Injunção de pagamento europeia;
competência internacional
1. O sumário de STJ 19/3/2024 (21307/20.5T8PRT.E2-A.S1) é o seguinte:
Sendo apresentado requerimento de injunção europeia para pagamento de um crédito emergente de um contrato de compra e venda, celebrado entre uma empresa portuguesa e outra sediada no Reino Unido, nos termos do Regulamento (CE) n.1896/2006 (de 12 de dezembro), e tendo-se provado que o local de entrega das mercadorias era em Portugal, a competência internacional cabe ao tribunal português (e não aos tribunais do Reino Unido) nos termos do artigo 7º, n.1 do Regulamento (EU) n.1215/2012.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
3.1. A única questão em análise nos presentes autos é a de saber se o tribunal onde foi proposta a ação é, ou não, o tribunal internacionalmente competente para julgar o presente pleito.
Como resulta dos autos, o conflito entre as partes respeita a um contrato de compra e venda de bens alimentares, no qual figura como vendedora uma empresa portuguesa – a ÉVORALIMENTAR, Ldª” e como compradora uma empresa sedeada no Reino Unido – a “AGARI International Limited”.
Está, assim, em causa um caso de natureza transfronteiriça, tal como definido no art. 3º do Regulamento n.1896/2002, respeitante a matéria comercial, que, por isso, cabe no seu âmbito de aplicação, tal como previsto nos artigos 2º e 4º deste Regulamento, sendo a respetiva competência judiciária determinada segundo as regras do direito comunitário aplicáveis, tal como prevê o art.6º do referido Regulamento.
As regras de competência judiciária (após a revogação do Regulamento n.44/2001) passaram a estar previstas no Regulamento (EU) n.1215/2012 (de 12 de dezembro), aplicável a partir de 10.01.2015.
3.2. O litígio em causa (tal como o requerente o configura e o recorrido não o nega) respeita a um contrato transfronteiriço, de compra e venda de bens alimentares, entre duas empresas, sendo a vendedora sediada em Portugal e a compradora sediada no Reino Unido. Assim, estando em causa matéria de natureza comercial, encontra-se justificada a aplicação do Regulamento n.1215/2012 (pois o caso não respeita a nenhuma das matérias excluídas do seu âmbito de aplicação pelo art.1º deste Regulamento).
O artigo 4º do referido Regulamento estabelece como regra geral (e supletiva) a de que as pessoas devem ser demandadas no Estado-Membro onde estão domiciliadas. Porém, tal regra comporta as exceções previstas no art.7º, correspondentes a hipóteses de competências especiais.
Estabelece o Regulamento 1215/2012 (na sua SECÇÃO 2) o seguinte:
«Competências especiais
Artigo 7.ºAs pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; (…)»
Considerando que não houve convenção prévia das partes sobre o tribunal competente (dado que as partes não a invocam), o elemento decisivo para a determinação do tribunal internacionalmente competente é o do lugar onde os bens vendidos foram (ou deviam ser) entregues, como previsto no art.7º, n.1 do referido Regulamento.
Conhecido esse facto, a conclusão quanto à competência do tribunal será inequívoca: só pode ser o tribunal do Estado-Membro onde se situa o local de entrega.
Após alteração da matéria de facto, o TRE concluiu que o lugar da entrega foi em ..., nas instalações da vendedora (onde as mercadorias foram carregadas).
3.3. A recorrente entende que o tribunal recorrido errou ao considerar que a entrega dos bens vendidos ocorreu em (...), pois na sua opinião o lugar de entrega era no Reino Unido, sendo, consequentemente, competentes os tribunais desse reino.
Sustenta a sua tese na alegação de que o TRE teria feito errada avaliação da prova constante dos autos, tanto da prova testemunhal como da prova documental. E pretende que, em revista, o STJ se pronuncie sobre o modo o tribunal recorrido apreciou as provas.
Deve, desde já, afirmar-se que a pretensão da recorrente se apresenta destituída de fundamento.
3.4. Como decorre do previsto no art .682º do CPC, em regra, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada pelo STJ. Esta regra é complementada pelo disposto no art. 674º, n. 3, primeira parte, nos termos da qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista.
Tal regra só admite como exceção a hipótese de existir ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
No caso concreto, o facto cuja prova releva para a decisão da questão jurídica respeitante à competência do tribunal é o de saber em que local foram entregues as mercadorias vendidas pela requerente à requerida. É manifesto que, pela própria natureza de tal facto, não está em causa a exigência legal de um específico meio de prova (como acontece quando a lei exige um documento autêntico). Trata-se, sim, de um facto que pode ser demonstrado por qualquer meio de prova, podendo ser alvo de prova testemunhal (nos termos do art.392º do CC), como efetivamente foi, não se verificando qualquer impedimento a esse tipo de prova (nos termos dos artigos 393º e 394º do CC).
Entende a recorrente que o local de entrega era o Reino Unido e que tal facto resultava de documento com força probatória plena – a fatura emitida pela vendedora.
Não lhe assiste razão. A fatura não é, por si só, um documento dotado de força probatória plena, quanto ao local de entrega das mercadorias, pois não se trata de documento autêntico (vd. art.371º do CC), nem de documento particular reconhecido por entidade oficial (vd. art.376º do CC) que lhe ateste o valor dessa informação.
O tribunal recorrido, ao reapreciar a prova produzida, baseou-se, assim, em elementos probatórios que pode apreciar livremente, pelo que não se pode concluir que tenha existido violação de qualquer norma que fixe a força de determinado meio de prova.
Feito este percurso, conclui-se que, no caso concreto, como a jurisprudência tem reiteradamente entendido, não cabe a este tribunal sindicar o modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida em tribunal, dado não estar em causa prova com valor tarifado.
Veja-se, a propósito, o que se resume no recente Acórdão do STJ, de 19.12.2023 (relator Luís Espírito Santo)1, no processo n. 1929/20.5T8VRL.G1.S1:
«Desde que não se coloque no âmbito da revista a violação pelo acórdão recorrido de normas respeitantes à prova tarifada, com força legalmente vinculativa, encontrando-nos, ao invés, perante prova apreciada livremente pelas instâncias, nos termos gerais do artigo 366º e 369º do Código Civil e 466º, nº 3, do Código de Processo Civil, o juízo de facto autónomo extraído pelo acórdão recorrido está fora do superior controlo por parte do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência do que se dispõe nos artigos 662º, nº 4, e 674º, nº 3, do Código de Processo Civil.»
3.5. Encontrando-se definitivamente apurado que a entrega dos bens vendidos ocorreu em Portugal (mais concretamente, em (...)), ao STJ cabe apenas, nos termos do art. 682º, n.1 do CPC aplicar o direito correspondente.
Como supra referido, determinando-se no art. 7º do Regulamento 1215/2012 que o tribunal competente para apreciar o litígio é o do local da entrega, dúvidas não existem de que este é o tribunal português, como bem entendeu o acórdão recorrido, em cuja fundamentação se afirma:
«No caso em apreço, tendo por base um contrato de compra e venda de bens alimentares celebrado entre A. e R, e sendo apurado que o local da entrega de tais bens à R. era nas instalações da A., situadas em (...), forçoso é concluir que o tribunal competente para conhecer do pleito é o Tribunal Judicial de Évora, mais concretamente o Juízo Central Cível e Criminal de (...), onde, aliás, os presentes autos se encontram já a correr termos.»
Em resumo, não existe fundamento para censurar o acórdão recorrido, pois este fez a correta aplicação das normas pertinentes ao caso sub judice."
[MTS]
[MTS]