) a respeito dos mesmos.]. E deveria explicitar também os motivos pelos quais a prova pessoal – de per si ou conjugadamente com a prova documental – não logrou permitir tal convicção positiva.

Porém, não o fez aquele Tribunal, termos em que, com o devido respeito, deve concluir-se pela existência de deficit de fundamentação/justificação da convicção quanto à decisão de facto [---].

Mas, desde logo, há também deficit, como visto já, quanto à própria factualidade relevante alegada, por não constar dos listados factos provados, tal como dos não provados, a dita matéria alegada quanto à vinculação contratual entre as partes, o que, por se tratar de materialidade essencial – como logo sinalizado no formal objeto do litígio e nos precisos temas da prova –, como tal, indispensável com vista à boa decisão da causa, obriga à ampliação da matéria de facto.

Ora, se aquele deficit de fundamentação ao nível da convicção quanto à decisão de facto torna deficiente e obscura a decisão da matéria de facto, este deficit referente à própria factualidade relevante alegada torna insuficiente o quadro fáctico da decisão recorrida, comprometendo a solução jurídica do litígio, termos em que se impõe a anulação da sentença em crise, seja para – desde logo – ampliação da matéria de facto, seja para, na sequência, cabal e clara fundamentação (com justificação da convicção, à luz de todas as provas pertinentes) da decisão da matéria de facto.

Dir-se-á ainda que se concorda com o entendimento explicitado no Ac. TRC de 10/05/2022 (Proc. 1932/19.8T8FIG.C1 (Rel. Emídio Francisco Santos), disponível em www.dgsi.pt [...].) quanto ao aditamento à matéria assente de factos que (embora articulados) não tenham sido objeto de pronúncia/julgamento pela 1.ª instância, podendo ler-se na fundamentação deste aresto:

«Resulta do n.º 1 do artigo 662.º do CPC combinado com a parte final da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito que o dever de a Relação reapreciar a prova produzida, formar a sua convicção e julgar provados ou não provados os pontos de facto indicados pelo recorrente só existe em relação aos factos sobre os quais se tenha pronunciado o tribunal a quo.

Na verdade, só em relação a esta pronúncia é que tem sentido dizer, como faz o n.º 1 do artigo 662.º, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Depõe a favor desta interpretação o artigo 640.º do CPC, relativos aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, ao impor ao recorrente o ónus de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
 
Se o tribunal de 1.ª instância omitir a pronúncia sobre uma determinada questão de facto e se a resposta a ela for indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão será a anulação da decisão proferida em 1.ª instância, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão. É a solução que resulta da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, na parte em que dispõe que a Relação deve mesmo oficiosamente anular a decisão proferida em 1.ª instância, quando considere indispensável a matéria de facto, combinada com a alínea c) do n.º 3 do mesmo diploma.
 
Só assim não será se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada por documentos ou por confissão reduzida a escrito. Nestas hipóteses, cabe ao tribunal da Relação tomar em consideração tais factos, sem necessidade de anulação do julgamento. É o que resulta da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 607.º do CPC – aplicável ao acórdão da Relação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC. Precise-se que quando o n.º 4 do artigo 607.º fala em factos provados por documentos quer dizer factos provados plenamente por documentos.».
 
No caso dos autos, trata-se de factualidade que não pode ter-se como admitida por acordo, provada por documentos (que fossem dotados de força probatória plena) ou por confissão reduzida a escrito, como logo se retira da própria enunciação dos temas da prova.

O que tudo determina que o Tribunal ad quem lance mão – como poderia fazer oficiosamente, embora no caso tal tenha sido expressamente requerido pela Recorrente principal – do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al.ªs c) e d), do NCPCiv., preceito segundo o qual a Relação deve:

anular a decisão proferida pela 1.ª instância quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, sem que constem do processo todos os elementos necessários à alteração da decisão, e/ou considere indispensável a ampliação da matéria de facto [al.ª c) aludida];

determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados [al.ª d)].

Como esclarece Abrantes Geraldes [Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 242-244.]:

«Ligado ao poder de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto está o dever de fundamentação (…).

A exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva aquisição crítica nos seus aspectos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão (…) deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.

É na motivação que agora devem ser inequivocamente integradas as presunções judiciais e correspondentes factos instrumentais em que se apoiam, nos termos do art. 607.º, n.º 4.

Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto».

O mencionado deficit/insuficiência/obscuridade de fundamentação, verificado in casu, sempre obrigaria à baixa do processo, com anulação da decisão, para sanação do vício e, outrossim, fundamentação adequada, concreta e coerente pela 1.ª instância, quanto a esta específica factualidade, que, objeto de impugnação recursiva, se reveste de essencialidade para a decisão da causa em vista dos pedidos formulados, âmbito em que vem impugnada, nesta senda, a decisão absolutória da ação (e da reconvenção).

Mas importa proceder também, desde logo, à dita ampliação da matéria de facto, o que obriga à anulação da sentença recorrida e repetição parcial do julgamento, de acordo com a norma do n.º 3, al.ª c), do mesmo art.º 662.º, deixando prejudicada, logicamente, a apreciação das demais questões recursivas enunciadas, seja quanto ao recurso principal, seja quanto ao recurso subordinado."

[MTS]