Causa de pedir; alteração;
facto superveniente*
1. O sumário de RP 5/2/2024 (3389/20.1T8MTS-A.P1) é o seguinte:
I - O art.º 260.º do Código do Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, o que implica que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.
II - No que se refere à causa de pedir, sendo alegados novos factos sucedâneos dos primeiros, suportados na mesma situação original, é de adotar uma interpretação flexível do art.º 265.º do C.P.C., considerando-se não existir ampliação da causa de pedir em sentido próprio.
III - É o que ocorre na situação em que na petição inicial os inquilinos invocam ausência de conservação de imóvel pelo senhorio, que ocasiona que precipitação abundante impeça a utilização plena do arrendado e cause estragos e sofrimentos, vindo, na pendência da ação, a reportar novo evento de pluviosidade, no mesmo contexto de omissão, ocasionador de novos prejuízos.
IV - Atentos os princípios da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais, desde que respeitados os requisitos de superveniência dos factos ou do seu conhecimento, através de articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir.
V - O processo civil é conformado pelo princípio do dispositivo, mas este deve ser temperado por uma perspetiva flexível e substancialista que assegure uma tutela jurisdicional adequada à situação sob litígio.
VI - Por isso, é de apreciar a pretensão formulada pela parte que esta qualifica como correspondendo a ampliação do pedido, mas que respeita os requisitos próprios do articulado superveniente, sob esta perspetiva.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"IV - Subsunção jurídica [...]
b - Se o requerimento dos AA. deveria ter sido admitido nos termos formulados ou se o tribunal deveria ter usado dos seus poderes de gestão e de adequação processual para o convolar, sujeitando-o à disciplina do articulado superveniente.
"IV - Subsunção jurídica [...]
b - Se o requerimento dos AA. deveria ter sido admitido nos termos formulados ou se o tribunal deveria ter usado dos seus poderes de gestão e de adequação processual para o convolar, sujeitando-o à disciplina do articulado superveniente.
Os recorrentes alegam, em síntese, que o seu requerimento deveria ter sido admitido por nos encontrarmos em face de pedido decorrente dos mesmos factos que consubstanciavam a causa de pedir primitiva.
Subjaz à pretensão recursória dos AA. a alegação de que houve lugar a ampliação do pedido, mas não da causa de pedir.
Vejamos se lhes assiste razão.
Nos termos do art.º 552.º/1/d) do C.P.C., é na petição inicial que devem ser expostos os factos que constituem a causa de pedir que servem de fundamento à ação.
O art.º 260.º do Código de Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, o que significa que após a citação do réu a instância deverá manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e causa de pedir, ressalvando, as exceções legalmente previstas.
No que se refere ao pedido e à causa de pedir, as exceções estão previstas nos arts. 264.º e 265.º do C.P.C..
Nos termos do disposto no art.º 264.º do C.P.C., a lei admite a alteração ou ampliação do pedido e da causa de pedir, por acordo das partes em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se tal perturbar inconvenientemente a instrução, discussão ou julgamento do pleito.
Consigna, por seu turno, o art.º 265.º/1 que, na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor.
Nos termos do n.º 2 do art.º 265.º, o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido ou pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
Consigna o n.º 6 do mesmo art.º 265.º que é permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.
A propósito da ampliação do pedido, Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 93) ensinava: a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.
Em idêntico sentido vejam-se o ac. TRL de19/5/1994, proc. n.º 0070956 Rodrigues Condeço; o ac. TRL de 25/6/1996, proc. n.º 0012701, Guilherme Pires e o ac. TRL de18/1/2011, proc. n.º 271/09.7TBCDV-A. L1-1, Manuel Marques, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Constituem exemplo de ampliação em “consequência do pedido primitivo” a situação em que o autor pede a restituição de um imóvel, vindo depois a pedir uma indemnização pelo esbulho desse mesmo prédio e o caso em que o autor pede a condenação do réu no pagamento duma dívida, vindo posteriormente a pedir a condenação no pagamento de juros de mora. Trata-se de situações em que o autor poderia desde logo ter formulado a sua pretensão ampliada na petição inicial.
No caso dos autos, os AA. invocaram factos novos supervenientes ao termo dos articulados e formularam nova pretensão indemnizatória.
O pedido adicionalmente formulado não poderia estar, em sentido próprio contido no pedido primitivo, pelo simples motivo de que a segunda vaga de pluviosidade que terá conduzido ao desabamento de outros tetos e prejuízos inerentes ocorreu em momento ulterior ao da petição inicial. [...]
Em suma, não se poderá deixar de entender que houve lugar a ampliação do pedido. Mas fundar-se-á esta em ampliação da causa de pedir? Consubstanciarão, os eventos reportados pelos AA., referentes a uma vaga de precipitação, infiltrações e estragos posterior à data da entrada do processo em juízo, uma nova causa de pedir para os efeitos visados pelo art.º 265.º/1 do C.P.C.? É que, como se viu, nos termos do n.º 2 do art.º 265.º, o autor só poderá ampliar o pedido se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
À luz do disposto no art.º 581.º/4 do C.P.C., considera-se como causa de pedir a factualidade, afirmada pelo autor, de que se faz derivar o efeito jurídico pretendido. De acordo com a teoria da substanciação, essa factualidade deverá traduzir o facto gerador do direito, individualizando o objeto do processo, de modo a prevenir a repetição da causa. Cabe ao autor definir o objeto da ação, formulando o pedido e a causa de pedir, indicando os factos concretos em que baseia a pretensão que quer acautelar. A causa de pedir constitui, afinal, o cerne da ação.
Na petição inicial, os inquilinos invocam ausência de conservação de imóvel pelo senhorio, que ocasiona que precipitação abundante impeça a utilização plena do arrendado e cause estragos e sofrimentos. Na pendência da ação, reportaram novo evento de pluviosidade, no mesmo contexto de omissão do dono do prédio, ocasionador de novos prejuízos. No primeiro dos casos, os eventos têm como área dominante da habitação o teto da sala. No segundo, o teto do quarto e da cozinha.
No ac. da Relação de Lisboa de 5/7/2018 (proc. n.º 1175/13.4T2SNT.B.L1-2, Arlindo Crua, também consultável em www.dgsi.pt, tal como os demais invocados, salvo indicação diversa) sustentou-se que se os factos invocados na ampliação se traduzirem em meros factos complementares duma causa de pedir complexa já alegada na petição inicial, como sejam a concretização de um dano já alegado, é processualmente admissível a ampliação do pedido, sem necessidade do consentimento da parte contrária.
Também no ac. da Relação de Évora de 10/10/2019 (proc. n.º 38/18.1T8VRL-A.E1, Cristina Dá Mesquita) se admitiu a ampliação do pedido que tenha essencialmente causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelos menos integradas no mesmo complexo de factos.
Confira-se o sumário do ac. do STJ de 19-06-2019 (proc. 22392/16.0T8PRT.P1.S1, Oliveira Abreu, disponível em sumários do Supremo):
IV- Estando no âmbito de uma ação declarativa de indemnização por responsabilidade civil, em razão de acidente de viação sofrido pelo demandante, cuja causa de pedir é complexa, temos de convir que não é qualquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da respetiva causa de pedir da ação, pois, ao ter-se alegado factos concretos no articulado inicial com vista a demonstrar os danos causados pelo ato ilícito, cuja indemnização se reclama, temos a causa de pedir como definida, não se alterando, de todo, se o demandante se limita, em momento posterior aos articulados, e até à audiência final, acrescentar novos danos, reconhecendo-se, claramente, estes novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar os danos decorrentes do facto ilícito, como factos que complementam os factos jurídicos donde emerge a pretensão jurídica deduzida, como factos que acrescentam outras dimensões do dano decorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação, sem que se possa afirmar, por isso, que a demanda passa a ter uma dissemelhante causa de pedir ou passa a estar sustentada em fundamento que antes não possuía.
Lê-se ainda no ac. da Relação do Porto de 27-1-2022 (proc. 1218/21.8T8AMT-A.P1): embora a lei não defina o que deve entender-se por “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, a interpretação de tais conceitos deve orientar-se no sentido de a ampliação radicar numa origem comum. Esse é o entendimento que vem sendo sustentado na doutrina e na jurisprudência, ao defenderem que a ampliação do pedido será processualmente admissível, por constituir desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, quando o novo pedido (objeto de ampliação) esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicial, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, ou da reconvenção, sem recurso a invocação de novos factos. Ou seja: a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da ação, pressupondo-se, para tanto, que dentro da mesma causa de pedir o pedido primitivo se modifique para mais. [...]
Adota-se uma interpretação flexível do art.º 265.º do C.P.C.. Surgindo a nova pretensão como sucedânea da primeira, sendo suportada pela situação original que deu causa ao direito do autor, considera-se não existir verdadeira ampliação da causa de pedir.
No caso vertente, o núcleo de factos essenciais que dão causa à ação são os mesmos: aqueles que integram o estado de conservação deficitário da habitação dos AA..
Esta abordagem da questão afigura-se-nos, porém, em bom rigor, despicienda. Na verdade, a matéria alegada pelos AA. no articulado por si configurado como de ampliação do pedido consubstancia um verdadeiro e próprio articulado superveniente, nada impedindo que no âmbito deste haja lugar a ampliação do pedido. O pedido primitivo e o pedido adicional têm subjacentes o mesmo complexo de factos, ainda que a ampliação importe a alegação de factos novos. Esta situação encontra-se reconhecida na lei processual civil através do recurso ao articulado superveniente, bastando que se reporte a factos que revistam essa caraterística de superveniência, isto é, que ocorram ou sejam conhecidos posteriormente aos articulados, nos termos e prazos previstos.
Efetivamente, nos termos do disposto no art.º 588.º/1 do C.P.C. os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.
Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º, dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tivesse conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.
Leia-se no ac. da Relação de Lisboa de 22-02-2018 (proc. 1951/07.7TBTVD-A.L1-6, António Santos): a superveniência de que fala o dispositivo tanto pode ser a objetiva - quando os factos têm lugar já depois de esgotados os prazos legais de apresentação pela parte dos articulados -, como subjetiva, ou seja, quando os factos ainda que tenham tido lugar em momento anterior ao da apresentação pela parte do/s seu/s articulado/s, certo é que apenas chegaram ao seu conhecimento já depois de esgotados os prazos legais de apresentação dos aludido/s articulado/s.
Vem-se defendendo, por força do princípio do princípio da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais, que, através do articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir (cf. José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, p. 170, Coimbra Editora, p. 170, e Código de Processo Civil Anotado, 2001, p. 342 e Miguel Teixeira de Sousa, in As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, pp. 189 e 190, 1990, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pp. 299-300, e também em blogippc.blogspot.pt).
Vejam-se ainda Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª ed., p. 529): É (…) possível a modificação simultânea não só quando alguns dos factos que integram a nova causa de pedir coincidem com factos que integram a causa de pedir originária, mas também quando, pelo menos, o novo pedido se reporta a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira (cf.).
É precisamente o que ocorre no caso vertente."
*3. [Comentário] Noutro lugar escreveu-se o seguinte:
"Não constitui [...] uma alteração da causa de pedir a alegação de um facto complementar superveniente (num articulado superveniente: cf. art. 588.º, n.º 1). Assim, por exemplo, é possível invocar novos danos decorrentes de um facto ilícito ou novos factos que indiciam as deficiências na construção de um imóvel apresentadas como causa de pedir [---] , sem submeter essa invocação aos requisitos estabelecidos pelo art. 265.º, n.º 1." (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 464).
MTS