Prova testemunhal;
poderes do tribunal; inquirição oficiosa
1. O sumário de RP 20/2/2024 (119553/16.9YIPRT-D.P1) é o seguinte:
A inquirição de uma pessoa como testemunha, por iniciativa do tribunal, à luz do princípio do inquisitório e da sua concretização na regra do nº 1 do art. 526º do CPC, não visa a superação da ineficiência das partes, não cabendo ao tribunal interferir no ónus que lhes cabe quanto à apresentação e produção dos meios de prova tendentes à demonstração dos factos que lhe convenham, designadamente intervindo a favor de uma delas e convocando testemunhas que ela não ofereceu nos termos legalmente previstos, quando esta, podendo fazê-lo, não providenciou nesse sentido, cumprindo as regras processuais correspondentes.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"É incontroverso que a regra que disciplina o oferecimento de prova, em acções como a presente, é o nº 4 do art. 3º do D.L. 269/98, de 1/9, nos termos da qual as provas são oferecidas na própria audiência, cabendo às partes a apresentação das testemunhas.
Sem prejuízo disso, no caso em apreço, todos os actos praticados na 1ª audiência de julgamento foram anulados, tendo sido decretada a necessidade da sua repetição, nos termos do art. 605º, nº 1 do CPC.
Por isso, quando foi iniciada a nova audiência de julgamento, em 10/5/2023, cabia ao autor a apresentação das testemunhas que pretendia que fossem inquiridas.
Não é objecto deste recurso saber se a pretensão do autor quanto às circunstâncias da convocatória das testemunhas por si indicadas deveria ter sido deferida, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo. Aqui, cumpre apenas aferir se, atenta a forma como a imprescindibilidade do depoimento de FF foi alegada, na própria audiência de julgamento, depois de ali ter sido afirmado que foi ele quem tratou do negócio com o réu primitivo, de quem também não é possível obter esclarecimentos, caberia ao tribunal, de per si, determinar a sua comparência.
É pertinente convocar o disposto no art. 526º, nº 1 do CPC, que dispõe: “1 - Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.”
Esta regra, como recorrentemente se afirma, constitui uma concretização do princípio do inquisitório, prescrito no art. 411º do CPC, nos termos do qual se estabelece dever o juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Todavia, nem este princípio, nem aquela regra, têm por fim a intervenção do tribunal na superação da ineficiência das partes. Ou, dito de outro modo, não caberá ao tribunal interferir no ónus imposto às partes quanto à apresentação e produção dos meios de prova tendentes à demonstração dos factos que lhe convenham, designadamente intervindo a favor de uma delas, quando esta, podendo fazê-lo, não providenciou nesse sentido, designadamente oferecendo e tratando da apresentação ou convocação de testemunhas segundo o regime processual aplicável.
Isto mesmo referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Pires de Sousa, CPC Anotado, vol.I, pg. 577-578, em anotação ao art. 526º: “A intervenção oficiosa do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas designadamente através da omissão de apresentação do requerimento probatório em devido tempo ou sequer da alteração do rol de testemunhas até ao limite definido pelo art. 598º, nº 2. (…) O que este preceito pretende acautelar és possibilidade de o juiz inquirir uma testemunha cuja relevância se alcançou durante o processo/audiência e, sobretudo, numa fase em que as partes já não podem arrolar tal testemunha.”
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC Anotado., Vol II, pg. 416) referem ainda a reserva de algumas legislações quanto ao exercício deste poder pelo juiz, em razão dos riscos que comporta para a sua imparcialidade.
Também a jurisprudência vem acolhendo tal interpretação do regime, como se constata, entre outros, no Ac. do TRG de 04-03-2013 (proc. nº 293/12.0TBVCT-J.G1, Relator: ANA CRISTINA DUARTE, em dgsi.pt) “Este poder, complementar, de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste, não podendo configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos negligentes das partes.”
No caso sub judice, há muito que o autor conhecia a utilidade do depoimento de FF, de forma alguma se podendo sustentar que só em audiência e na sequência das declarações prestadas por ele próprio e pela ré BB foi percepcionada essa necessidade.
O autor já arrolara FF, seu filho, como testemunha em 2017, no julgamento que foi anulado. Refere o autor, ora apelante, que a utilidade desse depoimento resulta de ter sido ele que tratou de todo o negócio que é causa de pedir nestes autos. Por tudo isto, é absolutamente óbvio aquilo que antes se afirmou: de forma alguma se admite que só em audiência e na sequência da prova até então produzida tenha surgido, quer para as partes, quer para o tribunal - designadamente em função da respectiva razão de ciência - a percepção de que teria utilidade a audição dessa pessoa como testemunha.
Nestas circunstâncias, não se verificam os pressupostos da intervenção do tribunal, determinando por sua iniciativa a inquirição de uma testemunha que a parte tinha por essencial ouvir e que, apesar disso, não ofereceu nos termos legalmente previstos.
Sabe-se que o autor mantém em discussão, sob recurso, a questão relativa a ter providenciado, atempadamente e nos termos processualmente estabelecidos, em ordem à convocatória dessa testemunha para depor. Isso é, todavia, o objecto de outro recurso, do qual o presente foi autonomizado. Sobre tal questão não pode este tribunal pronunciar-se. No entanto, qualquer que seja a conclusão sobre a discussão dessa matéria, qualquer que seja o resultado desse recurso, a situação jamais haverá de ser superada por via de uma intervenção oficiosa e correctiva do tribunal, suprindo- se, se vier a ser entendido ter sido esse o caso, a ineficácia instrutória da parte.
É, de resto, por isso mesmo que se rejeita a alegação do apelante quanto a ver-se vítima de uma violação do princípio de igualdade de armas, por muito ser consentido à parte contrária, ao mesmo tempo que se lhe impede o direito à prova. Pelo contrário, a solução anteriormente afirmada observa, isso sim, esse princípio de igualdade, sujeitando ambas as partes ao mesmo regime processual de exercício dos seus direitos. Desigualdade ocorreria se se permitisse a uma das partes a realização de fins processuais em incumprimento de regras que foram impostas à parte contrária, substituindo-se-lhe o tribunal para assegurar a realização desses fins, em suprimento da sua ineficácia, como, afinal, pretende o apelante.
Igualmente se rejeita que a decisão recorrida incorra na violação de qualquer preceito constitucional, alegação essa que o apelante enuncia de forma que nem sequer concretiza por qualquer forma."
[MTS]
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