"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/12/2024

Jurisprudência 2024 (63)


Atribuição de nacionalidade; união de facto;
acção de reconhecimento; competência material*


1. O sumário de RL 4/4/2024 (9226/23.8T8LSB.L1-2) é o seguinte:

É ao Juízo local cível (e não ao Juízo de Família e Menores), por ser um tribunal de competência especializada em matéria cível, que compete conhecer da ação declarativa cível, intentada contra o Estado Português, para reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa (pelo autor litisconsorte de nacionalidade estrangeira), nos termos do art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (conjugado com o art.º 130.º da LOSJ).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A presente ação foi intentada por força do disposto no art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03-10 (Lei da Nacionalidade), na redação introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, nos termos do qual: “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”

Este artigo deve ser conjugado, entre outros normativos, com o disposto no art.º 14.º, n.ºs 2, 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14-12, que, além do mais, aprovou o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, estabelecendo os n.ºs 2 e 4, sob a epígrafe “Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade”, que:

“2 - O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lodesde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
(…) 4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.”

Como é sabido, a interpretação e aplicação do citado n.º 3 do art.º 3.º da Lei da Nacionalidade tem suscitado, em anos recentes, divergência na jurisprudência, com o surgimento de uma corrente jurisprudencial, inicialmente minoritária, mas que foi ganhando adeptos, que defende uma espécie de interpretação atualista (para os defensores da tese contrária, uma interpretação ab-rogante ou revogatória) no sentido de considerar que a competência para estas ações é dos Juízos de Família e Menores, por força do disposto no art.º 122.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), nos termos do qual compete aos juízos de família e menores preparar e julgar “Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.

Esta corrente jurisprudencial surge, pelo menos de forma mais expressiva, quase 10 anos volvidos após a entrada em vigor da LOSJ, sendo certo que já desde o ano 2009 vigorava nas denominadas três “comarcas piloto” uma norma exatamente igual, o art.º 114.º, al. h), da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - NLOFTJ). Parece-nos útil lembrar que apenas gerou inicialmente alguma controvérsia a questão de saber se a alínea h) do art.º 114.º da Lei n.º 52/2008 conferia competência, em razão da matéria, aos Juízos de Família e Menores, para preparar e julgar as ações de interdição, acabando por prevalecer o entendimento de que a competência cabia aos Juízos de grande instância cível, com alguns argumentos passíveis de serem transpostos para a análise da questão que ora nos ocupa. [...]

A corrente jurisprudencial adotada na decisão recorrida é ilustrada, entre outros, pelo acórdão do STJ de 16-11-2023, proferido no proc. n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:

«I - A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro.»

Ainda neste sentido - afirmando que o tribunal materialmente competente para a tramitação e decisão das ações de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos previstos no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, é o Juízo de Família e Menores, de acordo com a regra legal inscrita na alínea g) do n.º 1 do art.º 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) - merece destaque o recente acórdão da 2.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2024, proferido no proc. n.º 20621/23.2T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, com um voto de vencido, acórdão que contém uma extensa resenha de jurisprudência, para a qual, por economia, remetemos.

Em sentido contrário, que nos parece ser maioritário, na jurisprudência do STJ, entendendo que face à atribuição específica de competência constante do art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, veja-se, a título exemplificativo os seguintes acórdãos (todos disponíveis em www.dgsi.pt), de que citamos os respetivos sumários:

- o acórdão de 17-06-2021, no proc. n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1: “Face à atribuição específica de competência constante do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.”
 
- o acórdão de 22-06-2023, no proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1: “Os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa”;
 
- o recente acórdão de 08-02-2024, no proc. n.º 8894/22.2T8VNG.P1.S1: “Os juízos de família e menores não são competentes para julgar as acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.”

Destaque ainda para o acórdão desta 2.ª Secção da Relação de Lisboa de 27-10-2022, proferido no proc. n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2, também com um voto de vencido, bem como para a recente decisão do Sr. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-03-2024, proferida no proc. n.º 2703/23.2T8FNC.L1-2 (Conflito de competência), disponíveis em www.dgsi.pt, afirmando ser o Juízo local cível - e não o Juízo de família e menores - o tribunal competente, para, em razão da matéria, apreciar e decidir das ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, e o art.º 14.º, n.ºs 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo DL n.º 237-A/2006, de 14-12).

Deste já adiantamos que esta nos parece ser a resposta acertada à questão que nos ocupa, pela interpretação que fazemos do referido art.º 3.º, n.º 3, tendo em atenção os critérios consagrados no art.º 9.º do CC, sob a epígrafe “Interpretação da lei”, nos termos do qual:

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Há, portanto, que buscar e atender, na interpretação destas normas, ao elemento literal (a letra ou texto da lei), bem como aos elementos histórico, teleológico (a ratio da norma) e sistemático, sendo certo que todos devem ser conjugados.

Importa, pois, ter presente que o n.º 3 do art.º 3.º em apreço foi introduzido pelo art.º 1.º da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, que também alterou a epígrafe do art.º 3.º, a qual antes apenas se referia à aquisição da nacionalidade em caso de casamento. Em abril de 2006, vigorava a Lei n.º 3/99, de 13-01 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ), que já previa a criação de tribunais de competência especializada, de família e de menores, bem como a criação de juízos de competência especializada cível, estabelecendo, a respeito das varas e juízos de competência específica, que podiam ser, além do mais, varas cíveis, juízos cíveis e juízos de pequena instância cível. É sabido que estavam em funcionamento, no que ora importa, varas cíveis (e varas com competência mista) e tribunais de família e menores.

No plano literal, parece ser evidente que a expressão “tribunal cível” constante do referido art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade não se refere a estes últimos. Aliás, mesmo os defensores da tese adotada na decisão recorrida reconhecem que os elementos literal e histórico de interpretação apontam para que a competência seja dos juízos cíveis. Consideram, todavia, que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, pois quando se referiu ao “tribunal cível” estaria a referir-se ao “tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”, que é definida pela lei de organização em vigor; e que, em face da organização judiciária resultante da Lei n.º 62/2013, os Juízos de família e menores são os tribunais de competência especializada mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada nestas ações. Efetivamente, afirma-se no referido acórdão do STJ de 16-11-2023, que os demais elementos de interpretação justificam que se considere que a competência passou a ser dos juízos de família, pela “necessidade de a causa ser decidida por tribunais dotados de conhecimentos e formação para as mesmas, promovendo a qualidade das decisões. É esta a finalidade da afetação das questões da família, incluindo o reconhecimento da união de facto, a tribunais de competência especializada. Era esta a razão de ser do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, quando a Lei Orgânica n.º 2/2006 decidiu atribuir a competência aos tribunais cíveis, na falta de uma norma, à época, semelhante ao o atual artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ” e que “o objetivo da norma do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, foi apenas o de obstar a que estas ações ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo certo que, inexistindo à data norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, a indicação dos Tribunais Cíveis era a que se justificava, por ser a que decorria da Lei que regulava essa matéria.”

Não podemos acompanhar (pelo menos não inteiramente) esta linha de pensamento, pelas razões que passamos a expor, começando por lembrar os trabalhos legislativos que antecederam a aprovação da referida Lei Orgânica. Assim, através da consulta da página na Internet da Assembleia da República, designadamente em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=2096, podemos constatar que a aprovação da Lei Orgânica n.º 2/2006, que introduziu profundas alterações na Lei da Nacionalidade, foi o culminar de diferentes iniciativas parlamentares, tendo sido feita a discussão conjunta da Proposta de Lei n.º 32/X/1, da autoria do Governo - da qual, sublinhe-se, nada consta a respeito da equiparação da união de facto ao casamento para efeito de aquisição da nacionalidade -, e diferentes projetos, a saber:

- Projeto de Lei n.º 18/X/1 (do BE) – em cuja Exposição de motivos se refere que se pretende a “Equiparação da união de facto ao casamento para efeitos de aquisição de nacionalidade por efeito de vontade”; nesse sentido, a redação do art.º 3.º passaria a ser a seguinte (mantinha-se a epígrafe): “1.O estrangeiro casado há mais de dois anos com português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração de vontade feita na constância do casamento. 2.(…). 3.O estrangeiro que vive em união de facto há mais de dois anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante acção de simples declaração a intentar no tribunal competente.”

- Projeto de Lei n.º 31/X/1 (do PEV “Os Verdes”) – em cuja “Nota justifica” (sic) se refere que importa “Equiparar a união de facto ao casamento, para efeitos de aquisição de nacionalidade, fixando a obrigatoriedade de um período mínimo de dois anos de vigência daquela relação familiar, prevenindo assim eventuais fraudes”; nessa senda a epígrafe do art.º 3.º passaria a ser “Aquisição em caso de casamento ou união de facto” e a redação a seguinte: “1 - O(a) estrangeiro(a) casado(a) com cidadão português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração de vontade feita a qualquer tempo, na vigência do casamento. 2 - O(a) estrangeiro(a) que vive em regime de união de facto há mais de dois anos com cidadão português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração nesse sentido e comprovativo da sua situação familiar. 3 - A declaração de nulidade ou anulação do casamento ou da união de facto não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu de boa fé.”

- Projeto de Lei n.º 40/X/1 (do PCP) – em cujo Preâmbulo se refere que “importa equiparar as situações de união de facto ao casamento para efeitos de aquisição da nacionalidade, embora neste caso com as cautelas necessárias para prevenir eventuais fraudes; nesse sentido, a redação do art.º 3.º (cuja epígrafe era mantida) seria a seguinte: “1. O estrangeiro casado com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do casamento. 2. O estrangeiro que vive em união de facto há mais de dois anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.

- Projeto de Lei n.º 170/X/1 (PSD) – em que nada consta a respeito da união de facto;

- Projeto de Lei n.º 173/X/1 (CDS-PP) – em que nada consta quanto à união de facto.

Após votação, no texto de substituição da Proposta de lei n.º 32/X e dos Projetos de lei n.ºs 18, 31, 40, 170 e 173/X, ficou a constar para o art.º 3.º a seguinte redação: “Artigo 3.º (Aquisição em caso de casamento ou união de facto) 1 — (...) 2 — (...) 3 — O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.” De salientar, pois, que o legislador não aprovou a redação constante do projeto de lei do Bloco de Esquerda, que se referia apenas ao “tribunal competente”.

Resulta claro ter sido intenção do legislador equiparar o casamento à união de facto e, para prevenir a fraude, considerou ser necessário que um tribunal previamente tivesse declarado que existia uma situação de união de facto, numa ação judicial que, sendo prévia ao início do procedimento de aquisição da nacionalidade, não se inclui ainda no contencioso da nacionalidade propriamente dito, mais funcionando como uma espécie de “antecâmara” - cf. artigos 25.º e 26.º da Lei da Nacionalidade.

Muito embora a competência para esta ação, de reconhecimento judicial da união de facto, coubesse, desde já o salientamos, aos tribunais judiciais (tribunais comuns ou tribunais de comarca), não deixou o legislador, avisadamente, para evitar dúvidas a esse respeito, de explicitar que a competência cabia ao tribunal cível [optando por essa redação em detrimento da constante do Projeto de Lei n.º 18/X/1 (do BE)], não se podendo dizer (nem isso resulta do Preâmbulo do referido projeto de lei) que a razão de ser desta disposição tenha sido, tão-só, afastar a resolução desta questão dos tribunais administrativos e fiscais, muito menos que estes, à luz do artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, que remetia para “legislação administrativa”, seriam os competentes.

Na verdade, não havia que afastar a competência dos tribunais administrativos, porque estes tribunais não seriam os competentes para julgar estas ações, sendo inaceitável ver no referido art.º 26.º uma norma especial de atribuição de competência, quando se trata apenas de norma atinente à  “Legislação aplicável” ao contencioso da nacionalidade, estabelecendo que “Ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar”. 

Que a presente ação não se insere no Contencioso da nacionalidade tal como se apresenta pela organização sistemática da lei, resulta tanto da Lei da Nacionalidade, como do seu respetivo Regulamento. Assim, na Lei da Nacionalidade é no Capítulo III que se refere o “Contencioso da nacionalidade”, capítulo esse que consta do Título II intitulado “Registo, prova e contencioso da nacionalidade” - cf. arts. 25.º e seguintes. No Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, a esta matéria é dedicado o Capítulo II, atinente ao “Contencioso da nacionalidade”, do Título III relativo à “Oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade e contencioso da nacionalidade” - cf. arts. 61.º e seguintes. Veja-se, por exemplo, o que dispõe o art.º 62.º do Regulamento quanto ao “Meio processual”: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a impugnação judicial de quaisquer atos relativos à atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa segue os termos da ação administrativa, regulada no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.” [...]

Portanto, à partida, a competência para a ação prevista no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade pertencia aos tribunais comuns - cf. artigos 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP, e art.º 66.º do CPC de 1961 (a que hoje corresponde o art.º 64.º do CPC de 2013).

Logo, apenas se poderá entender que uma das razões de ser daquela norma (que não a única) era clarificar que a competência caberia aos tribunais judiciais, que são efetivamente os tribunais comuns em matéria cível. Mas isso não é motivo para considerar que a expressão “a interpor no tribunal cível” (ainda que não seja a mais rigorosa, até porque o verbo “interpor” é mais apropriado para se referir à apresentação de requerimento de interposição de recurso, que não à instauração ou propositura de ação judicial) significa “tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”.

Efetivamente, salvo o devido respeito, esta última expressão parece-nos demasiado vaga e até desprovida de sentido útil, sendo sabido que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal, que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (cf. art.º 211.º, n.º 1, da CRP) - aliás, até os “tribunais criminais” tramitam e decidem questões de natureza cível quando conhecem os pedidos de indemnização civil.

Sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, parece-nos forçoso concluir que o legislador quis atribuir competência aos tribunais cíveis, pois considerou que se estava perante matéria cível, afirmando-o expressamente, de modo a evitar eventuais dúvidas.

Na verdade, a expressão “tribunal cível” evidencia uma intenção clara do legislador, ante a novidade da matéria, no sentido de considerar que se estava perante uma ação declarativa cível, da competência dos tribunais (judiciais) - de competência específica (na atual LOSJ de competência especializada) - aos quais competia preparar e julgar os processos de natureza cível. Este é claramente o sentido inculcado pela letra da lei, bem como pelos elementos histórico, sistemático e teleológico, parecendo-nos evidente que o legislador entendeu, pela relevância e novidade da matéria, ser essa a sede própria para delimitar a competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais quanto a tais ações (além de estabelecer o foro competente para outras ações – cf. art.º 32.º da Lei da Nacionalidade e artigos 55.º, 56.º, 57.º, 61.º e 69.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa). [...]

Mesmo admitindo que o sentido da norma é o de atribuir competência ao “tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”, o certo é que na atual organização judiciária, os Juízos locais cíveis são os tribunais de competência especializada que conhecem das ações de natureza cível que não estejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (cf. art.º 130.º, n.º 1, da LOSJ), estando também expressamente previsto, no art.º 130.º, n.º 2, al. f), da LOSJ, que lhes cabe exercer as demais competências conferidas por lei. Portanto, são competentes os Juízos cíveis, precisamente por estar em causa uma ação de natureza cível que, desde já o adiantamos, não se enquadra na previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122.º da LOSJ (“Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”), norma geral da qual não resulta seguramente uma intenção inequívoca do legislador na revogação daquela (cf. art.º 7.º, n.º 3, do CC), não tendo assim a virtualidade de revogar ou alterar tacitamente a norma especial do n.º 3 do art.º 3.º em apreço.

Com efeito, a ação em apreço, além da sua reconhecida natureza cível, insere-se no conceito de “ações sobre o estado das pessoas”, vulgarmente denominadas “ações de estado”, que (i) versam sobre o estatuto individual/familiar da pessoa (status familiae ou estatuto jurídico-familiar), designadamente filiação, casamento, divórcio, ou (ii) têm por objeto o estatuto político (status civitatis ou condição jurídica de cidadão), como as relacionadas com cidadania e nacionalidade, não se confundindo com o conceito, mais restrito, de ações relativas “ao estado civil das pessoas”. A ação de reconhecimento judicial da união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa (pelo unido de facto estrangeiro) não visa dirimir nenhum conflito relativo ao estado civil das pessoas, pois, no nosso ordenamento jurídico, a união de facto não releva para o estado civil de uma pessoa (cf. art.º 1.º do Código do Registo Civil).

Por outro lado, não parece ter sido intenção do legislador que na citada alínea g) caibam todas e quaisquer ações que tenham por objeto matérias de Direito da Família. Não pode ser esse o sentido da norma, tendo sim uma aceção mais estrita, sob pena de serem inúteis todas as demais alíneas do art.º 122.º (e até o art.º 123.º) da LOSJ. Seria mesmo incompreensível que o legislador optasse por um conceito tão abrangente e, do mesmo passo, por critérios tão minuciosos.

É fora de dúvida que os Juízos de Família e menores têm competência em matéria cível (veja-se, por exemplo, o art.º 6.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09). Porém, nos diferentes artigos da LOSJ em que está prevista a competência dos Juízos de Família e Menores, a mesma não é designada como tal, tendo o legislador optado por a distribuir como “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família” (art.º 122.º em apreço), “Competência relativa a menores e filhos maiores” (art.º 123.º) e “Competências em matéria tutelar educativa e de protecção” (art.º 124.º). É atribuída competência para as ações cíveis aos Juízos (Centrais e Locais) cíveis, reconhecendo-se ainda expressamente competência em matéria cível aos Juízos do Trabalho (cf. art.º 126.º) e aos Juízos de Execução (e fora do quadro dos tribunais judiciais, aos Julgados de Paz).

É também significativo que, na alínea b) do art.º 122.º, se faça menção expressa aos “Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto”, norma que seria inútil, se o sentido da alínea g) fosse tão abrangente (como se entendeu na decisão recorrida), pois um processo de jurisdição voluntária relativo a uma situação de união de facto caberia na previsão de uma ação “relativa ao estado civil das pessoas e família”. Se essa abrangência fosse pretendida pelo legislador, teria bastado indicar, na referida alínea b), “Processos relativos a situações de união de facto”.

Nesta linha de pensamento, ainda que a propósito de uma situação distinta da que nos ocupa, merece destaque a apreciação feita no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22-11-2023, proferido no proc. n.º 03962/22.3T8VCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em que se considerou, conforme consta do respetivo sumário, que: “I - Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação dos pedidos de condenação da Caixa Geral de Aposentações no reconhecimento de uma situação de união de facto e da consequente atribuição da pensão de sobrevivência. II - Cabe aos Tribunais Judiciais e, dentro destes, aos Tribunais Cíveis, a competência para julgar o pedido dirigido contra um particular para que seja condenado a reconhecer uma situação de união de facto, como pressuposto da atribuição de pensão de sobrevivência.” Entendeu-se que, nesse caso, «o reconhecimento da união de facto “funciona apenas como a averiguação judicial de um pressuposto (…) a verificar para o reconhecimento de um direito de natureza extrafamiliar”, não estando em causa “a resolução de qualquer litígio familiar”, tal como sucedia no acórdão de que se retiraram estes trechos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1, proferido a propósito da justificação (ali, da manutenção) da atribuição aos tribunais cíveis da competência para apreciar a existência de união de facto, enquanto pressuposto da aquisição da nacionalidade portuguesa. Com efeito, e como ali também se escreveu, “Existe, aliás, um largo número de ações em que a existência de um casamento ou de uma união de facto é apenas um pressuposto a verificar para o reconhecimento de um direito extrafamiliar (v.g. um direito de crédito de terceiro), competindo o seu julgamento aos tribunais cíveis.”».

Esta argumentação parece-nos ser da maior relevância, pois embora um dos objetivos da organização judiciária delineada pela LOSJ tenha sido a tendencial - que não absoluta - especialização “em razão da matéria” dos processos que os tribunais tramitam (na esteira da experiência já alcançada com a aplicação da Lei n.º 52/2008), não chegou ao ponto de retirar competência aos Juízos cíveis para o conhecimento de uma série de ações cujo objeto do litígio também diz respeito às relações familiares, parecendo-nos evidente que se a intenção fosse incluir uma categoria tão específica de ações, como as previstas no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, isso não podia deixar de estar claramente previsto.

Aliás, até se compreende que o legislador não o tenha feito, por não se lhe ter apresentado como vantajosa essa alteração no confronto com o regime vigente, uma vez que, considerando o âmbito geral das competências dos Juízos cíveis e dos Juízos de família e menores, inexiste uma efetiva vantagem ou justificação, do ponto de vista teleológico e da unidade do sistema, em considerar que é nestes últimos que deve ser demandado o Estado Português, numa “ação de estado” destinada a obter sentença de reconhecimento judicial da união de facto, tida pelo legislador como pressuposto prévio do procedimento de aquisição da nacionalidade portuguesa.

Discordamos, pois, da fundamentação desenvolvida no referido acórdão do STJ de 16-11-2023, quando aí se refere que os demais elementos de interpretação justificam que se considere que a competência passou a ser dos juízos de família, sustentando que “Conflitos em torno do reconhecimento da união de facto em casos de rutura e/ou quanto aos efeitos da mesma têm dado lugar a processos judiciais que correm termos nos tribunais de família para apurar não só a existência ou inexistência de união de facto, mas também os seus efeitos: a divisão de bens aquando da rutura, adjudicação da casa de morada de família ou transmissão do arrendamento da mesma em caso de separação ou de morte, obrigação de alimentos da herança do falecido, etc. Assim, argumentos de lógica e de unidade do sistema jurídico impõem que a competência para as ações em que se pede o reconhecimento da união de facto, tendo em vista a aquisição da nacionalidade por um dos seus membros, seja atribuída àqueles tribunais (isto é, aos tribunais de família), que, por terem a natureza de tribunais de competência especializada, estão mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada. (…) o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.”

Efetivamente, salvo o devido respeito, que é muito, não podemos acompanhar este entendimento. Os Juízos locais cíveis também são tribunais de competência especializada [cf. art.º 81.º, n.º 3, al. b), da LOSJ] e estão, como sempre estiveram, igualmente apetrechados e preparados para proceder à análise da prova no que concerne ao reconhecimento da união de facto.

Ademais, na atual organização judiciária, são da competência dos Juízos locais cíveis as ações de divisão de coisa comum (mormente de imóvel de que os ex-membros da união de facto são comproprietários) e correm termos nos Juízos cíveis diversas ações em que o objeto do litígio inclui apurar da existência de união de facto, sobretudo quando, como é o caso da presente ação (em que é demandado o Estado Português), o conflito extravasa o âmbito estritamente familiar, envolvendo um “terceiro”, que também é sujeito processual, caso das seguradoras (por exemplo, quando se discute a atribuição de indemnização nos termos art.º 496.º, n.º 3, do CC), dos senhorios (que não reconheçam a existência da união de facto - cf. artigos 1072.º, 1093.º e 1106.º do CC) e dos herdeiros (litígios relativos ao direito real de habitação e disposições testamentárias - cf. art.º 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, e art.º 2192.º, n.º 2, do CC; veja-se, por exemplo, o ac. da RL de 08-03-2022, no proc. n.º 5508/19.1T8LRS.L1-7 disponível em www.dgsi.pt).

Não se nega que o Juízo de família e menores, enquanto tribunal especializado, está (igualmente) vocacionado para apurar se existe uma união de facto, mas já não nos parece ser inteiramente correto acrescentar (como se faz, por exemplo, no acórdão da RL de 11-10-2022, proferido no proc. n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt) que as regras aplicáveis às diferentes ações não divergem pela sua finalidade, mormente pela simples circunstância de se pretender, em última instância, obter a aquisição da nacionalidade.

Na verdade, ainda que aos diferentes casos seja aplicável a Lei n.º 7/2001, de 11-05, o mesmo não sucede, no que concerne a importantes regras de direito processual, precisamente pela natureza do litígio em questão, pois estamos no âmbito das “ações sobre o estado das pessoas” (cf. art.º 303.º, n.º 1, do CPC) e, como bem se percebe pelo propósito do legislador ao prever, no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, a necessidade de ação judicial (evitar a fraude), perante uma ação em que a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela mesma se pretende obter [cf. art.º 568.º, al. c), do CC].

Também não se discute que a união de facto é uma forma de constituir família. Mas daí não resulta sem mais que o legislador tenha visado, na previsão da alínea g), toda e qualquer ação em que se discuta a existência de uma situação de união de facto, sendo evidente que a aceção deve ser mais restrita, conforme acima explanado, considerando precisamente a “natureza das coisas”, que não se esgota numa vertente estritamente familiar. Um instituto jurídico como a união de facto, à semelhança do casamento, tem necessariamente múltiplos efeitos, que transcendem a esfera familiar, podendo ter reflexos patrimoniais e outros, levando a que uma tal situação possa ter de ser reconhecida em diferentes sedes e por diferentes meios processuais, consoante os casos e as regras legais aplicáveis.

Nessa medida, parece-nos inaceitável considerar que uma tal previsão genérica possa abarcar uma ação prevista em lei especial, sem paralelo com as demais que são da competência dos Juízos de Família e Menores, por ser instrumental para a instrução do procedimento de aquisição de nacionalidade, instaurada contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público (um terceiro alheio à vivência e motivações familiares), de cuja causa de pedir não constam quaisquer factos relativos a um litígio familiar cuja resolução os autores (litisconsortes) pretendam e em que a vontade das partes é mesmo ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter, o que, tudo ponderado, é justificação relevante para o tratamento especial que o legislador lhe deu e continua a dar, não a incluindo no âmbito da competência dos Juízos de Família e Menores.

Em suma, a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122.º da LOSJ, pela sua razão de ser, não abrange as ações de estado em apreço, que ultrapassam, do ponto de vista dos sujeitos processuais, “o seio da família”, com a demanda do Estado Português, representado pelo Ministério Público, para defesa do interesse público.

Diga-se, para terminar, que nos parece inaceitável convocar o princípio da interpretação conforme à Constituição em abono da tese sufragada na decisão recorrida. Efetivamente, a interpretação normativa que ora se defende também se mostra conforme à Constituição, não afrontando quaisquer princípios constitucionais, mormente o princípio da igualdade, estando os direitos previstos na lei, incluindo os atinentes à aquisição da nacionalidade, a ser exercitados no quadro legal definido na Lei da Nacionalidade e no respetivo Regulamento, em que está prevista a instauração uma ação judicial, que visa evitar a fraude no âmbito dos procedimentos atinentes à aquisição da nacionalidade. [...]

Em conclusão: a presente ação foi intentada ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, norma da qual resulta a atribuição de competência aos tribunais cíveis, ou seja, aos Juízos cíveis, para a “ação de estado” a intentar pelos (alegadamente) unidos de facto - interessados em que a nacionalidade portuguesa seja atribuída a um deles - contra o Estado Português; trata-se de norma especial introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, cuja redação se manteve inalterada, não obstante as sucessivas alterações da Lei da Nacionalidade, inexistindo preceito legal de cuja interpretação resulte uma intenção inequívoca do legislador na revogação daquela; em particular, não há que convocar a regra geral de atribuição de competência aos Juízos de família e menores constante do art.º 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, pois estamos perante uma ação declarativa em matéria cível e não uma ação “relativa ao estado civil das pessoas e família”; ante a plena aplicação do referido art.º 3.º, n.º 3, em conjugação com o art.º 130.º da LOSJ, resulta que o Juízo local cível (que é um juízo de competência especializada) é, no atual sistema judiciário, o tribunal competente, em razão da matéria, para julgar a presente ação."

*3. [Comentário] Já houve a oportunidade de discordar da orientação defendida no acórdão: clicar aqui. Apenas se reforça que, havendo que escolher entre tribunais de competência especializada residual e tribunais de competência especializada própria, há que, ao contrário do entendimento seguido no acórdão. dar preferência a estes últimos.

Em sentido contrário ao acórdão da RL, cf. RP 15/2/2024 (1544/23.1T8MAI.P1).

MTS