1. Em obra
recente, P. Ramos de Faria e A. L. Loureiro (Primeiras Notas ao Novo
Código de Processo Civil II (2014), 126 ss.) dedicam atenção ao problema da
insuficiência da matéria de facto alegada pelas partes que só é detectada pela Relação. O problema – para o qual, supõe-se que pela primeira
vez, se chamou a atenção em post
anterior – consiste no seguinte: a 1.ª instância considerou a matéria
alegada pelas partes (e, em especial, pelo autor) suficiente para justificar a
procedência da causa e proferiu a correspondente decisão de procedência; a 2.ª
instância considera essa matéria insuficiente; dado que a 1.ª instância, se
tivesse detectado a referida insuficiência, deveria ter dirigido um convite ao
aperfeiçoamento do articulado (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4), nCPC),
suscita-se o problema de saber o que pode a Relação fazer.
Até agora
o problema tem sido ignorado, tendo-se admitido que a Relação pode decidir
segundo o regime de substituição e considerar a acção improcedente por falta de
factos relevantes. A incompatibilidade desta solução com a omissão do dever de
cooperação da 1.ª instância é patente. É nisto que consiste o problema que os
referidos autores também reconhecem existir.
2. Adquirido
que há um problema que importa enfrentar, há que procurar uma solução para o
mesmo. P. Ramos de Faria e A. L. Loureiro discordam da solução que
propugnei (anulação da decisão e baixa do processo à 1.ª instância com
fundamento no disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC) e – segundo percebi –
entendem que a Relação, antes de poder vir a anular a decisão da 1.ª instância,
deve convidar a parte a aperfeiçoar a sua alegação de recurso, “nela fazendo
incluir, querendo, a arguição de nulidade por omissão do despacho de convite ao
aperfeiçoamento […], fazendo-o subsidiariamente – nos termos previstos no art.
636.º, n.º 1 […]. Na alegação subsidiária, a parte deverá logo revelar a
factualidade omitida, se ela efectivamente existir, de modo a que o colectivo
possa ajuizar da relevância da sua alegação […], nada anulando, se não
existirem, afinal, factos relevantes para além dos adquiridos” (126 s.).
Os autores
acabam por concluir o seguinte: ”[…] sendo detectada pela Relação uma omissão
do dever de convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 4), não poderá dela
conhecer oficiosamente, anulando o processado. Apenas está ao seu alcance […]
promover uma adequação formal e revelar às partes a eventual ocorrência da
nulidade” (128).
No
essencial, o ponto de discordância parece assentar apenas na impossibilidade de
a Relação conhecer oficiosamente da nulidade decorrente da omissão do dever de
cooperação pela 1.ª instância. Quanto ao mais, parece que os referidos autores
aceitam a anulação da decisão.
3. A
verdade é que o art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC dá cobertura a esse
conhecimento oficioso, dado que, entre outras hipóteses, esse preceito permite
a anulação oficiosa de uma decisão que é nula por contradição dos factos dados
como provados (art. 615.º, n.º 1, al. c), nCPC interpretado extensivamente) ou
por omissão de pronúncia sobre factos relevantes (art. 615.º, n.º 1, al. d),
nCPC). Isto demonstra que a circunstância de a nulidade da decisão não ser de
conhecimento oficioso (cf. art. 615.º, n.º 4) não impede a anulação oficiosa da
decisão sobre matéria de facto.
Assim,
nada impede que a Relação anule oficiosamente a decisão da 1.ª instância se considerar
que dela faltam factos que poderiam ter sido alegados pela parte se a 1.ª
instância tivesse cumprido o seu dever de convite ao aperfeiçoamento do
articulado. A circunstância de a nulidade decorrente da omissão do dever de
cooperação não ser de conhecimento oficioso não impede a anulação oficiosa da
decisão que é proferida após essa omissão.
4. Invocam
ainda os mesmos autores que, sem o referido convite ao aperfeiçoamento das
alegações de recurso, a decisão (de anulação) da Relação se baseia numa “realidade
virtual, que o tribunal ad quem
admite poder existir, assente num
juízo especulativo – trata-se de uma decisão secundum conscientiam, e não secundum
allegata et probata” (p. 128).
O
argumento é interessante, mas facilmente rebatível. Os autores parecem partir
do princípio de que, se, depois de o processo baixar à 1.ª instância e se não
houver a alegação de novos factos, a 1.ª instância pode voltar a proferir uma
decisão de procedência. Mas não é assim: a anulação da decisão pela 2.ª
instância significa que, sem a alegação dos factos que a Relação considera
relevantes, a acção não pode ser julgada procedente.
Dito de
outro modo: a 1.ª instância só pode voltar a julgar a acção procedente se forem
alegados (e eventualmente provados) os factos cuja falta foi detectada pela
Relação. A Relação não realiza nenhum “juízo especulativo” sobre a eventual
alegação de factos eventualmente relevantes, dado que a anulação proferida pela
Relação tem um duplo significado: a Relação impõe à 1.ª instância que convide a
parte a alegar os factos relevantes; a Relação também impõe que, na falta dessa
alegação, a acção não possa ser julgada procedente. A 1.ª instância não estaria
a respeitar o acórdão da Relação se, depois de esta considerar que não estão
alegados os factos necessários para a procedência da causa, viesse a considerar
a acção procedente sem a invocação desses mesmos factos.
5. Argumentam
ainda os autores que a anulação da decisão da 1.ª instância constitui uma
decisão-surpresa da Relação (128 n. 307). Sem discutir se o conceito de
decisão-surpresa também é aplicável a uma decisão que se limita a cassar a
decisão recorrida (no fundo, a uma decisão que não decide), parece que se pode
argumentar que a decisão de anulação por a Relação entender que faltam factos
relevantes que as partes devem ser convidadas a alegar não é uma
decisão-surpresa, como, aliás, não o é qualquer outra que seja proferida com
fundamento no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC.
6. A
omissão do convite ao aperfeiçoamento do articulado pela 1.ª instância constitui um problema que a Relação não pode deixar de enfrentar. Talvez a doutrina e a jurisprudência ainda tenham de percorrer
algum caminho antes de se chegar à melhor solução do problema, mas o mais
importante é que, ao contrário do que acontecia até há pouco, o mesmo não seja
ignorado pela Relação e esta não decida como se o risco da improcedência
continuasse a pertencer exclusivamente à parte recorrida (isto é, à parte
vencedora em 1.ª instância).
MTS