I – Na obra acabada de sair (II Volume)
de Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Paulo Ramos de Faria e Ana
Luísa Loureiro defendem que “nos casos verdadeiramente excepcionais nos quais o
tribunal ad quem entende que a justa
composição do litígio exige um aperfeiçoamento da articulação, o relator (art.
652.º, n.º 1, al. d)), por iniciativa própria ou concertado com dos juízes adjuntos
(art. 658.º), deve convidar a parte a aperfeiçoar a sua alegação de recurso,
nela fazendo incluir, querendo, a arguição da nulidade por omissão do despacho
do convite ao aperfeiçoamento – nulidade só agora cognoscível pela parte, já
que o tribunal a quo havia
considerado a factualidade alegada suficiente –, fazendo-o subsidiariamente –
nos termos previstos no art. 636.º, n.º 1, quando a acção tenha sido julgada
procedente –, acautelando o acolhimento desta solução plausível de direito pelo
tribunal ad quem. Na alegação
subsidiária, a parte deverá logo revelar a factualidade omitida, se ela
efectivamente existe, de modo a que o colectivo possa ajuizar da relevância da
sua alegação” (5.4.1) (página 126 e ss.).
Desta forma – concluem – “se
transpõe para a instância de recurso – já não do articulado –, de direito e de
facto, orientado por uma solução plausível de direito”.
Com o devido respeito pela douta
opinião dos ilustres autores (e é todo), tendo apenas em mente contribuir para
a discussão da temática referida, atrevo-me a dizer o seguinte a este respeito:
1.º - Nos
termos do disposto no artigo 652.º,n.º 1, alínea d), do CPC, compete ao relator
“ordenar as diligências que considere necessárias”. Estas diligências a que a
lei se refere são apenas as relativas à decisão do recurso, rectius, à boa decisão por parte do
tribunal ad quem. Apenas e só. E, como sabido, a decisão do tribunal ad quem tem por objecto a decisão do tribunal a quo.
Ao relator apenas cabe julgar nos
apertados casos previstos na alínea c) do mesmo preceito legal e, mesmo assim,
sujeito à supervisão da conferência, nos casos em que a parte vencida não se
conforme.
Nos tribunais superiores as
decisões (de fundo) são colegiais, o que significa que nada autoriza a
incumbência que é feita ao relator para ordenar o convite ao aperfeiçoamento
dos articulados.
2.º - Caso o
juiz de 1.ª instância, por circunstâncias várias, não exerça o poder vinculado
do convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 2) comete nulidade processual
sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3, e 201.º).
Caso a nulidade derivada da
referida omissão não seja arguida atempadamente pela parte interessada, forçoso
é concluir que a mesma está definitivamente sanada.
3.º - O
relator (e/ou a conferência), ao convidar a parte a aperfeiçoar articulado que
passou o crivo da apreciação do juiz a
quo (bem ou mal), como proposto, comete ele (ou ela) próprio (a) nulidade,
esta prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
4.º - Ao
tribunal de recurso compete apreciar a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª
instância; a este cumpre decidir tendo em conta os allegata et probata. Assim sendo, parece-me que o tribunal da Relação
não se pode substituir ao tribunal da 1.ª instância no cumprimento do
preceituado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
5.º - Definitivamente
está consagrado no direito positivado o princípio da cooperação. Ele aparece
consagrado logo no artigo 7.º do CPC, mas tem tradução prática na alínea b) do
n.º 2 do artigo 590.º do mesmo diploma: princípio da cooperação habemus – há que o respeitar na sua
plenitude.
Como? Veremos.
II – Mais à frente (5.4.2), os autores
acabam por reconhecer que não cabe nos poderes da Relação suprir nulidades
secundárias (sanadas). Se bem enxergo, parece haver contradição na tese que
perfilham ao defenderem que lhe cabe o papel de “revelar às partes a eventual
ocorrência da nulidade”.
Pergunto: se a nulidade derivada
do facto da omissão do juiz a quo por
não ter providenciado pelo aperfeiçoamento dos articulados, transgredindo o
postulado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC, está sanada, qual o efeito
útil de tal revelação?!
Faço notar que, segundo a tese
avançada, ao tribunal da Relação são cometidos poderes de decisão sobre o já
julgado e, concomitantemente, poderes de apreciação de factos articulados ex novo, por via do apregoado convite ao
aperfeiçoamento não levado a cabo na 1.ª instância.
Ora, a sede própria e única para
alegação dos factos constitutivos do seu direito do autor e, ainda, dos
(eventuais) factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele mesmo
direito (estes a cargo do réu, obviamente) é a 1.ª instância.
III – Em nota de rodapé, insurgem-se os
ilustres autores contra a proposta avançada por Teixeira de Sousa (cfr. Blog do IPPC), segundo a qual a solutio da quaestio passaria pela anulação da decisão proferida com o fito de
alargar a base factual, sanando, dest’arte, a omissão decorrente da já aludida
transgressão ao preceituado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
Acreditam que a solução proposta “pode levar a resultados indesejados, quando,
anulando o processado, a parte não acolhe o convite ao aperfeiçoamento: neste
caso, estaremos perante uma anulação perfeitamente inútil. Em qualquer caso,
trata-se de uma decisão surpresa, …”.
Que a solução proposta acarreta
resultados indesejados, estou de acordo: todas as anulações acarretam prejuízos
decorrentes do atraso na realização da justiça do caso concreto.
É uma proposta arrojada, sem
dúvida e que, por certo, levantará objecções e oposições, mas que tem apoio nos
amplos poderes que o nCPC concedeu à Relação em matéria de ampliação da matéria
de facto.
Vistas bem as cousas, se a Relação
pode ordenar ex officio a ampliação
da matéria de facto alegada, qual a razão de não poder ordenar que a 1.ª
instância diligencie por isso mesmo, na justa medida em que tal decisão resulta
directamente do facto de não ter feito uso, como devia, dos poderes vertidos na
já referida alínea b) do n.º 2 do artigo 590º do CPC?
Decisão surpresa?
A decisão que anula não é uma
decisão: ela não diz às partes se têm ou não têm direito a algo.
Podem elas (as partes) ficar
surpreendidas, mas não ficam prejudicadas, pois nada foi decidido com a
anulação. Esta (bem ou mal determinada) tem por finalidade encontrar a boa
decisão. A decisão de anulação é, pois, uma não decisão.
A anulação não se pode considerar
inútil pelo facto de a parte não responder ao convite: nesse caso a acção não
poderá deixar de improceder: não poderá a parte queixar-se de que não foi
avisada – sibi imput a improcedência!
Assim sendo, como me parece que
é, não vejo razão para apelidar de decisão surpresa a decisão que ordene a
anulação do julgado para os fins propostos.
IV – A posição dos autores parece
assentar num ponto, qual seja o poder de substituição do julgado em 1.ª
instância que assiste ao tribunal da Relação. Se assim é, então terei de dizer
que olvida um ponto deveras importante: é que esse poder só está ao alcance da
Relação quando esta tem todos os elementos para decidir (ut artigo 665.º, n.º 2 – “… sempre que disponha dos elementos
necessários), não quando esses elementos estão em falta.
V – Ficou a pergunta no ar: como
solucionar a questão da transgressão do artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC?
Fica aqui o aplauso para o arrojo
da proposta dos ilustres magistrados. Dela discordo pelas razões sinopticamente
assinaladas.
Pela anulação do julgado, como
avança Teixeira de Sousa? Do ponto de vista da ortodoxia dos princípios consagrados
no nCPC parece-me que nihil obstat. E
na prática? Não será fácil. Veremos…
VI – Uma coisa parece certa: há que
discutir, encontrar caminhos e estar atento à forma como os tribunais de 2.ª
instância vão tentar resolver esta vexata
quaestio.
Urbano Dias