Depoimento testemunhal;
contradita; documento anterior*
I. O sumário de RC 5/3/2024 (488/21.6T8CTB-A.C1) é o seguinte:
1. No incidente da contradita, não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, fazendo valer a sua falsidade, mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a fé que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado.
2. Não estão reunidos os requisitos da contradita, se apenas se invoca que o texto subscrito perante “perito-averiguador” - incumbido pela Seguradora Ré de realizar a averiguação do sinistro -, e por ele elaborado, é contrário ao que a testemunha (arrolada pelo A.) veio dizer em audiência de julgamento.
3. Aquele texto, ou similar, não é equiparável, por exemplo, a anteriores depoimentos testemunhais em processo (judicial) de inquérito ou prestados em audiência de julgamento.
4. Perspetiva contrária potenciaria a multiplicação de situações geradoras do incidente da contradita e sua descaraterização.
"2. Cumpre apreciar e decidir.
A parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer (art.º 521º, sob a epígrafe contradita, do CPC [---]).
A contradita é deduzida quando o depoimento termina (art.º 522º, n.º 1). Se a contradita dever ser recebida, é ouvida a testemunha sobre a matéria alegada; quando esta não seja confessada, a parte pode comprová-la por documentos ou testemunhas, não podendo produzir mais de três testemunhas (n.º 2).
3. O incidente da contradita visa a enfraquecer a força probatória do depoimento já prestado; faz-se um ataque, não ao depoimento propriamente dito, mas à pessoa do depoente; não se alega que o depoimento é falso, que a testemunha mentiu; alega-se que, por tais e tais circunstâncias, ´exteriores` ao depoimento, a testemunha não merece crédito. Só quando a contradita se dirige contra a razão de ciência invocada pela testemunha, é que as declarações desta são postas em causa; mas ainda aqui não se atacam diretamente os factos narrados pelo depoente, só se ataca a fonte de conhecimento que ele aponta. [Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. IV (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, págs. 426/454 e 459 (comentando/anotando os art.ºs 640º e 643º do CPC de 1939, sendo a redação da 1ª parte do corpo do art.º 643º idêntica à do art.º 521º do CPC de 2013). [...]]
Não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, fazendo valer a sua falsidade, mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a fé que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado, de modo a que o juiz não venha a tê-lo em conta, ou o tenha só reduzidamente em conta, no juízo que fará sobre a prova dos factos que dele foram objeto. [Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 589 (a respeito de idêntica disposição do CPC de 1961).]
4. Preceituava o art.º 2514º do Código Civil de 1867 (aprovado por Carta de Lei de 01.7.1867) que a força probatória dos depoimentos será avaliada, tanto pelo conhecimento, que as testemunhas mostrarem ter dos factos, como pela fé que merecem por seu estado, vida e costumes, ou pelo interesse que possam ter ou não ter no pleito, ou, finalmente, pelo seu parentesco ou relação com as partes. [Em sentido idêntico, sobre os fatores capazes de afetarem a fé ou a credibilidade da testemunha, vide Luís Filipe Pires de Sousa, A Prova Testemunhal, pág. 269. [...]]
5. Com o dito incidente pretende-se questionar a credibilidade da própria testemunha, pondo em causa a sua isenção e não diretamente a veracidade do seu depoimento (embora, tal possa acontecer indiretamente, pois que procedendo o incidente, esta veracidade possa ficar afetada pela falta de credibilidade ou isenção da testemunha em causa); dirigindo-se, pois, à pessoa da testemunha - sua idoneidade/probidade -, considera-se que não poderá ser deferido de ânimo leve, antes sendo exigível a prova de factos gravosos que permitam e justifiquem a perniciosa afetação dos seus direitos de personalidade. [Cf. o citado acórdão da RC de 14.12.2020-processo 4911/18.9T8VIS.C1 [consta, ainda, do sumário: «(...) II - Porque o deferimento da contradita constitui um acentuado desmerecimento para os direitos de personalidade da testemunha, com grave afetação da sua presumida idoneidade/probidade, ele apenas pode ser decretado se factos com dignidade/gravidade e força bastante assim o impuserem.»].]
6. No caso em análise, salvo o devido respeito por entendimento contrário, antolha-se evidente que não estão reunidos os requisitos da contradita, porquanto apenas se invoca que o texto subscrito perante o “perito-averiguador” - incumbido (pela Ré) de realizar a averiguação do sinistro - é contrário ao que duas testemunhas (arroladas pelo A.) vieram depois dizer em audiência de julgamento.
Na verdade, nada mais se alegou!
O que se invoca não é suscetível de afetar a razão de ciência e/ou a fé, o crédito ou o merecimento das testemunhas em causa.
O aduzido pela recorrente não assume dignidade e força bastantes para implicar tal gravoso ditame para a pessoa da testemunha e colocar em causa a sua credibilidade. [Ibidem. ]
Ademais, visto o que corporiza os intitulados “depoimento(s) em acidente de viação” - cuja cópia foi reproduzida nos autos [---] -, com todo o respeito, não se compreende como se ousa estabelecer algum paralelismo com os depoimentos testemunhais em processo (judicial) de inquérito ou em audiência de julgamento. [O caso dos autos é diverso das situações objeto dos acórdãos do STJ de 13.10.1998-processo 98A716 [com o sumário: «I - É admissível, face ao disposto no artigo 640, do Código de Processo Civil (disposição reproduzida no atual art.º 521º do CPC), a contradita de uma testemunha com fundamento em o depoimento que prestou em julgamento ser diferente do que havia prestado no processo de inquérito, uma vez que ela visa o enfraquecimento do depoimento, mas não é essencial que o inutilize. (...)»] e da RP de 17.4.1997-processo 9721361[tendo-se concluído: «Face à lei portuguesa não se mostra necessário que o elemento, documento ou circunstância apontada para alicerçar o pedido de contradita relativamente a depoimento prestado em audiência de julgamento tenha a mesma solenidade ou ofereça iguais garantias, já que não se exige propriamente a destruição do depoimento prestado, contentando-se a lei com a prova de um facto suscetível de afetar a credibilidade da pessoa contraditada». [...]], invocados na alegação de recurso e publicados no “site” da dgsi.
Diga-se, ainda, que, a ser acolhida a perspetiva que a Ré diz defender, teríamos, por certo, uma multiplicação (enxamear) de situações geradoras do incidente da contradita e sua (consequente) descaraterização.]
7. Não verificados os pressupostos da contradita, queda prejudicada a pretensão de “junção de documentos” (apenas com fim de realizar o incidente da contradita), pois dúvidas não restam sobre as circunstâncias da sua dedução em juízo [cf., nomeadamente, II. 1. a) e d), supra].
E porque a Ré não apresentou pedido para essa junção desligado daquele concreto circunstancialismo ou enquadramento normativo [---]. Diga-se, ainda, que, a ser acolhida a perspetiva que a Ré diz defender, teríamos, por certo, uma multiplicação (enxamear) de situações geradoras do incidente da contradita e sua (consequente) descaraterização., nada justifica o atendimento da pretensão deduzida, em sede de alegação de recurso, com a invocação do disposto no art.º 423º, n.º 3 [cf. “conclusões 13ª, 14ª e 16ª a 18ª”, ponto I., supra], desde logo, em face da sua manifesta intempestividade.
Acresce que sempre se trataria de questão nova, ou seja, problemática subtraída ao conhecimento do Tribunal a quo, sabendo-se que a apelação tem como limite objetivo a reapreciação das questões julgadas em 1ª instância, e não a introdução de questões novas.
8. Acrescenta-se.
Como também é evidente, coisa completamente diferente é a questão de saber se a contradita deve ser considerada procedente.
MTS