1. O STA 15/5/2014 ocupa-se -- quiçá pela primeira vez na jurisprudência portuguesa -- de uma matéria de alguma dificuldade teórica, mas de inegável importância prática: aquela que respeita à aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência. O problema é fácil de enunciar: a aplicação de um acórdão de uniformização de jurisprudência a situações anteriores à sua publicação implica atribuir-lhe uma eficácia retroactiva, dado que a orientação definida pelo STJ (ou pelo STA) é aplicada a situações que se constituíram, modificaram ou extinguiram antes daquela publicação.
Quando, por exemplo, o STJ determina os titulares do direito à indemnização na sequência de um acidente rodoviário, a doutrina adoptada no acórdão é naturalmente aplicável a todos os acidentes ocorridos depois da sua publicação, mas também é susceptível de ser aplicada a acidentes que se verificaram antes dessa publicação. É em situações como a descrita que se pode falar de eficácia retroactiva dos acórdãos de uniformização de jurisprudência.
Noutras ordens jurídicas, estuda-se o problema da frustração de expectativas pela alteração da jurisprudência constante: aqueles que actuaram de acordo com esta jurisprudência ficam desprotegidos se os tribunais passarem a decidir de forma diferente. O problema também se coloca na ordem jurídica portuguesa, mas nesta é ainda imperioso estudar a questão da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência.
A circunstância de os acórdãos de uniformização de jurisprudência não serem fontes do direito não retira acuidade ao problema da sua aplicação a situações anteriores à sua publicação. O problema não decorre da natureza dos acórdãos uniformizadores, mas da sua aplicação por qualquer tribunal: para as partes, o que releva é que o tribunal tenha decidido a causa através da aplicação do acórdão uniformizador, sendo totalmente indiferente a sua natureza jurídica. É por isso que, sempre que um tribunal aplique um acórdão de uniformização a uma situação anterior à sua publicação, se suscita o problema da aplicação retroactiva desse acórdão uniformizador, dado que, através dessa aplicação, corre-se o risco de frustrar as expectativas de quem actuou no tráfego jurídico antes da sua publicação. Tudo está em saber em que medida estas expectativas devem ser tidas em conta e como as salvaguardar.
Quando, por exemplo, o STJ determina os titulares do direito à indemnização na sequência de um acidente rodoviário, a doutrina adoptada no acórdão é naturalmente aplicável a todos os acidentes ocorridos depois da sua publicação, mas também é susceptível de ser aplicada a acidentes que se verificaram antes dessa publicação. É em situações como a descrita que se pode falar de eficácia retroactiva dos acórdãos de uniformização de jurisprudência.
Noutras ordens jurídicas, estuda-se o problema da frustração de expectativas pela alteração da jurisprudência constante: aqueles que actuaram de acordo com esta jurisprudência ficam desprotegidos se os tribunais passarem a decidir de forma diferente. O problema também se coloca na ordem jurídica portuguesa, mas nesta é ainda imperioso estudar a questão da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência.
A circunstância de os acórdãos de uniformização de jurisprudência não serem fontes do direito não retira acuidade ao problema da sua aplicação a situações anteriores à sua publicação. O problema não decorre da natureza dos acórdãos uniformizadores, mas da sua aplicação por qualquer tribunal: para as partes, o que releva é que o tribunal tenha decidido a causa através da aplicação do acórdão uniformizador, sendo totalmente indiferente a sua natureza jurídica. É por isso que, sempre que um tribunal aplique um acórdão de uniformização a uma situação anterior à sua publicação, se suscita o problema da aplicação retroactiva desse acórdão uniformizador, dado que, através dessa aplicação, corre-se o risco de frustrar as expectativas de quem actuou no tráfego jurídico antes da sua publicação. Tudo está em saber em que medida estas expectativas devem ser tidas em conta e como as salvaguardar.
A isto acresce que é absurdo entender, com o argumento de que o Ac. STA 3/2012 não pode ser aplicado retroactivamente, que o tribunal não pode aderir à orientação uniformizada e só pode discordar desta. A ser assim, depois do proferimento do Ac. STA 3/2012, a qualquer tribunal onde se colocasse o problema da admissibilidade de um recurso já interposto só restaria, para não cair na aplicação retroactiva do Ac. STA 3/2012, não aplicar a doutrina nele definida, isto é, só restaria decidir em sentido contrário ao do Ac. 3/2012.
3. O problema do âmbito temporal dos acórdãos de uniformização de jurisprudência não é, num certo sentido, totalmente novo na ordem jurídica portuguesa. O problema já se colocava quanto aos antigos assentos, embora num ambiente bastante distinto: dado que os assentos constituíam fontes do direito, podia aplicar-se aos mesmos o disposto no art. 13.º CC. Apesar de este preceito se referir à lei interpretativa, não era problemática -- ao que se supõe -- a aplicação do mesmo a outras fontes do direito com o mesmo carácter interpretativo.
Não obstante, não (poder) ter atribuído valor de fonte do direito aos acórdãos de uniformização de jurisprudência, o legislador não permaneceu insensível ao problema da eficácia temporal desses acórdãos O art. 695.º, n.º 3, nCPC estabelece que a decisão de provimento do recurso de uniformização de jurisprudência não afecta qualquer sentença anterior à que tenha sido impugnada, nem as situações jurídicas constituídas ao seu abrigo. Este preceito é expressão da relevância que o caso julgado tem na ordem jurídica portuguesa (cf., em matéria de declaração de inconstitucionalidade, art. 282.º, n.º 3, CRP e, em matéria de lei interpretativa, art. 13.º, n.º 1, CC), mas dele resulta apenas que o acórdão de uniformização de jurisprudência não pode atingir os casos julgados anteriores.
Não obstante, não (poder) ter atribuído valor de fonte do direito aos acórdãos de uniformização de jurisprudência, o legislador não permaneceu insensível ao problema da eficácia temporal desses acórdãos O art. 695.º, n.º 3, nCPC estabelece que a decisão de provimento do recurso de uniformização de jurisprudência não afecta qualquer sentença anterior à que tenha sido impugnada, nem as situações jurídicas constituídas ao seu abrigo. Este preceito é expressão da relevância que o caso julgado tem na ordem jurídica portuguesa (cf., em matéria de declaração de inconstitucionalidade, art. 282.º, n.º 3, CRP e, em matéria de lei interpretativa, art. 13.º, n.º 1, CC), mas dele resulta apenas que o acórdão de uniformização de jurisprudência não pode atingir os casos julgados anteriores.
Cabe assim perguntar se a ressalva do caso julgado é a única que é indispensável ou se, pelo contrário, há que admitir outros limites à retroactividade dos acórdãos uniformizadores. Pense-se, por exemplo, num acórdão que uniformiza a jurisprudência em relação um prazo de caducidade, dado haver duas orientações contraditórias na jurisprudência: uma entende que o prazo é o mais curto, outra considera que o prazo é o mais longo; suponha-se que o acórdão uniformiza a jurisprudência no sentido do prazo mais curto: a aplicação da doutrina do acórdão a prazos em curso impossibilita o exercício de um direito sempre que, embora não esteja esgotado o prazo mais longo, isso já suceda quanto ao prazo mais curto. Pense-se também num acórdão que uniformiza a jurisprudência em relação à invalidade formal de um negócio jurídico (um contrato de arrendamento, por exemplo): a aplicação da orientação a negócios que já se encontram celebrados frustra a expectativa de, pelo menos, uma das partes (do arrendatário, por exemplo). Os exemplos demonstram que a aplicação (retroactiva) dos acórdãos de uniformização de jurisprudência a situações anteriores à sua publicação pode ser muito problemática.
4.O facto de os acórdãos uniformizadores não serem fontes do direito permite uma primeira solução para o problema da sua aplicação no tempo: as instâncias e o STJ não têm de aplicar as orientações uniformizadas (ainda que com os limites do art. 13.º CC), pelo que possuem uma suficiente margem de decisão para, com fundamento nos inconvenientes da aplicação retroactiva dessas orientações, não as aplicarem em casos concretos. Isto significa que é sempre possível justificar a não aplicação (retroactiva) de um acórdão de uniformização de jurisprudência com o argumento de que há que proteger expectativas atendíveis de uma das partes. Desconhece-se, no entanto, se alguma vez algum tribunal deixou de aplicar um acórdão de uniformização com este fundamento, embora seja muito provável que, pela falta de sensibilidade para o problema, tal nunca tenha sucedido.
Dado que da decisão que não aplique um acórdão de uniformização de jurisprudência é sempre admissível a interposição de recurso (cf. art. 629.º, n.º 2, al. c), nCPC), cabe sempre a um tribunal superior -- que pode ser o próprio STJ -- controlar se, por motivos relacionados com a aplicação no tempo, há razões para não aplicar a jurisprudência uniformizada num caso concreto. O que importa reforçar é que as instâncias e o STJ podem não aplicar um acórdão de uniformização de jurisprudência com fundamento na frustração de expectativas justificadas de qualquer das partes resultante da sua aplicação retroactiva.
Dado que da decisão que não aplique um acórdão de uniformização de jurisprudência é sempre admissível a interposição de recurso (cf. art. 629.º, n.º 2, al. c), nCPC), cabe sempre a um tribunal superior -- que pode ser o próprio STJ -- controlar se, por motivos relacionados com a aplicação no tempo, há razões para não aplicar a jurisprudência uniformizada num caso concreto. O que importa reforçar é que as instâncias e o STJ podem não aplicar um acórdão de uniformização de jurisprudência com fundamento na frustração de expectativas justificadas de qualquer das partes resultante da sua aplicação retroactiva.
Uma outra solução possível para o problema em análise é a definição de um regime transitório no próprio acórdão de uniformização de jurisprudência. As hipóteses possíveis são a mera remissão para um regime de direito probatório formal -- como aquele que consta do art. 13.º CC ou do art. 297.º CC -- ou a construção de um regime transitório material pelo próprio STJ. Esta última solução traduz-se, na prática, numa dupla uniformização pelo STJ: o STJ uniformiza a jurisprudência tanto para as situações posteriores, como para as situações anteriores à publicação do acórdão. Por exemplo: o STJ pode uniformizar a jurisprudência sobre a invalidade formal de um contrato, mas ressalvar a validade dos contratos anteriores à publicação do acórdão uniformizador.
5. O problema da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência é complexo e variado. Neste momento, interessa apenas chamar a atenção para uma problemática que, pela sua relevância prática, não pode deixar de ser considerada pela jurisprudência e aprofundada pela doutrina.
MTS