"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/11/2024

Jurisprudência 2024 (53)


Suspeição do juiz;
relação com mandatário; sociedade de advogados*


I. O sumário de RL 20/3/2024 (882/24.0YRLSB-PICRS) (decisão individual) é o seguinte:

1) Considerando que o mandato apenas foi conferida à Sociedade de Advogados onde exerce funções o cônjuge da Sra. Juíza, depois de esta ser colocada com o encargo de tramitar e julgar o processo em questão, será o referido cônjuge, mandatário de uma das partes (que, a par de outros advogados, integra a sociedade de advogados referenciada pela Sra. Juíza, estando acautelado, por isso, o patrocínio da respetiva parte), que ficará impedido de intervir no referido processo, não obstante o aludido mandato, atento o que resulta do disposto no artigo 115.º, n.º 2, do CPC.

2) A mera situação de a Sra. Juíza ter contacto (social) regular com colegas do seu cônjuge não justifica, objetivamente e por si só, a exoneração da Sra. Juíza relativamente ao processo em questão, não se mostrando que, também subjetivamente existam circunstâncias que, por virtude de tal contacto, possam fazer perigar o concreto comportamento do julgador.


II. Na fundamentação da decisão afirma-se o seguinte:

"Pretende a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.

Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.

O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.

O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).

Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.

O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.

Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.

A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.

O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.

Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.

Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.

No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:

a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.

De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).

O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.

Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).

Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.

“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).

*
Importa referir que, no caso em apreço, a Sra. Juíza vem referir que, no processo em questão, foi conferido mandato à Sociedade de Advogados onde exerce funções o seu marido.

Não se verifica situação de impedimento, nos termos do disposto no artigo 115.º, n.º 1, al. d) do CPC, sendo que, de harmonia com o n.º 2 do mesmo preceito, tal impedimento só se verifica quando o mandatário já tenha começado a exercer o mandato na altura em que o juiz foi colocado no respetivo juízo, sendo que, na hipótese inversa, é o mandatário que está inibido de exercer o patrocínio.

O artigo 120.º do CPC - aplicável às situações de escusa – por remissão do artigo 119.º do CPC – salvaguarda diversas situações – tipificadas nas várias alíneas do n.º 1 – em que existe circunstância ponderosa relacional que determina que possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador.

Ora, no caso, nenhuma das alíneas do artigo 120.º consagra tal situação suspeita, não se aferindo, pela mera relação entre mandatário e julgador situação ponderosa que permita suspeita sobre a imparcialidade do julgador.

O contacto e o conhecimento social entre a Sra. Juíza e advogados da sociedade de advogados em questão não justifica, por si só, tal suspeita e, considerando o que se dispõe no artigo 115.º, n.º 2, do CPC, parece estabelecer a lei o critério de solução da situação de proximidade evidenciada pela Sra. Juíza: Considerando que o mandato apenas foi conferida à Sociedade de Advogados onde exerce funções o cônjuge da Sra. Juíza, depois de esta ser colocada com o encargo de tramitar e julgar o processo em questão, será o referido cônjuge, mandatário de uma das partes (que, a par de outros advogados, integra a sociedade de advogados referenciada pela Sra. Juíza, estando acautelado, por isso, o patrocínio da respetiva parte), que ficará impedido de intervir no referido processo, não obstante o aludido mandato.

Ou seja: Objetivamente, a situação de proximidade entre o julgador e o mandatário de uma das partes encontra-se acautelada pela preterição deste intervir na causa.

No mais, como se disse, a mera situação de a Sra. Juíza ter contacto regular com colegas do seu cônjuge não justifica, objetivamente e por si só, a exoneração da Sra. Juíza relativamente ao processo em questão, não se mostrando que, também subjetivamente existam circunstâncias que, por virtude de tal contacto, possam fazer perigar o concreto comportamento do julgador.

Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso.


*III [Comentário] Não se discute a bondade da solução, porque se tem de admitir que quem está "no meio" tem a sensibilidade adequada para apreciar o problema. Dito isto, cabe acrescentar que, para quem está "de fora", causa alguma estranheza que um/uma juiz/juíza possa intervir numa causa na qual uma das partes é representada por um advogado da sociedade na qual o seu marido trabalha.

MTS