Processo de inventário;
reclamação de bens; contraditório
1. A nulidade por omissão de pronúncia pressupõe a não apreciação de questões jurídicas de que o tribunal devia conhecer e o tribunal deve conhecer as questões que são submetidas à sua decisão, balizadas pelos pedidos formulados em conformidade com as causas de pedir invocadas, e cujo conhecimento não haja ficado preterido por prejudicialidade. Mas tal nulidade verifica-se apenas nos casos em que há omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada, e não de todas as razões ou argumentos invocados pelas partes. Não ocorre essa nulidade quando, embora de forma indirecta ou tácita, a decisão acaba por apreciar a questão em causa.
2. Em caso de reclamação contra a relação de bens, pode o cabeça de casal responder em, em 30 dias, não havendo em princípio mais articulados. O legislador teve o claro objectivo de concentração da suscitação de todos os meios de defesa.
3. Em certas situações, em que o cabeça de casal invoque um facto novo no articulado de resposta, e esteja de boa-fé, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao Juiz, através dos poderes de gestão processual e de adequação formal, admitir um articulado de resposta, ou, por analogia com o disposto no art. 3º, nº 4, deferir esse contraditório para a audiência prévia ou para a conferência de interessados.
4. O processo de inventário não se destina a fazer investigação sobre as despesas e liberalidades feitas pelo de cuius ainda em vida, e ainda atentas as regras da alegação de factos constitutivos do direito e do ónus da prova. A investigação tem de ser feita extra-judicialmente pelo interessado para recolher os factos e as provas que lhe permita intentar uma acção.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"B- Julgamento da matéria de direito
B1. A questão de saber se os requerimentos de 12/09/2023, 14/09/2023 e 15/09/2023, apresentados pelos reclamantes, eram admissíveis, devendo ficar nos autos, e nomeadamente, se devia ser considerada a prova testemunhal e documental aí indicada.
Na resposta, o recorrido vem dizer que vigora aqui o princípio da concentração da defesa e da preclusão, sendo que, posteriormente à resposta do cabeça-de-casal à reclamação da relação de bens apresentada, não está previsto na lei qualquer outro articulado. Mais, chama a atenção para que se o Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, previsto nos arts. 1082º e ss. do CPC, se encontra sujeito aos demais princípios do processo declarativo, nomeadamente ao do contraditório, previsto no art. 3º, nº 3 do CPC, não será menos verdade que o mesmo se encontra também submetido ao preceito legal do seu nº 4, segundo o qual, às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final. O que, in casu, mutatis mutandis, corresponderia à audiência prévia prevista no art. 1109º ou, não havendo lugar à mesma, à conferência de interessados do art. 1111º do CPC. Cita jurisprudência.
Ora bem.
Aproveitando o que se escreve no Acórdão desta Relação de 30 de Março de 2023 (Anizabel Sousa Pereira),
“também Lopes do Rego, in Julgar on line, Dezembro de 2019, refere “Este novo modelo procedimental parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte; e assim, o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19 comporta:I) Uma fase de articulados – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo;II) Uma fase de saneamento, em que o juiz, após realização das diligências necessárias, e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia, deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual – e após contraditório das partes – despacho contendo a forma à partilha (antes de convocar a conferência de interessados);III) Um procedimento específico para a verificação e redução de eventuais inoficiosidades, através de um incidente com a estrutura de uma acção enxertada no inventário;IV) A fase da partilha, consubstanciada, desde logo, nas diligências e actos que integram a conferência de interessados…;Só depois de encerradas estas diligências se passa à elaboração do mapa da partilha, concretizando, na sequência do resultado dessas várias diligências anteriores, os bens que integram o quinhão hereditário de cada interessado – e encerrando-se naturalmente o processo com a prolação de sentença homologatória”.Concluiu aquele mesmo autor “ com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de actos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último.”
Vejamos. Os interessados directos na partilha podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação, apresentar reclamação à relação de bens (art. 1104º,1,d CPC).
Se for deduzida reclamação, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada, sendo que as provas são indicadas com os requerimentos e respostas (art. 1105º,1,2 CPC). E a questão é decidida depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz (art. 1105º,3).
Existe ainda a possibilidade (art. 1109º) de o Juiz convocar uma audiência prévia se o considerar conveniente, nomeadamente por se lhe afigurar possível a obtenção de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão.
Finalmente, nos termos do art. 1110º,1,a CPC o juiz profere despacho de saneamento do processo em que, entre outras coisas, resolve todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, e convoca a conferência de interessados.
Para nos ajudar a determinar o regime concreto que daqui emerge, vejamos o que escreve Domingos Silva Carvalho de Sá (Do inventário, 8ª edição, fls. 141 e ss):
“a falta de relacionação de bens é arguida através de requerimento. Nesse requerimento devem ser especificados os bens em falta. (…) O cabeça de casal ou o seu mandatário têm, depois, o prazo de 30 dias para responder, podendo tomar as seguintes atitudes:a) confessa expressamente a existência de bens a relacionar e a obrigação de o fazer, alegando paralelamente que não os inclui na relação de bens por mero lapso ou por desconhecimento.b) não se pronuncia, nega expressamente a existência dos bens ou responde de molde a concluir-se que desconhece a sua existência.Neste último caso o juiz procederá à recolha da prova indicada pelos interessados nos seus requerimentos e mandará proceder às diligências que julgue necessárias.c) confirma a existência dos bens mas declara-se impossibilitado de os relacionar por estarem em poder de outra pessoa, de um terceiro. Neste caso seguir-se-ão os termos do incidente já analisado supra e previsto no art. 1101”.
Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres (O Novo Regime do Processo de Inventário, fls. 81) chamam também a atenção para que o legislador teve aqui o claro objectivo de concentração da suscitação de todos os meios de defesa, e por isso obrigou os interessados a, no mesmo articulado, cumular as seguintes questões: oposição ao inventário, impugnação da legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações, reclamação à relação de bens e impugnação dos créditos e dívidas da herança.
E acrescentam:
“este ónus de concentração das reclamações contra a relação de bens no âmbito da oposição ao inventário é consequência de a fase inicial do processo se não encerrar sem que se mostre apresentada pelo cabeça de casal a relação de bens (cf. art. 1097º,3,c e 1102º,1,b)”.
E, mais adiante, acrescentam:
“no articulado de contestação, qualquer interessado não requerente do inventário pode alegar factos novos (cf. art. 1104º). Estes factos podem ser contestados no articulado de resposta (nº 1). O problema da alegação de factos novos no próprio articulado de resposta não se coloca exactamente nos mesmos termos, nomeadamente porque a tramitação do processo de inventário não comporta qualquer tréplica ao articulado de resposta. Isto justifica as seguintes soluções:a) Antes de mais, importa verificar se o interessado que invoca um facto novo no articulado de resposta se encontra de boa-fé, isto é, se a esse interessado não teria sido exigível que tivesse alegado o facto em momento anterior (que pode ser o do requerimento inicial ou o do articulado de contestação). Não há justificação para um requerente de inventário alegar um facto novo (não superveniente) no articulado de resposta, a não ser que a sua alegação resulte de algum facto que tenha sido invocado, pela primeira vez, no articulado de contestação. Por exemplo: no articulado de contestação, um interessado alega a existência de um sucessor testamentário; qualquer outro interessado pode alegar no articulado de resposta a invalidade do respectivo testamento.b) Se o interessado puder ser considerado como agindo de boa-fé, então o juiz deve admitir a alegação do facto novo no articulado de resposta. Nesta hipótese, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao Juiz, através dos poderes de gestão processual (art. 6º,1) e de adequação formal (art. 547º), admitir um articulado de resposta, ou, por analogia com o disposto no art. 3º, nº 4, deferir esse contraditório para a audiência prévia (art. 1109º) ou para a conferência de interessados (art. 1111º)”.
Voltando agora ao caso concreto, o Tribunal recorrido decidiu que apresentada a resposta à reclamação de bens, não se podia seguir uma resposta à resposta, por não ser processualmente admissível.
E com efeito, como acabámos de ver na citação anterior, não é processualmente admissível um terceiro ou quarto articulado. A lei só prevê o articulado de contestação ou oposição, depois prevê a resposta a esse articulado, e pára por aí.
É porém verdade que, em certos casos, nomeadamente os indicados pelos autores acabados de citar, pode haver necessidade de permitir uma resposta à resposta. Só em concreto é possível saber se é esse o caso.
E fazendo essa análise neste caso concreto, o que vemos ?
Na reclamação contra a relação de bens, os interessados colocam as seguintes questões: a) a questão prévia dos documentos comprovativos da situação no registo predial dos imóveis; b) discordância quanto à verba nº 1; c) discordância quanto ao passivo / benfeitorias; d) discrepância quanto à inscrição matricial da verba nº 3; e) valor dos imóveis relacionados.
Por requerimento de 31/8 o cabeça de casal respondeu às questões suscitadas: a) quanto ao registo predial dos imóveis; b) quanto à verba nº 1 faz a afirmação genérica de que “não pode deixar de referir que, em vida, a inventariada partilhou dinheiros entre os filhos”, e “não se aceita a reclamação deduzida, nem há quaisquer diligências a efectuar para o efeito”; c) quanto ao passivo, dizendo em síntese que o conceito de passivo não será o mais adequado para classificar a descrição das obras que foram feitas no imóvel doado, mas não vemos outra forma de dar cumprimento ao disposto no art. 2115º do CC. E afirma que o imóvel deverá ser avaliado com exclusão dessas benfeitorias, no interesse de todos; d) quanto à verba nº 3; e) quanto ao valor dos imóveis relacionados, dizendo que oportunamente e se for necessário, será requerida a avaliação de todos os imóveis.
Por requerimento de 12/9 vieram os reclamantes responder à resposta, dizendo que reiteravam todos e cada um dos factos alegados no seu anterior requerimento, e pronunciaram-se sobre a alegada partilha em vida de dinheiros entre os filhos, e pronunciando-se ainda sobre outras passagens da resposta inicial. Nomeadamente, e indo ao que aqui mais interessa, dizem: “e se o cabeça-de-casal alega que a inventariada partilhou em vida dinheiros entre os filhos, deverá o mesmo especificar as datas em que tal sucedeu e os valores alegadamente partilhados, bem como referir a proveniência desses dinheiros, acompanhada da respectiva documentação disso demonstrativa, para que tudo fique devidamente clarificado. Pois que a única vez em que o aqui interessado recebeu dinheiro da mão da sua mãe foi por ocasião da partilha por óbito de seu pai, ocorrida em 9 de Fevereiro de 1991, já lá vão longos 32 anos”. Requer pois a notificação do cabeça-de-casal para prestar essas informações.
A 14/9 veio o cabeça de casal dizer que este articulado não tem enquadramento legal, pelo que deve ser ordenado o seu desentranhamento.
Finalmente, a 15/9 vieram os reclamantes dizer que o seu anterior requerimento foi apresentado ao abrigo do disposto no art. 3º, nº 3 do CPC, exercendo o direito de pronúncia sobre questões factuais antes inexistentes nos autos, ou seja, questões novas, bem como sobre os documentos aí juntos.
Quid iuris, quanto a este crescimento quase “tumoral” de articulados?
Para responder, e recordando o que diz Carvalho de Sá, podemos afirmar que na reclamação inicial foi expressa discordância quanto à verba nº 1, mas não foram indicadas quais as verbas que no entender dos reclamantes deveriam ser acrescentadas. Porém, sucedeu que o cabeça de casal acrescentou na sua resposta um facto que é relevante, e que não tinha alegado na relação de bens: a referência a que em vida, a inventariada partilhou dinheiros entre os filhos. E esta alegação de um facto novo e relevante, quer-nos parecer, nesta parte, justifica o exercício do contraditório por parte dos reclamantes. Trata-se, repetimos, de facto que devia ter sido alegado na relação de bens, por poder ser relevante para efeitos de igualização da partilha através do instituto da colação.
Sem concretizar valores e datas, não obstante a afirmação é clara e incontroversa. E estando em causa a igualação da partilha, não podia tal afirmação ter passado em claro. Daí que entendamos legítimo que os recorrentes tenham vindo responder a essa afirmação, sobretudo porque afirmam desconhecer essa partilha.
Claro que nesta fase nada mais se sabe, a não ser a declaração em si mesma. Como os herdeiros são apenas o cabeça de casal e o reclamante, e este declara desconhecer essa partilha, a mesma só pode ser facto pessoal do cabeça de casal, e, logo, terá de ser ele a esclarecer que valores foram partilhados.
Pode dar-se o caso de ele se querer referir à entrega de pequenas quantias, que entretanto caíram no esquecimento.
Ou não.
Na dúvida, tendo tal afirmação sido proferida, deve a questão ser esclarecida pela única pessoa que, aparentemente, o poderá fazer.
Assim, tal resposta, nessa parte, é admissível, devendo o Tribunal recorrido pronunciar-se sobre a questão suscitada pelos reclamantes, através da prévia notificação do cabeça-de-casal para especificar as datas em que a inventariada partilhou em vida dinheiros entre os filhos, indicando os respectivos valores, bem como a proveniência desses dinheiros, acompanhada da respectiva documentação demonstrativa disso mesmo.
No mais, a decisão mantém-se."
[MTS]