Acções para reconhecimento de contrato de trabalho;
competência territorial*
1. O sumário de RE 21/3/2024 (1958/23.7T8TMR.E1) (decisão singular) é o seguinte:
O tribunal territorialmente competente para conhecer das ações interpostas pelo Ministério Público para reconhecimento da existência de contrato de trabalho do prestador de atividade, na sequência de participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho é o do local onde é prestada a atividade que alegadamente constitui um contrato de trabalho, e não o do domicílio do réu.
2. Na fundamentação da decisão escreveu-se o seguinte:
"Em face das descritas incidências processuais relevantes, na presente reclamação cumpre apreciar e decidir a questão de saber qual o tribunal territorialmente competente para conhecer das ações interpostas pelo Ministério Público para reconhecimento da existência de contrato de trabalho do prestador de atividade, na sequência de participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho: se o do domicílio do réu ou o do local onde é prestada a atividade que alegadamente constitui um contrato de trabalho.
Conforme o Senhor Juiz mencionou no despacho em que deferiu a prorrogação do prazo para contestação e decretou a suspensão, a situação em presença não é única, existindo neste momento centenas de ações idênticas interpostas no território nacional contra a mesma ré.
Consequentemente, mais do que discorrer sobre a (im)possibilidade de conhecimento oficioso da (in)competência relativa, importa fixar a orientação da presidência do Tribunal da Relação de Évora, a respeito da identificada questão da competência territorial neste tipo de ações.
Assim, e adiantando razões, cumpre desde já afirmar que apesar dos argumentos avançados pelo Senhor Juiz no despacho reclamado e naquele em que contrapôs os fundamentos aduzidos pela Reclamante, cremos que a melhor interpretação do preceito, é a sustentada por esta, entendendo que a presente ação foi corretamente proposta no Juízo do Trabalho de Tomar.
Aliás, do iter processual acima transcrito decorre evidente ter sido essa a “intuição jurídica” inicial de todos os intervenientes na causa: do Ministério Público, que ali instaurou a ação e não a remeteu para ser instaurada pela Procuradoria da República junto do Juízo do Trabalho de Lisboa, do Senhor Juiz, que a tramitou até à prolação do despacho reclamado, e do demandado, ora reclamante, que tacitamente deu o seu assentimento concordante à competência daquele juízo, ao apresentar contestação sem invocar a respetiva incompetência territorial.
E que é esta a interpretação que melhor se coaduna com a intenção do legislador, resulta bem evidenciado na decisão proferida em 27 de fevereiro de 2024[6], em situação similar à que nos ocupa, pelo Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto, e em cujo sumário se destacou que:
«I - A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho decorrente do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro que regula o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho deve ser intentada pelo Ministério Público no juízo do trabalho da área territorial onde a pessoa em causa presta a respetiva atividade.II - Estando em causa uma lei especial e face ao nela preceituado, a presente exceção impõe-se à regra geral do art. 13º n.º 1 do Cód. de Processo de Trabalho que determina ser competente territorialmente o juízo do trabalho do domicílio do réu».
Concordamos integralmente com os fundamentos que suportaram essa conclusão, estribados na doutrina citada e em sólida argumentação que, data venia, aqui reproduzimos, sublinhando os elementos de interpretação alinhados que cremos serem mais relevantes para estribar a declarada competência do tribunal da área territorial em que a pessoa em causa presta a sua atividade, no quadro legal aplicável ao caso.
«Presentemente, na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a instância inicia-se com o recebimento da participação – artigo 26.º, n.º 6 do CPT – a remeter aos serviços do Ministério Público junto do juízo do trabalho da “área de residência do trabalhador”, conforme decorria do artigo 15.º-A, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro. Já desde então foi criada uma norma especial, que afasta o regime da competência territorial a que alude a seção II, do capítulo II, título II, do CPT.Entretanto, a partir de 1 de agosto de 2017, data de entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a participação dos factos será remetida para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade.Nestes termos, de acordo com o n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, que prevê o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho e que veio a originar apresente ação para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, a ACT deve remeter “(…) participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.”.
Depois, sequencialmente, esclarece o n.º 1 do artigo 186.º-K do Código do Processo do Trabalho que “após a receção da participação prevista no n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para propor ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
Ou seja, os serviços do MP recebem a participação e dispõem de um prazo que é exigente para logo proporem a ação correspondente.Não faria legalmente sentido que a ação fosse proposta pelo MP noutra comarca que não a que recebeu a participação até pela dificuldade operacional que tal opção implicaria num procedimento que o legislador quis expedito.No nosso caso, o serviço do Ministério Público que recebeu a participação foi o serviço do Ministério Público do Juízo do Trabalho de Aveiro, que se encontra integrado na procuradoria do juízo especializado do trabalho de Aveiro, sedeado na Comarca de Aveiro – cfr. artigo 73.º, n.º 2 do Estatuto do Ministério Público. Nesta comarca, exerce as suas competências, obviamente, o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro devendo a ação ser interposta na jurisdição especializada laboral da comarca de Aveiro.Neste sentido, “ex abundanti”, atente-se na sequência pormenorizada constante do citado artigo 15º:
Procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho:
1 - Caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 2.º, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.2 - O procedimento é imediatamente arquivado caso o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente, mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, mas não dispensa a aplicação das contraordenações previstas no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 10 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.3 - Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.4 - A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.
A nosso ver, não existe, portanto, uma lacuna legal, pelo contrário erigiu-se uma cadeia procedimental que se pretende rigidamente fixada.Como se refere na reclamação em apreço, a lei tomou a opção, sensata em termos de eficácia, de conferir ao Tribunal do lugar da prática da infração, que será o lugar da prestação da atividade, a competência não somente para decidir sobre a impugnação judicial de contraordenação laboral como também para decidir sobre a existência de contrato de trabalho.Aliás, note-se que, em rigor e repetindo-nos, uma vez recebida em juízo a participação -registada e distribuída nos serviços judiciais – logo se inicia, se fixa, a instância (art. 26.º, n.º 6, do CPT) sendo depois apresentada ao Ministério Público aquela participação para efeito de elaboração, sendo o caso, da petição inicial.Esta é a conclusão que resulta a única consentânea com o explicitado na lei.Como refere José Joaquim Fernandes de Oliveira Martins, em “A Ação Especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho – Vinho Velho em Odres Novos”, JULGAR Online n.º 25, 2015, página 206, a propósito deste artigo 15º “retira-se deste normativo que a Secção do Trabalho territorialmente competente para apreciar esta ação é o da “área de residência do trabalhador” (hoje, por força da Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a área da prestação da atividade), para cujos serviços do MP deve ser remetida a respetiva participação, à qual devem ser juntos todos os elementos de prova obtidos pela ACT (verbi gratia, cópia de contratos celebrados, recibos de prestação de serviços, mapas de horários a cumprir pelo “prestador de serviços”, etc.).E, atento o teor deste artigo, considera-se que deve ser elaborada uma participação por trabalhador, para facilitar a elaboração da posterior petição inicial e até por poderem ser competentes em razão do território várias secções do trabalho, sem prejuízo de, depois de instauradas as subsequentes ações, se poderem apensar, antes da fase de julgamento, as diversas ações pendentes com vista a uma maior economia processual.”
Naturalmente que estas várias secções do trabalho seriam todas de uma mesma comarca, como poderá ser o caso em Aveiro.
Neste mesmíssimo sentido, na mesma revista Julgar, Cristina Martins da Cruz em “A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho 2013- 2021: de iure condito e de iure condendo”, Julgar Online, abril de 2022, p. 11 defende que a remessa da participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade deverá ser a regra a aplicar, uma vez que, num paralelo relevante, “concentra num único tribunal, o julgamento da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e da apreciação de um eventual recurso da decisão final no processo contraordenacional, cujo juízo do trabalho competente sempre seria, tal como designado pelo artigo 34.º do RPCOLSS, o do lugar em cuja área territorial se haja verificado a contraordenação (e não o da residência do trabalhador)” - daí quiçá a alteração operada em 2017.
Consabidamente, existem centenas de ações interpostas contra este mesmo réu de natureza idêntica à presente; ora, tal como defende na sua reclamação o réu em causa “a remessa das centenas de ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, que se encontram a correr por todo o país, para o juízo do trabalho do domicílio da Ré, no caso, Lisboa, seria um enorme esforço de mobilização dos meios disponíveis que comportaria, necessariamente, o congestionamento dos recursos alocados ao Juízo do Trabalho de Lisboa.” Acrescentamos mesmo: um possível colapso.
A lei quis tratar esta questão localmente, por iniciativa dos serviços públicos a quem foi entregue essa missão, incluindo o Ministério Público; impõe-se que também em sede do órgão de soberania – tribunais – se concretize esse desiderato legislativo que incorpora, além do mais, uma clara mais valia gestionária, valor omnipresente nas decisões proferidas pela presidência de tribunais».
Reiteramos que, em face dos cânones interpretativos que o artigo 9.º do Código Civil nos fornece, cremos ser esta a única interpretação consentânea com a letra e o espírito das normas convocadas, não fazendo qualquer sentido que o legislador quisesse afinal, como aconteceria se prevalecesse a decisão reclamada, que a ACT remetesse a participação à Procuradoria junto do tribunal da área de prestação do serviço, para que esta se limitasse a remetê-la para a Procuradoria da área da sede da ré, e esta instaurasse a ação.
Tal entendimento, por ser manifestamente arredado dos fins visados pelo legislador ao consagrar um procedimento especial neste tipo de ações, contraria frontalmente a presunção decorrente do n.º 3 do citado preceito legal de que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Note-se finalmente que a consagração desta solução especial a respeito da determinação do tribunal competente nem sequer é inovadora no CPT, que igualmente a estabelece no artigo 14.º, n.º 1, para as ações emergentes de contrato de trabalho intentadas por trabalhador contra a entidade empregadora [---], que podem ser propostas no juízo do trabalho do lugar da prestação de trabalho ou do domicílio do autor.
Concordantemente com o exposto, concluímos que o tribunal territorialmente competente para conhecer das ações interpostas pelo Ministério Público para reconhecimento da existência de contrato de trabalho do prestador de atividade, na sequência de participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho é o do local onde é prestada a atividade que alegadamente constitui um contrato de trabalho, e não o do domicílio do réu.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, na procedência da reclamação, revoga-se a decisão que julgou o Juízo do Trabalho de Tomar incompetente para conhecer da presente Ação de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho e, em consequência, determinou a remessa dos autos para o Juízo do Trabalho de Lisboa."
*3. [Comentário] A jurisprudência parece estar estabilizada no sentido da decisão da Presidente da RE: RP 27/2/2024 (4455/23.7T8AVR.P1) e RG 4/4/2024 (6941/23.0T8GMR.G1) (decisão singular).
[MTS]