"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/12/2024

Jurisprudência 2024 (74)


Nulidade da sentença;
excesso de pronúncia


I. O sumário de RL 9/4/2024 (12261/17.1T8LSB.L1-7) é o seguinte:

1 - O julgador não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, nem atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, e, em concreto, se o pedido respeita ao reconhecimento do direito de propriedade e restituição relativo a um prédio urbano, não pode o juiz declarar esse direito relativamente a um prédio misto ou a um prédio rústico.

2 - A presunção registal de titularidade decorrente do estatuído no artigo 7º do Código do Registo Predial, onde se estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, não abrange os elementos da descrição registal, mas apenas o que resulta do facto jurídico inscrito tal como foi registado.

3 A posse que releva para efeitos da usucapião é a posse tal como é definida pelo artigo 1251º do Código Civil, sendo seu elementos integrantes o corpus - a prática de actos materiais sobre a coisa, de modo contínuo e estável - e o animus -vontade ou intenção do autor da prática de tais actos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente aos actos realizados.

4 - Presume-se que quem tem o corpus tem também o animus.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.2.1. Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia

As recorrentes sustentam que a decisão recorrida padece de nulidade porque condenou em quantidade superior e em objecto diverso do pedido, para o que argumentam que as autoras pediram o reconhecimento do seu direito de propriedade incidente sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial – “prédio urbano sito no ..., S/N, freguesia e concelho de Alcochete, distrito de Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.º .../19971007, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ... da freguesia de Alcochete” -, sendo que o prédio descrito sob o número ... integra um terreno rústico de regadio de produtos hortícolas inscrito na matriz sob o artigo 26 da secção AC, um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ... e um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ..., restringindo-se o pedido das autoras ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e, apesar disso, a sentença veio declarar a propriedade da autora/recorrida sobre “metade da metade indivisa” do prédio descrito sob o número ..., incluindo a parte rústica com 35 000 m2 e o urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e outra metade dessa metade indivisa como integrante do acervo hereditário de J..., para além de identificar o prédio como omisso na matriz.

Nas suas contra-alegações, as autoras/recorridas defendem que não ocorre a apontada nulidade, porquanto o facto declarado corresponde aos factos B) e C) considerados assentes no despacho saneador, de que aquelas não reclamaram, tendo-se formado caso julgado com força obrigatória no processo, para além de resultar da certidão predial permanente a inscrição registal da aquisição do prédio descrito sob o número ... a favor de J... e mulher, a autora B.

Aquando da prolação do despacho de admissão do recurso, a senhora juíza a quo pronunciou-se sobre a nulidade suscitada, nos seguintes termos (cf. Ref. Elect. 433193754):

“Nulidade da sentença recorrida – art.º 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:

Entendo que a sentença da qual foi interposto recurso pelo/a(s) réu/ré(s) não padece de qualquer uma das nulidades elencadas no art.º 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, porquanto:
a) A decisão recorrida contém a assinatura da magistrada que a elaborou;
b) A decisão recorrida enuncia os fundamentos de facto e direito que a sustentam;
c) Não existe contradição entre os fundamentos da decisão recorrida, nem ocorre ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível, sendo inequívoco o seu sentido, independentemente da discordância que a parte recorrente ante a mesma manifeste;
d) O tribunal pronunciou-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes e não conheceu de questões estranhas ao objecto do processo, independentemente de a parte recorrente concordar ou não com o enquadramento jurídico da decisão posta em crise, o que constitui fundamento de recurso e não causa de nulidade da sentença;
e) A decisão recorrida manteve-se nos limites das pretensões formuladas pelas partes, não tendo condenado em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Ante o exposto, julgo improcedente, por não verificada, a nulidade invocada e mantenho nos seus precisos termos a sentença recorrida.
Notifique.”

Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, a sentença é nula quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, ou seja, quando não observe os limites impostos pelo art.º 609º, n.º 1 daquele diploma legal.

O princípio do dispositivo, desde logo consagrado no n.º 1 do art.º 3º do CPC, repercute-se na configuração do objecto do processo, mediante a dedução do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamento à acção ou à defesa, circunscrevendo o âmbito da decisão final, ou seja, são as partes que ao recorrerem à instância judicial delimitam o objecto do processo, devendo a sentença conter-se nesse objecto.

Assim, “o pedido delimita os poderes do juiz, já que este não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, embora sem prejuízo da aplicação da jurisprudência constante do Assento n.º 4/95 - “o conhecimento oficioso da nulidade de um negócio jurídico não impede que o tribunal condene o réu a restituir o que tenha recebido, se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais” - e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/01 - “tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC [de 1961]” – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 17.

É, pois, através do pedido que as partes delimitam o thema decidendum, solicitando a tutela pretendida, pelo que a sentença tem de se inserir no âmbito do pedido e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso daquilo que foi pedido.

Quanto ao sentido da norma do actual art.º 615º, n.º 1, e), do CPC, mantêm-se válidas as palavras de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra 1984, pp. 67-68:

“O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. […]

Também não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).”

Sobre esta questão, escreve Manuel Tomé Gomes, Da Sentença Cívelin O novo processo civil, pp. 370-372 [Caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014 acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf.]

“Também no que respeita à fixação ou condenação em objecto diferente do pedido se tem suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a resolução de um contrato com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crise é nulo por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma ação de impugnação pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo 616º, n.º 1 e 4 do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade do contrato e decretar a respetiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 289º do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor?

[…] se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa.”

Ainda que, como tem vindo a ser entendido, aquilo que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, seja o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado, há que não olvidar que continua a valer a regra do dispositivo, daí que o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

Assim, o julgador não pode atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, ou seja, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao demandante, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter, mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos daquilo que este visava – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-04-2016, processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1 [---]

Na sua pronúncia sobre a nulidade em causa, a senhora juíza a quo não se debruçou sobre o específico fundamento invocado, pelo que aquilo que consignou no despacho de admissão do recurso não tem qualquer utilidade para a apreciação da questão.

Importa afastar, desde já, a relevância da argumentação das autoras/recorridas, porquanto, por um lado, não se encontra hoje legalmente prevista ou imposta a enunciação, em sede de prolação do despacho saneador ou fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, dos factos então já tidos por assentes [---], sendo em sede de sentença que o juiz terá de declarar, dentro da matéria definida pelos factos que constituem a causa de pedir e que integram as excepções, aqueles que julga provados ou não provados, pelo que não há hoje “qualquer cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegada para a sentença”, tanto mais que o juiz deve considerar os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução – cf. art.ºs 595º, 596º, 607º, n.º 4 e 5º, n.º 2, b) do CPC; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pp. 700-701.

Acresce que, mesmo no âmbito da identificação dos factos assentes prevista no CPC de 1961, se entendia que o juiz não estava adstrito à especificação já feita, ou seja, a condensação (especificação e base instrutória) mantinha a função instrumental que apenas visava facilitar a realização do julgamento, não devendo comprometer, por via do caso julgado formal, a sua modificação posterior tendente a restabelecer a correspondência entre a verdade histórica e a emergente do julgamento – cf. Temas de Reforma do Processo Civil, II volume, pp. 143-145.

Por outro lado, os factos consignados sob as alíneas B) e C) e que assim transitaram para a enunciação da matéria de facto provada constante da sentença recorrida apenas reproduzem as informações que se extraem da descrição predial atinente ao prédio número ... e respectivas inscrições, o que, aliás, não foi sequer exactamente reproduzido no ponto I, alínea a) do dispositivo.

Ora, da leitura da petição inicial, e mais exactamente dos factos integradores da causa de pedir nela vertidos e do pedido deduzido a final, parece claro que as autoras não formularam qualquer pretensão no sentido de lhes ser reconhecido o direito de propriedade incidente sobre a globalidade das existências físicas imobiliárias que integram a descrição predial em referência, posto que sempre se reportaram a um prédio urbano (não rústico ou misto), que claramente identificaram como sendo “destinado a habitação, com uma área coberta de 138 m2 e uma área descoberta de 2.662 m2, é constituído por cave com 5 divisões, destinada a garagem e arrumos, por rés-do-chão com 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor” – cf. artigos 2º, 7º, 9º, 13º a 15º, 18º e 27º da petição inicial.

E é relativamente a este prédio, assim identificado e delimitado, que as autoras formulam a sua pretensão de ver reconhecido o seu direito de propriedade, aludindo especificamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... – cf. artigo 28º da petição inicial e alínea a) do petitório.

Aliás, foi precisamente e apenas relativamente a este prédio que diligenciaram pela junção da respectiva caderneta predial, apresentada com a petição inicial.

De igual modo, foi relativamente a esta realidade física que as rés exerceram o seu direito de defesa, como se afere dos artigos 15º, a 17º, 19º e 20º da contestação, assim como foi especificamente quanto a ela que a ré C deduziu o seu pedido reconvencional.

E também os posteriores requerimentos apresentados pelas partes, na sequência de convite ao aperfeiçoamento, não introduziram nenhuma alteração quanto ao objecto do direito de propriedade que pretendiam fazer valer, reportando-se concretamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., sem qualquer tipo de alusão à globalidade do prédio descrito sob o número ..., ou seja, sem que tenha estado em discussão nos autos quer o prédio rústico com a área de 35 000 m2, quer o urbano inscrito na matriz sob o artigo ... – cf. requerimentos das partes de 10 de Abril, 11 de Abril e 4 de Junho de 2018.

Têm, pois, razão, as recorrentes.

Se as autoras formularam um pedido de reconhecimento do direito de propriedade e restituição de um determinado prédio urbano e sendo esse o prédio cuja ocupação ilícita imputam às rés, não podia o tribunal recorrido declarar tal direito sobre coisa diversa e menos ainda condenar as rés, sendo esse o caso, na restituição de imóvel, ou parte de imóvel, relativamente ao qual não foi alegada qualquer ocupação sem título.

Ocorre, pois, a suscitada nulidade da decisão por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido."

[MTS]