Processo de insolvência;
competência material; competência por conexão
I. O sumário de RL 19/3/2024 (3566/20.5T8FNC-H.L1-1) é o seguinte:
1 - Ao aferir a competência em razão da matéria do juízo de comércio para uma ação intentada por apenso a um processo de insolvência, não se tratando de uma ação cujo objeto esteja elencado em qualquer das alíneas do nº1 do art. 128º da LOSJ, há que aferir se se trata de um incidente ou apenso do processo de insolvência, caso em que ocorrerá competência por conexão.
2 - É o caráter universal da insolvência que explica o seu efeito agregador e traça o critério e limites para as causas que nele devem ser decididas: por regra, o que releve para a insolvência tem que ser decidido no respetivo processo.
3 - Pese embora a epígrafe do art. 85º do CIRE seja “Efeitos sobre as ações pendentes”, os respetivos critérios são aplicáveis também às ações instauradas apenas após a declaração de insolvência.
4 - Numa ação intentada contra o insolvente e terceiro em que se pede a declaração de nulidade de um contrato de arrendamento do único imóvel apreendido para a massa, estão preenchidos os requisitos de conveniência para os fins do processo, de respeitar a questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente e de o respetivo resultado poder influenciar o valor da massa.
5 - A questão da competência em razão da matéria para a apreciação de um pedido subsidiário, é vista pela lei como requisito de admissibilidade do próprio pedido subsidiário, nunca colocando em causa a instância do pedido principal.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"1. Relatório
Massa Insolvente de ER, intentou ação declarativa sob a forma comum contra ER e OU, Lda, pedindo: a) seja declarada a nulidade, por simulação, do contrato de arrendamento celebrado em 4 de Maio de 2018 entre o 1.° R. / Insolvente, na qualidade de senhorio, e a 2ª R. na qualidade de arrendatária; ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente, b) seja julgada procedente a impugnação pauliana, declarando-se a ineficácia daquele contrato de arrendamento. [...]
4. Fundamentos do recurso
Está em causa o despacho proferido em sede de saneamento da ação que julgou improcedente a arguida exceção de incompetência em razão da matéria do juízo de comércio para julgar ação visando a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de arrendamento tendo por objeto um bem apreendido para a massa insolvente – e cuja propriedade não se encontra em discussão.
A decisão recorrida, que decidiu pela competência do Juízo de Comércio, começou por citar o art. 128º da LOSJ e considerou que, não sendo o caso dos autos subsumível a nenhuma das alíneas do nº 1, cabia apreciar se a ação deve correr por apenso ao processo de insolvência, já que, se assim for, o juízo de comércio – competente para o processo de insolvência por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 128.º – será igualmente competente (por conexão) para preparar e julgar a ação, por força do disposto no n.º 3 da norma citada. Analisou, seguidamente o art. 85º nº1 do CIRE [---] e, com apoio em jurisprudência citada apontou que a norma abrange não só as ações que se encontrem pendentes à data da declaração de insolvência, mas também as que venham a ser instauradas após essa data.
Atingido este ponto o tribunal fundamentou o caso concreto nos seguintes termos: “Conforme decorre do teor da petição inicial, a massa insolvente de ER veio peticionar que o contrato de arrendamento datado de 04 de Maio de 2018, que onera o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Funchal sob o n.º … – e que foi apreendido a favor da massa insolvente por ser da titularidade do insolvente –, seja declarado nulo, com fundamento na sua simulação.
Do atrás enunciado resulta, de forma patente, que se está perante uma acção de natureza exclusivamente patrimonial em sede da qual se discutem questões relativas a um bem compreendido na massa insolvente.
Por outras palavras: o resultado da acção afectará o conteúdo da massa insolvente e, consequentemente, poderá influenciar o respectivo valor.
Verifica-se, assim, que a presente acção se enquadra no disposto do artigo 85.º, n.º 1, do CIRE.
Por conseguinte, estando verificados os pressupostos do artigo 85.º, n.º 1, do CIRE, a presente acção corre por apenso ao processo de insolvência, cabendo, por isso, no âmbito de competência dos juízos de comércio, por força do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.” [...]
Apreciando: [...]
Estabelece o art. 65º do Código de Processo Civil: «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.»
O Juízo de Comércio, precisamente, é um tribunal de competência especializada, nos termos do art. 81º, nº3, al. i) da Lei nº 62/2013 de 26/08 (Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOSJ).
A este Tribunal cabe conhecer do elenco de matérias preceituado no art. 128º da LOSJ, independentemente da forma de processo aplicável.
A determinação da competência deste tribunal é, assim, feita através da subsunção dos pedidos feitos a juízo às disposições daquele art. 128º da LOSJ.
A norma do art. 128º da LOSJ tem a sua fonte no anteriormente vigente art. 89º da LOFTJ (Lei nº3/99 de 13/01), prevendo-se, nos mesmos termos gerais, a competência dos então tribunais de comércio e agora juízos de comércio. [...]
Prescreve o nº1, al. a) do preceito que «1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;»
Nos termos do nº 3 do mesmo artigo: «3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.»
Ou seja, o percurso decisório seguido pelo tribunal recorrido está absolutamente correto: não sendo uma ação cujo objeto esteja elencado em qualquer das alíneas do nº 1 do art. 128º da LOSJ, há que aferir se se trata de um incidente ou apenso do processo de insolvência, por apenso ao qual foi, efetivamente, intentada.
Como referido pelo apelante, a ação em causa não está prevista no art. 86º do CIRE, que regula a apensação entre processos de insolvência, não se trata de uma ação relativa a dívida da massa insolvente (art. 89º), nem da verificação ulterior de créditos (146º). Aliás, nenhum destes preceitos foi sequer mencionado para fundamentar o despacho recorrido. [...]
É o caráter universal da insolvência que explica o seu efeito agregador e traça o critério e limites para as causas que nele devem ser decididas: por regra, o que releve para a insolvência tem que ser decidido no respetivo processo. [...]
É em consequência direta desse caráter universal [---] que o art. 85º, abrindo o capítulo dos efeitos processuais da declaração da insolvência, prescreve que:
«1 - Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.2 - O juiz requisita ao tribunal ou entidade competente a remessa, para efeitos de apensação aos autos da insolvência, de todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.3 - O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as acções referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária.»
Como se decidiu e não foi sequer questionado pelos apelantes, pese embora a epígrafe deste preceito seja “Efeitos sobre as ações pendentes”, os respetivos critérios são aplicáveis também às ações instauradas apenas após a declaração de insolvência [---]. Na verdade, uma vez intentadas estão pendentes e os critérios aplicam-se-lhes.
De acordo com o art. 85º nºs 1 e 2 podem/devem ser apensadas ao processo de insolvência:
- ações intentadas contra o devedor e/ou contra terceiros em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente e cujo resultado possa influenciar o valor da massa;- ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor;- ações nas quais se tenha efetuado qualquer ato de apreensão ou detenção de bens compreendido na massa insolvente.
Nos primeiros dois casos, a apensação, no que toca a processos já pendentes, não é automática – é requerida apenas e necessariamente pelo Administrador de Insolvência e sempre com fundamento na conveniência para os fins do processo de insolvência [---].
No último caso a apensação é oficiosa, como resulta da previsão legal de que o juiz requisita todos os processos em que se tenha efetuado qualquer ato de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.
A previsão do nº 3 completa outras previsões do diploma e dá sentido ao funcionamento do sistema previsto – o Administrador da Insolvência substitui o insolvente em todas as ações referidas nos nºs 1 e 2 mesmo que a ação não seja apensa ao processo de insolvência e independentemente do acordo da parte contrária – o que se conjuga com o disposto 81º nº4, onde se prevê que o Administrador de Insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência e é corolário da privação das faculdades de administração e disposição do seu património por parte do insolvente. [...]
Assim sendo, verificados os requisitos e tratando-se de ação a propor, é também o administrador da insolvência que deve ponderar se aqueles se encontram preenchidos e, se a resposta for positiva, e sendo o caso de uma ação a propor por si em representação da massa, deve intentar a ação desde logo por apenso ao processo de insolvência, controlando o juiz se os requisitos estão verificados. Se estiverem, a ação está abrangida pelo efeito universal da insolvência, e deve ser processada por apenso ao processo respetivo. Se os requisitos não estiverem presentes, haverá, desde logo, que verificar a competência e razão da matéria, dado que a competência por conexão [---] não se verificará, e extrair as consequências devidas.
Os requisitos previstos no art. 85º nº 1, tendo em conta que se trata de ação intentada pela massa insolvente contra o devedor e contra terceiros são os seguintes:
- conveniência para os fins do processo;- ter por objeto a apreciação de questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente;- cujo resultado seja suscetível de influenciar o valor da massa.
As apelantes não questionam o segundo requisito, obviamente verificado, dado que se trata de um pedido de declaração de nulidade de um contrato de arrendamento do único bem imóvel apreendido para a massa e questiona os demais, alegando que a massa nunca esteve impedida de vender o bem e que o arrendamento não é suscetível de desvalorizar o bem.
A apelada defende a verificação de todos os requisitos, argumentando que a procedência da ação irá fazer ingressar na massa o valor correspondente ao incremento patrimonial resultante da declaração de nulidade ou ineficácia do contrato de arrendamento, pois deixará o imóvel apreendido de estar onerado com tal direito. [---]
No caso trata-se de uma questão de conveniência para a liquidação. É certo que o imóvel pode ser vendido arrendado. Mas o respetivo valor será mais baixo se o comprador tiver que aguardar pelo termo do contrato ou terminar o mesmo antecipadamente. O tempo e as despesas refletem-se no preço e quanto menos se conseguir pela venda dos bens apreendidos menos produto haverá a ratear pelos credores. E a liquidação deve ser feita tendo em conta a satisfação dos direitos dos credores, ou seja, pelo melhor preço possível.
Assim, abstratamente, face a uma ação em que se pede a declaração de nulidade de um contrato de arrendamento do único imóvel apreendido para a massa, está preenchido o requisito de conveniência para os fins do processo.
Se a presente ação proceder, o bem em causa poderá ser vendido por um valor mais alto, o que significa que o seu resultado é suscetível de influenciar o valor da massa. O apelante está correto, embora incompleto, quando alega que o valor de um imóvel se determina por outros fatores como a tipologia, localização, etc. Mas no processo de insolvência os bens apreendidos são liquidados, o que significa que o valor que consideramos é o valor de venda nas concretas circunstâncias verificadas o que implica a avaliação do bem de acordo com todas as suas caraterísticas e todos os condicionalismos que podem afetar o seu valor numa venda forçada.
O arrendamento não caduca com a declaração de insolvência – art. 109º do CIRE – pelo que a sua vigência funciona como um ónus que afeta o respetivo preço.
Neste exato sentido escreveu-se no Ac. STJ de 05/04/22 (António Barateiro Martins - 107/20) “Não se olvida que a existência dum contrato de arrendamento (sobre um imóvel apreendido para a massa) possa influenciar o valor da massa, porém, tal não constitui qualquer obstáculo à sua venda/liquidação, devendo naturalmente ser vendido com a informação sobre a “contingência” de vir a ser reconhecido/declarado que sobre o imóvel existe um arrendamento (…)”
Conclui-se, nestes termos, que estão verificados todos os requisitos previstos no art. 85º nº 1 do CPC quanto à presente ação, tendo em conta o pedido principal deduzido, pelo que se encontra verificada a competência material por conexão, sendo, pois, o juízo de comércio competente, em razão da matéria, para o respetivo conhecimento.
Os apelantes defendem ainda, quanto ao pedido subsidiário, a violação do disposto no nº2 do art. 127º do CIRE, onde se prevê que as ações de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não serão apensas ao processo de insolvência. [...]
Ou seja, e seguindo o raciocínio já exposto, inexiste competência por conexão, neste caso, por proibição expressa da lei.
Sucede que o pedido em causa é um pedido subsidiário, ou seja, um pedido a ser apreciado apenas se for improcedente o pedido principal, pelo que a questão da competência em razão da matéria para a sua apreciação é vista pela lei como requisito de admissibilidade do próprio pedido, nunca colocando em causa a instância do pedido principal.
Assim, nos termos do disposto no art. 554º nº 2 do CPC, obstam à admissão de pedidos subsidiários as circunstâncias previstas como impedimento à coligação de autores e réus, i.e. as previstas no art. 37º do mesmo diploma, que incluem a ofensa das regras de competência em razão da matéria.
Sucede que no despacho saneador proferido pelo tribunal a quo, além da decisão recorrida, o tribunal se pronunciou expressamente sobre a admissão dos pedidos subsidiários deduzidos pela A., nos termos do art. 554º, nºs 1 e 2 do CPC, não tendo tal decisão sido impugnada.
Funcionando a questão da competência em razão da matéria, quanto ao pedido subsidiário, como requisito de admissibilidade do próprio pedido, a respetiva admissão ficou coberta pelo caso julgado formado pela decisão de admissão expressa do mesmo."
[MTS]
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