"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/12/2024

Jurisprudência 2024 (68)


Direito de remição;
nulidade processual; ónus de alegação; prazo

I. O sumário de RE 19/3/2024 (34/14.8TBTVR-I.E1é o seguinte:

1 – O titular do direito de remição não tem de ser previamente notificado pessoalmente para exercer o respectivo direito, pois o legislador parte do princípio de que o executado/insolvente lhe deu a respectiva informação necessária sobre a venda e ser suficiente esse meio de conhecimento.

2 – A verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é susceptível de influir na decisão da causa.

3 – O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real.

4 – O encerramento da fase de liquidação apenas ocorre após o termo da venda dos bens integrados na massa insolvente e a leitura do despacho recorrido encerra um sentido concludente, claro, inequívoco e indubitável quanto à prévia realização de um acto de venda, iniciando-se a partir desta data o prazo para arguir a respectiva nulidade.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar, tal como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 158.º [---] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

As modalidades de venda estão provisionadas no artigo 164.º [---] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.

O presente recurso convoca um problema [...] de matriz processual referente à omissão de notificação da decisão de venda e outros actos processuais considerados relevantes pelo insolvente.

Vejamos. [...]

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Dito isto, no plano processual, teremos de desdobrar a restante análise da situação judicanda em três elementos: o do direito próprio ao conhecimento dos actos processuais, o da omissão da notificação da ex-cônjuge do insolvente e o da eventual preterição do direito de preferência e o do exercício do direito de remição.

É indiscutível que a falta de notificação ao insolvente da decisão de venda configura uma nulidade, por violação do princípio do contraditório [---]. Efectivamente, neste domínio, tal como afirma Abrantes Geraldes, subjaz a ideia que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados [António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (parte Geral e Processo de Declaração), 3.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 21.]

Este princípio garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de plena igualdade [---], poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da acusa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 7.]

No entanto, ao contrário daquilo que invoca, não ocorreu qualquer falta de notificação do insolvente relativamente à decisão de venda, tal como resulta do acima aludido requerimento de 10/07/2020 e da documentação anexa.

Não existe, assim, neste particular, qualquer violação do equilíbrio global do processo, que se traduzisse na privação de uso de meios de defesa e no exercício de faculdades.

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No que concerne à falta de notificação do ex-cônjuge importa salientar que, no plano substantivo, a dissolução do casamento não altera a natureza do património comum do ex-casal, que se mantém até à partilha com as características da unidade do direito de propriedade e da indivisão do todo sobre o qual incide.

Através das vias processuais legalmente previstas para, na insolvência, o cônjuge ou ex-cônjuge meeiro pode obter o reconhecimento do direito à separação da meação (artigos 141.º, n.º 1, alínea b), 144.º e 146.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), mas apenas consegue lograr o reconhecimento da natureza comum do bem apreendido para a massa e a consequente declaração do direito a proceder à separação da meação.

Relativamente a este segmento, além de não existir o reclamado direito de preferência assinalado no recurso interposto – estamos perante uma situação de comunhão e não de compropriedade –, não ocorre um cenário de representação dos interesses do ex-cônjuge por parte do insolvente e esta, caso fosse directa e efectivamente prejudicada pela decisão, deveria recorrer da decisão ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 631.º[8] do Código de Processo Civil, carecendo o recorrente de legitimidade para agir em protecção de interesses alheios.

Mas, mais do que isso, a ex-cônjuge (…) deduziu acção de restituição e separação de bens contra (…), massa insolvente de (…) e credores de … (apenso H), transitada em julgada, em que foi recusada a pretensão de separação do bem comum.

E, com isto, mostra-se assim cumprido o objecto da sua protecção, sendo que, tal como resulta do apenso de liquidação, a referida interessada foi contactada por diversas vezes para assuntos relacionados com a venda do imóvel e não respondeu às solicitações do administrador de insolvência.

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Assim sendo, resta agora realizar a apreciação da falta de notificação para o exercício do direito de remição [---]

Na realidade, com as necessárias adaptações à situação de insolvência, tal como já escrevemos noutras decisões deste Tribunal da Relação de Évora: «o titular do direito de remição não tem de ser previamente notificado pessoalmente para exercer o respectivo direito, pois o legislador parte do princípio de que o executado lhe deu a respectiva informação necessária sobre a venda e ser suficiente esse meio de conhecimento.

A fim de viabilizar o exercício do direito de remição, o agente de execução deve comunicar ao executado o despacho de adjudicação, bem como as circunstâncias de modo, tempo e lugar onde será concretizada a venda por negociação particular do imóvel em discussão.

Ao não ter sido dado conhecimento desses elementos aos executados, o eventual remidor ficou privado de perfectibilizar a preferência qualificada na compra do imóvel, verificando-se assim a omissão de formalidade que tem influência na decisão da causa».

É indiscutível que a privação do exercício do direito de remir pelo catálogo de interessados mencionados na lei configura uma nulidade processual.

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Como acima se referiu, a não notificação do insolvente e a privação do exercício do direito de remir por parte dos interessados mencionados na lei configura uma nulidade processual.

No entanto, a verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é susceptível de influir na decisão da causa (leia-se na venda ou no resultado da liquidação) [---]

Na situação vertente, mesmo que se considerasse que o insolvente demonstrou em termos razoáveis que, caso tivesse sido informado do acto de venda, a referida comunicação permitiria o exercício do direito de remição, não se demonstraria o requisito da tempestividade da arguição.

O Tribunal a quo considerou sanada a nulidade por via do decurso do prazo contido no artigo 199.º [---] do Código de Processo Civil. E, na verdade, o encerramento da fase de liquidação apenas ocorre após o termo da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente e, casuisticamente, entendemos que o despacho proferido em 04/09/2023 é concludente no sentido que, naquele momento, já tinha sido concretizada a venda do imóvel em discussão, caso o insolvente não tivesse conhecimento dessa realidade.

Daqui decorria que o recorrente dispunha do prazo de 10 dias para reagir à referida nulidade e o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto, na associação existente entre o n.º 3 do artigo 139.º [---] e o artigo 199.º do Código de Processo Civil.

É indiscutível que as decisões, como os contratos, como as leis, devem ser interpretadas, no seu contexto legal e processual, na sua lógica, e não apenas lidas [---]. Num caso deste tipo temos de perscrutar as "circunstâncias atendíveis para a interpretação", conforme decorre do disposto no artigo 236.º [---] do Código Civil, no contexto da teoria da impressão do destinatário.

A interpretação da declaração deve ser, assim, assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. No enquadramento de Carlos Ferreira de Almeida, «o sentido relevante é aquele que se considere corresponder à compreensão do comportamento do declarante, segundo um padrão de normal diligência, atenção e racionalidade, tendo em conta a projecção tipológica da personalidade do declarante real e as circunstâncias concretas que envolveram a declaração negocial. (…) A impressão do declaratário tem o alcance de uma compreensão presumida com base em factores contextuais escolhidos pelo intérprete, observador da concreta interacção comunicativa, pessoa exterior ou acto para quem o acto já é passado» [Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, vol. IV – Funções. Circunstâncias. Interpretação, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 262.]

Por outras palavras, o padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real [---]

E, neste caso, convém recordar que o insolvente se encontra representado por mandatário que tem capacidade para compreender o sentido e o alcance da decisão que declara o encerramento da liquidação, ficando, por isso, na sequência dessa notificação, ciente que tinha ocorrido a transacção do imóvel, cuja venda tinha sido anunciada por leilão electrónico.

Assim, como já deixamos alinhavado, a leitura do despacho encerra um sentido claro, inequívoco e indubitável quanto à prévia realização de um acto de venda e, nessa ordem de ideias, iniciando-se a partir desta data o prazo para arguir a respectiva nulidade, comungamos da posição expressa no despacho recorrido quanto à intempestividade da possibilidade de arguir a nulidade."

[MTS]