"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/11/2024

Jurisprudência 2024 (56)


Depoimento testemunhal;
contradita; documento anterior*

I. O sumário de RC 5/3/2024 (488/21.6T8CTB-A.C1) é o seguinte:

1. No incidente da contradita, não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, fazendo valer a sua falsidade, mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a fé que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado.

2. Não estão reunidos os requisitos da contradita, se apenas se invoca que o texto subscrito perante “perito-averiguador” - incumbido pela Seguradora Ré de realizar a averiguação do sinistro -, e por ele elaborado, é contrário ao que a testemunha (arrolada pelo A.) veio dizer em audiência de julgamento.

3. Aquele texto, ou similar, não é equiparável, por exemplo, a anteriores depoimentos testemunhais em processo (judicial) de inquérito ou prestados em audiência de julgamento.

4. Perspetiva contrária potenciaria a multiplicação de situações geradoras do incidente da contradita e sua descaraterização.

5. O depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do n.º 3 do art.º 423 do CPC. 


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. Cumpre apreciar e decidir.

A parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer (art.º 521º, sob a epígrafe contradita, do CPC [---]).

A contradita é deduzida quando o depoimento termina (art.º 522º, n.º 1). Se a contradita dever ser recebida, é ouvida a testemunha sobre a matéria alegada; quando esta não seja confessada, a parte pode comprová-la por documentos ou testemunhas, não podendo produzir mais de três testemunhas (n.º 2).

3. O incidente da contradita visa a enfraquecer a força probatória do depoimento já prestadofaz-se um ataque, não ao depoimento propriamente dito, mas à pessoa do depoente; não se alega que o depoimento é falso, que a testemunha mentiu; alega-se que, por tais e tais circunstâncias, ´exteriores` ao depoimento, a testemunha não merece crédito. Só quando a contradita se dirige contra a razão de ciência invocada pela testemunha, é que as declarações desta são postas em causa; mas ainda aqui não se atacam diretamente os factos narrados pelo depoente, só se ataca a fonte de conhecimento que ele aponta[Vide Alberto dos ReisCPC Anotado, Vol. IV (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, págs. 426/454 e 459 (comentando/anotando os art.ºs 640º e 643º do CPC de 1939, sendo a redação da 1ª parte do corpo do art.º 643º idêntica à do art.º 521º do CPC de 2013). [...]]

Não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, fazendo valer a sua falsidade, mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a fé que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado, de modo a que o juiz não venha a tê-lo em conta, ou o tenha só reduzidamente em conta, no juízo que fará sobre a prova dos factos que dele foram objeto. [Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 589 (a respeito de idêntica disposição do CPC de 1961).]

4. Preceituava o art.º 2514º do Código Civil de 1867 (aprovado por Carta de Lei de 01.7.1867) que a força probatória dos depoimentos será avaliada, tanto pelo conhecimento, que as testemunhas mostrarem ter dos factos, como pela fé que merecem por seu estado, vida e costumes, ou pelo interesse que possam ter ou não ter no pleito, ou, finalmente, pelo seu parentesco ou relação com as partes[Em sentido idêntico, sobre os fatores capazes de afetarem a fé ou a credibilidade da testemunha, vide Luís Filipe Pires de SousaA Prova Testemunhal, pág. 269. [...]]

5. Com o dito incidente pretende-se questionar a credibilidade da própria testemunha, pondo em causa a sua isenção e não diretamente a veracidade do seu depoimento (embora, tal possa acontecer indiretamente, pois que procedendo o incidente, esta veracidade possa ficar afetada pela falta de credibilidade ou isenção da testemunha em causa); dirigindo-se, pois, à pessoa da testemunha - sua idoneidade/probidade -, considera-se que não poderá ser deferido de ânimo leve, antes sendo exigível a prova de factos gravosos que permitam e justifiquem a perniciosa afetação dos seus direitos de personalidade[Cf. o citado acórdão da RC de 14.12.2020-processo 4911/18.9T8VIS.C1 [consta, ainda, do sumário: «(...) II - Porque o deferimento da contradita constitui um acentuado desmerecimento para os direitos de personalidade da testemunha, com grave afetação da sua presumida idoneidade/probidade, ele apenas pode ser decretado se factos com dignidade/gravidade e força bastante assim o impuserem.»].]

6. No caso em análise, salvo o devido respeito por entendimento contrário, antolha-se evidente que não estão reunidos os requisitos da contradita, porquanto apenas se invoca que o texto subscrito perante o “perito-averiguador” - incumbido (pela Ré) de realizar a averiguação do sinistro - é contrário ao que duas testemunhas (arroladas pelo A.) vieram depois dizer em audiência de julgamento.

Na verdade, nada mais se alegou!

O que se invoca não é suscetível de afetar a razão de ciência e/ou a , o crédito ou o merecimento das testemunhas em causa.

O aduzido pela recorrente não assume dignidade e força bastantes para implicar tal gravoso ditame para a pessoa da testemunha e colocar em causa a sua credibilidade. [Ibidem. ]

Ademais, visto o que corporiza os intitulados “depoimento(s) em acidente de viação” - cuja cópia foi reproduzida nos autos [---] -, com todo o respeito, não se compreende como se ousa estabelecer algum paralelismo com os depoimentos testemunhais em processo (judicial) de inquérito ou em audiência de julgamento. [O caso dos autos é diverso das situações objeto dos acórdãos do STJ de 13.10.1998-processo 98A716 [com o sumário: «I - É admissível, face ao disposto no artigo 640, do Código de Processo Civil (disposição reproduzida no atual art.º 521º do CPC), a contradita de uma testemunha com fundamento em o depoimento que prestou em julgamento ser diferente do que havia prestado no processo de inquérito, uma vez que ela visa o enfraquecimento do depoimento, mas não é essencial que o inutilize. (...)»] e da RP de 17.4.1997-processo 9721361[tendo-se concluído: «Face à lei portuguesa não se mostra necessário que o elemento, documento ou circunstância apontada para alicerçar o pedido de contradita relativamente a depoimento prestado em audiência de julgamento tenha a mesma solenidade ou ofereça iguais garantias, já que não se exige propriamente a destruição do depoimento prestado, contentando-se a lei com a prova de um facto suscetível de afetar a credibilidade da pessoa contraditada». [...]], invocados na alegação de recurso e publicados no “site” da dgsi.

Diga-se, ainda, que, a ser acolhida a perspetiva que a Ré diz defender, teríamos, por certo, uma multiplicação (enxamear) de situações geradoras do incidente da contradita e sua (consequente) descaraterização.]

7. Não verificados os pressupostos da contradita, queda prejudicada a pretensão de “junção de documentos” (apenas com fim de realizar o incidente da contradita), pois dúvidas não restam sobre as circunstâncias da sua dedução em juízo [cf., nomeadamente, II. 1. a) e d), supra].

E porque a Ré não apresentou pedido para essa junção desligado daquele concreto circunstancialismo ou enquadramento normativo [---]. Diga-se, ainda, que, a ser acolhida a perspetiva que a Ré diz defender, teríamos, por certo, uma multiplicação (enxamear) de situações geradoras do incidente da contradita e sua (consequente) descaraterização., nada justifica o atendimento da pretensão deduzida, em sede de alegação de recurso, com a invocação do disposto no art.º 423º, n.º 3 [cf. “conclusões 13ª, 14ª e 16ª a 18ª”, ponto I., supra], desde logo, em face da sua manifesta intempestividade.

Acresce que sempre se trataria de questão nova, ou seja, problemática subtraída ao conhecimento do Tribunal a quo, sabendo-se que a apelação tem como limite objetivo a reapreciação das questões julgadas em 1ª instância, e não a introdução de questões novas.

 8. Acrescenta-se.

Além do mais, a Ré/apelante invocara pretensas contradições do arrazoado da petição inicial (cf. principalmente, art.ºs 3º, 13º, 14ª, 17ª e 18º da contestação). [---]

Por conseguinte, se a Ré via algum interesse na junção de tais elementos aos autos, há muito poderia/deveria tê-lo feito, conforme prevê o art.º 423º do CPC (sob a epígrafe “momento da apresentação”): «Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1). Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (n.º 2). Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (n.º 3). [Cf., nomeadamente, acórdão da RC de 24.3.2015-processo 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1 [...]]

9. E se a Ré/recorrente invoca, agora, o princípio da verdade material e o disposto no art.º 423º, n.º 3, in fine, para a junção das declarações atribuídas a cada uma das testemunhas, e considera que “o depoimento das mesmas uma ocorrência posterior que torna necessário, pela sua utilidade, a apresentação de tais declarações fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.ºs 1 e 2 do CPC” (cf., sobretudo, “conclusões 13ª, 14ª e 16ª”, ponto I., supra), dir-se-á ainda, além do mencionado em II. 7., in fine, supra, que, ao contrário do que invoca a Ré/recorrente em sede de alegação de recurso, o depoimento de uma testemunha (arrolada nos autos) não constitui a ocorrência posterior que torna necessária ou possibilita a junção de documentos (nem tal foi invocado ou sequer foi objeto de despacho judicial). Considerar o contrário, seria permitir que a cada testemunha, fosse possível à parte a junção de mais documentos, fora dos momentos temporais consignados na lei e ao arrepio da restrição estabelecida no referido normativo. [---]

10. É, assim, manifesta (e por razões várias) a inadmissibilidade legal da junção de tais “documentos”. [---]

11. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais."


*III. [Comentário] Salva a devida consideração, a apresentação de dois documentos dos quais constam depoimentos que não coincidem com o que foi dito na audiência de julgamento pelos mesmos depoentes (agora testemunhas) é algo que é "capaz de abalar a credibilidade do depoimento" e, portanto, de preencher a previsão da norma que consta do art. 521.º CPC.

Também não parece muito feliz a rejeição da apresentação dos referidos documentos com base no disposto no art. 423.º, n.º 3, CPC. Como parece ser claro, o disposto no art. 423.º, n.º 3, CPC não pode ser aplicado a documentos que são apresentados no âmbito do incidente de contradita de uma testemunha.

Como também é evidente, coisa completamente diferente é a questão de saber se a contradita deve ser considerada procedente.

MTS