"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/12/2024

Jurisprudência 2024 (64)


Sentença; fundamentação;
prova pericial


1. O sumário de RC 5/3/2024 (1622/19.1T8PBL-D.C1) é o seguinte:

I – Padece de nulidade, por falta de fundamentos, a decisão que não contém qualquer avaliação de perícia na qual se baseia para fixar o valor de certo bem.

II – A edificação construída em prédio de um dos cônjuges não fica privada de valor económico por não estar licenciada.

III – Os custos de legalização devem ser considerados na fixação do valor da edificação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV.1. O recorrente começa por invocar a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, nos termos do art. 615º n.º1 al. b) do CPC, do qual resulta que:

1 - É nula a sentença quando:

a) (…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…).

Este regime é aplicável aos despachos por força do art. 613º n.º3 do CPC.

Este vício relaciona-se com o disposto no art. 154º n.º1 do CPC, que impõe o dever genérico de fundamentação para todas as decisões processuais, garantindo, internamente, a sua racionalização, e, externamente, a publicitação, como meio de convencimento pelas suas razões. O desvalor da decisão radica na sua incapacidade em garantir a inteligibilidade ou compreensibilidade da decisão e assim aqueles valores.

Tem sido entendido de forma claramente dominante que apenas a falta absoluta de fundamentação constitui a nulidade em causa, não bastando a mera deficiência ou incompletude da fundamentação. Eventuais defeitos da fundamentação constituiriam questões apenas relevantes na avaliação do mérito da decisão. Fala-se ainda, embora de forma menos corrente, na falta funcional de fundamentação, para os casos limite em que a fundamentação é apenas aparente por não ter conteúdo, esgotando-se em fórmula sem significado próprio: nestes casos continuaria a faltar completamente a fundamentação.

Atendendo aos termos da decisão proferida, entende-se que existe a sancionada falta integral de fundamentação. Com efeito, avaliando analiticamente a decisão proferida, ela pode decompor-se em 3 secções:

- a primeira, correspondendo à menção «Mostrando-se prestados pelo sr. perito os esclarecimentos solicitados e concluída a avaliação», não constitui mais que uma introdução, uma espécie de relatório onde se evidenciam actos processuais prévios, sem qualquer valor argumentativo ou racionalizador da decisão. 

- a segunda, contendo a menção «notifique o cabeça para no prazo de 10 dias juntar relação de bens …» constitui uma determinação judicial, uma ordem de junção de peça processual. Pode valer como decisão, não como fundamentação.

- a terceira, analisada na menção «… em conformidade com os valores decorrentes da avaliação», articula-se com a anterior secção, levando expressa uma outra determinação (que a relação de bens deve reflectir os valores da avaliação) que, por sua vez, contém em si uma decisão: aquela que fixa o valor dos bens nos termos da avaliação [--]. Só, com efeito, esta decisão justifica aquela determinação: sendo controvertido o valor dos bens, a ordem para atender a certo valor pressupõe a superação da controvérsia, justamente através de decisão que fixa o valor em causa. A determinação encerra em si também a decisão. Aliás, a questão foi, como podia ser [---], suscitada em sede de reclamação contra a relação de bens (reclamação nesta parte dirigida aos valores atribuídos) e, nessa sequência, tal questão postula uma decisão que ponha termo ao procedimento processual típico (embora eventual) desencadeado, constituindo aliás uma decisão de saneamento do processo (art. 1110º n.º1 al. a) do CPC) [---]. E decisão sujeita, pois, ao regime dos art. 154º n.º1 e 615º n.º1 al. b) do CPC, ao menos por força do art. 613º n.º3 do CPC (podendo até discutir-se se a estruturação do procedimento de reclamação não justificaria, ao abrigo do art. 152º n.º2 do CPC, qualificar a decisão devida como sentença).

De todo o modo, nenhum elenco de razões consta também desta terceira secção da decisão, para além da geral remissão para o valor da avaliação. Remissão que não pode valer como fundamentação pois, como se sabe, a perícia está sujeita à livre apreciação do tribunal, por força do art. 389º do CC, o que postula necessariamente uma sua avaliação judicial, ainda que condicionada pela específica natureza deste meio probatório (a liberdade de apreciação não envolve a substituição do perito pelo tribunal na respostas a dar, mas apenas a livre valoração das respostas dadas à luz dos fundamentos da perícia). E a mera remissão não contempla qualquer avaliação crítica do meio de prova que pudesse valer como juízo justificador e sustentador da decisão (especialmente em situação em que existem, embora com especificidades, duas avaliações diferenciadas).

No despacho em que avalia a nulidade, o tribunal recorrido afirma que perante os últimos esclarecimentos e «face à ausência de qualquer requerimento», «entendeu o tribunal (…), que se encontravam sanadas todas as divergências quanto ao valor da benfeitoria», «nada mais havendo a apreciar». Parece assim estribar-se quer no valor da perícia quer num suposto convencimento (acordo) das partes por aquela perícia (após esclarecimentos). Tal asserção não é correcta (inexiste acordo ou convencimento expresso – aliás, as sucessivas reclamações são disso demonstração; e a perícia constitui meio de prova, a avaliar, e não meio de fixação imediato de um resultado a acolher acriticamente) e, também por isso, não explica ou concorre para excluir a deficiência apontada.

Assim, existe uma decisão que, além do mais e como se verifica, não vem estribada em qualquer fundamentação, ocorrendo por isso a nulidade invocada.

 Sem que, porém, esta importe, como o recorrente primacialmente pretende, que se devolva ao tribunal recorrido a prolação de nova decisão devidamente fundamentada pois, nesta matéria, vigora um regime de substituição que impõe que, ainda que seja declarada nula a decisão recorrida, se deve conhecer o objecto da apelação (art. 665º n.º1 do CPC). Assim, como a apelação interposta se dirige também ao mérito da questão, e por isso o seu objecto excede aquela nulidade, cabe, de acordo com esta regra processual, proceder à avaliação do mérito do recurso no que excede aquela nulidade (por isso se diz, aliás, que o conhecimento da nulidade, nestes casos, nem será em rigor necessária, por irrelevante, pois será sempre superada pela avaliação do mérito da impugnação, superando esta avaliação aquela nulidade).

Quanto aos termos desta substituição, o que o direito positivo postula é que o tribunal supra a nulidade da decisão recorrida e passe a apreciar se ela deve ser revogada ou confirmada (na expressão de T. Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex 1997, pág. 472), devendo assim primeiramente declarar a nulidade e prosseguir com a correcção do vício (na formulação de A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 389) [O limite a esta actuação encontra-se apenas nas situações em que o tribunal de recurso não dispõe de elementos bastantes para operar a substituição, o que não ocorre no caso.]

Isto sempre sem embargo de esta substituição se inserir ainda no sistema de reponderação, próprio do sistema legal de recursos, pelo que se julga a decisão recorrida nos limites do objecto respectivo e segundo a sua impugnação (as razões do recurso).

Continuando assim a valer, nesta substituição, as ideias de que «o efeito substitutivo não pode ser deixado à oficiosidade do tribunal de recurso (…)», e, em sequência, de que «cabe ao recorrente individualizar o teor dos efeitos que por meio da decisão pretende que sejam proferidos», com o desvio/excepção do regime do art. 665º n.º2 do CPC (que não está aqui em causa) [V. Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, AAFDL 2020, pág. 200.] e levando em conta que a invocação da nulidade já leva ínsita, por imperativo lógico-legal (e ao menos nos casos em que a nulidade não constitui o único fundamento da impugnação), uma pretensão de suprimento do vício.

[MTS]