"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/06/2014

Controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância




1. Em obra recente, P. Ramos de Faria e A. L. Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil II (2014), 126 ss.) dedicam atenção ao problema da insuficiência da matéria de facto alegada pelas partes que só é detectada pela Relação. O problema – para o qual, supõe-se que pela primeira vez, se chamou a atenção em post anterior – consiste no seguinte: a 1.ª instância considerou a matéria alegada pelas partes (e, em especial, pelo autor) suficiente para justificar a procedência da causa e proferiu a correspondente decisão de procedência; a 2.ª instância considera essa matéria insuficiente; dado que a 1.ª instância, se tivesse detectado a referida insuficiência, deveria ter dirigido um convite ao aperfeiçoamento do articulado (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4), nCPC), suscita-se o problema de saber o que pode a Relação fazer.

Até agora o problema tem sido ignorado, tendo-se admitido que a Relação pode decidir segundo o regime de substituição e considerar a acção improcedente por falta de factos relevantes. A incompatibilidade desta solução com a omissão do dever de cooperação da 1.ª instância é patente. É nisto que consiste o problema que os referidos autores também reconhecem existir.

2. Adquirido que há um problema que importa enfrentar, há que procurar uma solução para o mesmo. P. Ramos de Faria e A. L. Loureiro discordam da solução que propugnei (anulação da decisão e baixa do processo à 1.ª instância com fundamento no disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC) e – segundo percebi – entendem que a Relação, antes de poder vir a anular a decisão da 1.ª instância, deve convidar a parte a aperfeiçoar a sua alegação de recurso, “nela fazendo incluir, querendo, a arguição de nulidade por omissão do despacho de convite ao aperfeiçoamento […], fazendo-o subsidiariamente – nos termos previstos no art. 636.º, n.º 1 […]. Na alegação subsidiária, a parte deverá logo revelar a factualidade omitida, se ela efectivamente existir, de modo a que o colectivo possa ajuizar da relevância da sua alegação […], nada anulando, se não existirem, afinal, factos relevantes para além dos adquiridos” (126 s.). 

Os autores acabam por concluir o seguinte: ”[…] sendo detectada pela Relação uma omissão do dever de convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 4), não poderá dela conhecer oficiosamente, anulando o processado. Apenas está ao seu alcance […] promover uma adequação formal e revelar às partes a eventual ocorrência da nulidade” (128).

No essencial, o ponto de discordância parece assentar apenas na impossibilidade de a Relação conhecer oficiosamente da nulidade decorrente da omissão do dever de cooperação pela 1.ª instância. Quanto ao mais, parece que os referidos autores aceitam a anulação da decisão.

3. A verdade é que o art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC dá cobertura a esse conhecimento oficioso, dado que, entre outras hipóteses, esse preceito permite a anulação oficiosa de uma decisão que é nula por contradição dos factos dados como provados (art. 615.º, n.º 1, al. c), nCPC interpretado extensivamente) ou por omissão de pronúncia sobre factos relevantes (art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC). Isto demonstra que a circunstância de a nulidade da decisão não ser de conhecimento oficioso (cf. art. 615.º, n.º 4) não impede a anulação oficiosa da decisão sobre matéria de facto. 

Assim, nada impede que a Relação anule oficiosamente a decisão da 1.ª instância se considerar que dela faltam factos que poderiam ter sido alegados pela parte se a 1.ª instância tivesse cumprido o seu dever de convite ao aperfeiçoamento do articulado. A circunstância de a nulidade decorrente da omissão do dever de cooperação não ser de conhecimento oficioso não impede a anulação oficiosa da decisão que é proferida após essa omissão.

4. Invocam ainda os mesmos autores que, sem o referido convite ao aperfeiçoamento das alegações de recurso, a decisão (de anulação) da Relação se baseia numa “realidade virtual, que o tribunal ad quem admite poder existir, assente num juízo especulativo – trata-se de uma decisão secundum conscientiam, e não secundum allegata et probata” (p. 128). 

O argumento é interessante, mas facilmente rebatível. Os autores parecem partir do princípio de que, se, depois de o processo baixar à 1.ª instância e se não houver a alegação de novos factos, a 1.ª instância pode voltar a proferir uma decisão de procedência. Mas não é assim: a anulação da decisão pela 2.ª instância significa que, sem a alegação dos factos que a Relação considera relevantes, a acção não pode ser julgada procedente. 

Dito de outro modo: a 1.ª instância só pode voltar a julgar a acção procedente se forem alegados (e eventualmente provados) os factos cuja falta foi detectada pela Relação. A Relação não realiza nenhum “juízo especulativo” sobre a eventual alegação de factos eventualmente relevantes, dado que a anulação proferida pela Relação tem um duplo significado: a Relação impõe à 1.ª instância que convide a parte a alegar os factos relevantes; a Relação também impõe que, na falta dessa alegação, a acção não possa ser julgada procedente. A 1.ª instância não estaria a respeitar o acórdão da Relação se, depois de esta considerar que não estão alegados os factos necessários para a procedência da causa, viesse a considerar a acção procedente sem a invocação desses mesmos factos.

5. Argumentam ainda os autores que a anulação da decisão da 1.ª instância constitui uma decisão-surpresa da Relação (128 n. 307). Sem discutir se o conceito de decisão-surpresa também é aplicável a uma decisão que se limita a cassar a decisão recorrida (no fundo, a uma decisão que não decide), parece que se pode argumentar que a decisão de anulação por a Relação entender que faltam factos relevantes que as partes devem ser convidadas a alegar não é uma decisão-surpresa, como, aliás, não o é qualquer outra que seja proferida com fundamento no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC.  

6. A omissão do convite ao aperfeiçoamento do articulado pela 1.ª instância constitui um problema que a Relação não pode deixar de enfrentar. Talvez a doutrina e a jurisprudência ainda tenham de percorrer algum caminho antes de se chegar à melhor solução do problema, mas o mais importante é que, ao contrário do que acontecia até há pouco, o mesmo não seja ignorado pela Relação e esta não decida como se o risco da improcedência continuasse a pertencer exclusivamente à parte recorrida (isto é, à parte vencedora em 1.ª instância).


MTS