"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/12/2024

Jurisprudência 2024 (62)


Fase de recurso;
junção de documentos*



1. O sumário de RL 4/4/2024 (1329/20.7T8OER-B.L1-2) é o seguinte:

I) De acordo com o disposto nos artigos 423.º, n.º 3, 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, a junção de documentos na fase de recurso apenas é admissível se: a) Foi impossível a apresentação do documento antes do encerramento da discussão em 1.ª instância; ou b) A junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

II) A impossibilidade da junção refere-se à superveniência do documento face ao julgamento em primeira instância e pode objetiva (se historicamente ocorreu depois do julgamento em 1.ª instância) ou subjetiva (se só foi conhecido, num quadro de normal diligência, do apresentante posteriormente ao julgamento em 1.ª instância, não podendo ter tido conhecimento da sua existência ou da situação a que o mesmo se refere).

III) A necessidade da junção em virtude do julgamento da 1.ª instância cinge-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.

IV) Nos termos do disposto na alínea c) do artigo 736.º do CPC, são classificados como impenhoráveis, por razões de interesse geral, os objetos cuja apreensão é ofensiva dos bons costumes (cfr. artigo 280.º do CC) ou que careçam de justificação económica atendendo ao diminuto valor, não visando a penhora a satisfação do crédito exequendo, mas a humilhação do executado.

V) Por seu turno, com o CPC de 2013, os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica, que antes se encontravam entre os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, passaram a constar no n.º 3 do artigo 737.º do CPC, no elenco de bens relativamente impenhoráveis, devendo tal conceito ("bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica") aferir-se, objetivamente, relativamente a qualquer economia doméstica, o que implica o recurso a um padrão mínimo de dignidade social.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

A) Questão prévia – Da admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso.

Com as alegações de recurso, a apelante junta 7 documentos, sendo 5 cópias de fotografias e 2 documentos referentes ao apoio judiciário requerido.

Nos termos do artigo 651º, nº1, do CPC, “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.

E o artigo 425.º do CPC dispõe que: 

“Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

Explicando o modo de conjugação destas normas, referiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-09-2016 (Pº 1203/14.6TBSTS.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES) que, “da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.

Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.

Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.

Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento”.

No que tange à impossibilidade de apresentação anterior, referem Lebre de Freitas et al (Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, p. 426) que: “Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil].» RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, afirma que: «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes”.
 
Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (artigo 651º, n.º 1, do CPC), “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida” (cfr. Antunes Varela et al.; Manual de Processo Civil, 2ª Ed., pp. 533-534).

“Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo./ A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (assim, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pp. 184-185).

Assim, “(…) a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela 1ª vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2012, P.º n.º 174/08, rel. GONÇALVES ROCHA).

Na permissão normativa incluem-se as situações que - pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação - tornaram necessário provar determinados factos, cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, ter em consideração antes da decisão ter sido proferida.

Contudo, o regime do artigo 651º, nº 1, do CPC não abrange a hipótese de a parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância.

Assim, não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa ab initio e não apenas após a prolação da sentença, dado que, “já era potencialmente útil à apreciação da causa” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 502).

Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2016 (Pº 788/13.9TBSTR.E1, rel. MANUEL BARGADO), “a impossibilidade de apresentação em momento anterior legitima as partes a utilizar no recurso, juntando-o com a motivação deste, o documento cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento, ou seja, até ao julgamento em primeira instância, o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objetiva ou subjetiva do documento pretendido juntar. No caso de superveniência subjetiva é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, apesar do carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este por razões que se afigurem como atendíveis. Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade do apresentante, num quadro normal de diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento”.

Ou seja: Não é admissível a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.

Por outro lado, uma vez que a junção de documentos tem em vista a prova de factos que hajam sido alegados, a possibilidade de junção de documentos, em sede de recurso, não poderá ter como objetivo ou finalidade a prova de factos que não hajam sido alegados.

Em síntese, pode concluir-se que “[d]a leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019, Pº 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, rel. CATARINA SERRA).

Da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 651.º do CPC resulta evidente que, a junção de prova documental em sede de recurso admitida no n.º 1 do preceito apenas poderá ter lugar até ao momento de apresentação de alegações, não prevendo a lei a possibilidade da sua apresentação em momento ulterior a tal apresentação, o que já não sucederá com os pareceres dos jurisconsultos que, nos termos do n.º 2, podem ser juntos aos autos até ao início de elaboração do projeto de acórdão.

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, verifica-se que a apelante vem juntar dois documentos atinentes ao apoio judiciário que requereu, documentos que, não sendo impertinentes e respeitam ao aludido benefício, deverão ser admitidos.

Já, assim, não sucede quanto aos demais documentos (cópias fotográficas), pois, de facto, não demonstra a recorrente qualquer necessidade na junção ou alguma superveniência na respetiva apresentação.

A junção das cinco cópias fotográficas, no momento em que ocorreu mostra-se, pois, contrária ao disposto nos mencionados artigos 425.º e 651.º do CPC, não devendo ser admitida.

Pode sobre esta questão concluir-se, em síntese, que:

- De acordo com o disposto nos artigos 423.º, n.º 3, 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, a junção de documentos na fase de recurso apenas é admissível se:

a) Foi impossível a apresentação do documento antes do encerramento da discussão em 1.ª instância; ou

b) A junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância;

- A impossibilidade da junção refere-se à superveniência do documento face ao julgamento em primeira instância e pode objetiva (se historicamente ocorreu depois do julgamento em 1.ª instância) ou subjetiva (se só foi conhecido, num quadro de normal diligência, do apresentante posteriormente ao julgamento em 1.ª instância, não podendo ter tido conhecimento da sua existência ou da situação a que o mesmo se refere);

- A necessidade da junção em virtude do julgamento da 1.ª instância cinge-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.

Atenta a impertinência na apresentação dos referidos cinco documentos e visto o disposto nos artigos 423.º e 443.º do CPC, conjugados com o disposto no artigo 27.º, n.º 1, do RCP, deverá condenar-se a apresentante em multa, que, se deverá fixar no mínimo (0,5 U.C.).

De acordo com o exposto, não se admite a junção das cinco cópias fotográficas, juntas com as alegações. "

*3. [Comentário] O enunciado de que

"A necessidade da junção em virtude do julgamento da 1.ª instância cinge-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida"

não é indiscutível. Se a parte é surpreendida na sentença final com algo com que "não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida", é enorme a probabilidade de essa sentença conter uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC).

MTS