"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/06/2014

Breves nótulas sobre o controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância





I – Na obra acabada de sair (II Volume) de Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro defendem que “nos casos verdadeiramente excepcionais nos quais o tribunal ad quem entende que a justa composição do litígio exige um aperfeiçoamento da articulação, o relator (art. 652.º, n.º 1, al. d)), por iniciativa própria ou concertado com dos juízes adjuntos (art. 658.º), deve convidar a parte a aperfeiçoar a sua alegação de recurso, nela fazendo incluir, querendo, a arguição da nulidade por omissão do despacho do convite ao aperfeiçoamento – nulidade só agora cognoscível pela parte, já que o tribunal a quo havia considerado a factualidade alegada suficiente –, fazendo-o subsidiariamente – nos termos previstos no art. 636.º, n.º 1, quando a acção tenha sido julgada procedente –, acautelando o acolhimento desta solução plausível de direito pelo tribunal ad quem. Na alegação subsidiária, a parte deverá logo revelar a factualidade omitida, se ela efectivamente existe, de modo a que o colectivo possa ajuizar da relevância da sua alegação” (5.4.1) (página 126 e ss.).


Desta forma – concluem – “se transpõe para a instância de recurso – já não do articulado –, de direito e de facto, orientado por uma solução plausível de direito”.
Com o devido respeito pela douta opinião dos ilustres autores (e é todo), tendo apenas em mente contribuir para a discussão da temática referida, atrevo-me a dizer o seguinte a este respeito:


1.º - Nos termos do disposto no artigo 652.º,n.º 1, alínea d), do CPC, compete ao relator “ordenar as diligências que considere necessárias”. Estas diligências a que a lei se refere são apenas as relativas à decisão do recurso, rectius, à boa decisão por parte do tribunal ad quem. Apenas e só. E, como sabido, a decisão do tribunal ad quem tem por objecto a decisão do tribunal a quo.


Ao relator apenas cabe julgar nos apertados casos previstos na alínea c) do mesmo preceito legal e, mesmo assim, sujeito à supervisão da conferência, nos casos em que a parte vencida não se conforme.


Nos tribunais superiores as decisões (de fundo) são colegiais, o que significa que nada autoriza a incumbência que é feita ao relator para ordenar o convite ao aperfeiçoamento dos articulados.


2.º - Caso o juiz de 1.ª instância, por circunstâncias várias, não exerça o poder vinculado do convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 2) comete nulidade processual sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3, e 201.º).


Caso a nulidade derivada da referida omissão não seja arguida atempadamente pela parte interessada, forçoso é concluir que a mesma está definitivamente sanada. 


3.º - O relator (e/ou a conferência), ao convidar a parte a aperfeiçoar articulado que passou o crivo da apreciação do juiz a quo (bem ou mal), como proposto, comete ele (ou ela) próprio (a) nulidade, esta prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.


4.º - Ao tribunal de recurso compete apreciar a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância; a este cumpre decidir tendo em conta os allegata et probata. Assim sendo, parece-me que o tribunal da Relação não se pode substituir ao tribunal da 1.ª instância no cumprimento do preceituado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC.


5.º - Definitivamente está consagrado no direito positivado o princípio da cooperação. Ele aparece consagrado logo no artigo 7.º do CPC, mas tem tradução prática na alínea b) do n.º 2 do artigo 590.º do mesmo diploma: princípio da cooperação habemus – há que o respeitar na sua plenitude.


Como? Veremos.


II – Mais à frente (5.4.2), os autores acabam por reconhecer que não cabe nos poderes da Relação suprir nulidades secundárias (sanadas). Se bem enxergo, parece haver contradição na tese que perfilham ao defenderem que lhe cabe o papel de “revelar às partes a eventual ocorrência da nulidade”.


Pergunto: se a nulidade derivada do facto da omissão do juiz a quo por não ter providenciado pelo aperfeiçoamento dos articulados, transgredindo o postulado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC, está sanada, qual o efeito útil de tal revelação?!


Faço notar que, segundo a tese avançada, ao tribunal da Relação são cometidos poderes de decisão sobre o já julgado e, concomitantemente, poderes de apreciação de factos articulados ex novo, por via do apregoado convite ao aperfeiçoamento não levado a cabo na 1.ª instância.


Ora, a sede própria e única para alegação dos factos constitutivos do seu direito do autor e, ainda, dos (eventuais) factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele mesmo direito (estes a cargo do réu, obviamente) é a 1.ª instância.


III – Em nota de rodapé, insurgem-se os ilustres autores contra a proposta avançada por Teixeira de Sousa (cfr. Blog do IPPC), segundo a qual a solutio da quaestio passaria pela anulação da decisão proferida com o fito de alargar a base factual, sanando, dest’arte, a omissão decorrente da já aludida transgressão ao preceituado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC. Acreditam que a solução proposta “pode levar a resultados indesejados, quando, anulando o processado, a parte não acolhe o convite ao aperfeiçoamento: neste caso, estaremos perante uma anulação perfeitamente inútil. Em qualquer caso, trata-se de uma decisão surpresa, …”.


Que a solução proposta acarreta resultados indesejados, estou de acordo: todas as anulações acarretam prejuízos decorrentes do atraso na realização da justiça do caso concreto.


É uma proposta arrojada, sem dúvida e que, por certo, levantará objecções e oposições, mas que tem apoio nos amplos poderes que o nCPC concedeu à Relação em matéria de ampliação da matéria de facto.


Vistas bem as cousas, se a Relação pode ordenar ex officio a ampliação da matéria de facto alegada, qual a razão de não poder ordenar que a 1.ª instância diligencie por isso mesmo, na justa medida em que tal decisão resulta directamente do facto de não ter feito uso, como devia, dos poderes vertidos na já referida alínea b) do n.º 2 do artigo 590º do CPC?


Decisão surpresa?


A decisão que anula não é uma decisão: ela não diz às partes se têm ou não têm direito a algo.


Podem elas (as partes) ficar surpreendidas, mas não ficam prejudicadas, pois nada foi decidido com a anulação. Esta (bem ou mal determinada) tem por finalidade encontrar a boa decisão. A decisão de anulação é, pois, uma não decisão.


A anulação não se pode considerar inútil pelo facto de a parte não responder ao convite: nesse caso a acção não poderá deixar de improceder: não poderá a parte queixar-se de que não foi avisada – sibi imput a improcedência! 


Assim sendo, como me parece que é, não vejo razão para apelidar de decisão surpresa a decisão que ordene a anulação do julgado para os fins propostos.


IV – A posição dos autores parece assentar num ponto, qual seja o poder de substituição do julgado em 1.ª instância que assiste ao tribunal da Relação. Se assim é, então terei de dizer que olvida um ponto deveras importante: é que esse poder só está ao alcance da Relação quando esta tem todos os elementos para decidir (ut artigo 665.º, n.º 2 – “… sempre que disponha dos elementos necessários), não quando esses elementos estão em falta.


V – Ficou a pergunta no ar: como solucionar a questão da transgressão do artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC?


Fica aqui o aplauso para o arrojo da proposta dos ilustres magistrados. Dela discordo pelas razões sinopticamente assinaladas.


Pela anulação do julgado, como avança Teixeira de Sousa? Do ponto de vista da ortodoxia dos princípios consagrados no nCPC parece-me que nihil obstat. E na prática? Não será fácil. Veremos…


VI – Uma coisa parece certa: há que discutir, encontrar caminhos e estar atento à forma como os tribunais de 2.ª instância vão tentar resolver esta vexata quaestio.



Urbano Dias