"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/06/2014

Poderes da Relação em matéria de facto; não uso pela 1.ª instância de poderes inquisitórios




1. Pelo seu interesse, divulga-se uma recente decisão proferida numa das Relações, cujo sumário é o seguinte:

“I - O actual artigo 662.º do CPC configura uma clara evolução do sentido conferido pela lei à reapreciação da matéria de facto, tendo claramente consagrado a autonomia decisória dos Tribunais da Relação, aos quais compete formar e formular a sua própria convicção e, bem assim, conferindo-lhes a possibilidade de renovação de certos meios de prova e mesmo a produção de novos meios de prova, em casos de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.

II - Esta medida não significa a possibilidade de realização de um novo julgamento, destinando-se antes a servir para firmar uma convicção mais segura sobre determinado facto controvertido, devendo a Relação avaliar a prova que foi ou deveria ter sido produzida, mediante critérios objectivos que, atentas as circunstâncias, revelem a imprescindibilidade ou não de uma tal diligência complementar, visando sempre a superação de dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada.

III – Verificando-se a existência de tal dúvida fundada sobre o alcance da prova produzida, e não tendo sido determinada oficiosamente em primeira instância diligência reputada absolutamente essencial à formação da convicção quanto à prova ou não prova daquele facto cuja reapreciação é pedida pela recorrente, em obediência aos princípios da celeridade e da economia processual, é função do relator ordenar as diligências que considere necessárias, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, alínea d) [sic; leia-se b)], do CPC, que concretiza o poder de direcção do processo pelo juiz genericamente consagrado no artigo 6.º da referida codificação, tornando desnecessário que o processo baixe à primeira instância para recolha de uma prova essencial nos termos sobreditos e que o tribunal da Relação pode, por si mesmo, obter”.

2. O que estava em causa era saber se, num processo de insolvência, a reclamação de um crédito tinha sido apresentada dentro do prazo. Estavam juntos ao processo dois documentos com datas diferentes quanto à expedição da referida reclamação; fazendo uso do disposto no art. 411.º nCPC, o juiz da 1.ª instância solicitou ao Administrador de Insolvência que confirmasse o recebimento da reclamação apresentada numa dessas datas; perante a resposta negativa, o mesmo juiz não solicitou ao Administrador a confirmação da recepção da reclamação que o reclamante alega ter enviado na outra data e deu como não provado que a reclamação tivesse sido enviada em qualquer das referidas datas.

Neste contexto, a Relação entende que, fazendo uso do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. b), nCPC, pode solicitar ao Administrador da Insolvência o esclarecimento sobre a correspondência que lhe teria sido remetida na outra data.

3. O caso é particularmente interessante, porque se prende com o não cumprimento pela 1.ª instância do dever de cooperação do tribunal. Mais em concreto: o caso mostra que o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. b), nCPC também pode ser utilizado para sancionar o não cumprimento pelo tribunal de 1.ª instância do dever de cooperação em matéria probatória, ou seja, para sancionar a falta de uso dos poderes inquisitórios que lhe são atribuídos pelo art. 411.º nCPC.

Pela minha parte, tenho entendido que o estabelecido no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC pode ser utilizado nos casos em que a violação do dever de cooperação se se traduz na não utilização pela Relação do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4). O caso em análise mostra que o art. 662.º, n.º 2, al. b), nCPC pode ser utilizado nas situações em que a violação do dever de cooperação se verificou em matéria probatória. Isto significa que vai fazendo o seu caminho a orientação segundo a qual (i) compete à Relação sancionar o não cumprimento do dever de cooperação pela 1.ª instância e (ii) a Relação está impedida de apreciar e decidir o recurso como se essa violação não tivesse existido.


MTS