"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/06/2014

Uma desarmonia no nCPC


1. Em substituição do anterior incidente de aclaração (cf. art. 669.º, n.º 1, al. a), aCPC), o nCPC estabelece que qualquer ambiguidade ou obscuridade de que padeça a decisão só é relevante se a tornar ininteligível: nesta hipótese, a decisão é nula (art. 615.º, n.º 1, al c), nCPC). Os art. 666.º e 685.º estendem este regime aos acórdãos dos tribunais superiores.

Se uma decisão ou um acórdão for efectivamente ininteligível, ou seja, se não for possível determinar o seu sentido, compreende-se mal que o tribunal de recurso possa tomar outra posição que não seja a de mandar baixar a decisão ou o acórdão ao tribunal a quo, para que este possa explicar-se melhor e fazer-se compreender. Infelizmente, não é esse o regime legal, dado que o conhecimento das nulidades das decisões no nCPC não foi adaptado (também mea culpa...) a esta nova nulidade processual:

-- O art. 665.º, n.º 1, nCPC  estabelece que a Relação, ainda que declare nula a decisão da 1.ª instância por ininteligibilidade, conhece do objecto do recurso;

-- O art. 684.º, n.º 1, nCPC -- através da remissão para o art. 615.º, n.º 1, al. c), nCPC -- estabelece que o STJ supre a nulidade por ininteligibilidade, declara em que sentido a decisão deve considerar-se modificada e conhece dos outros fundamentos do recurso.

Em ambos os casos, a lei institui um regime de substituição, quando logicamente deveria estabelecer um regime de cassação.

2. O regime legal não levanta problemas quando é o próprio tribunal que proferiu a decisão ou o acórdão que, pela inadmissibilidade do recurso, aprecia, por reclamação da parte, a alegada ininteligibilidade (art. 615.º, n.º 4, 666.º e 685.º). Nesta hipótese é o próprio órgão judicante que é chamado a explicar-se ou a fazer-se compreender.


3. Uma observação complementar: o nCPC mantém a diferença -- que já existia no aCPC -- no conhecimento das nulidades da decisão da 1.ª instância pela Relação (art. 665.º, n.º 1: sempre regime de substituição) e das nulidades do acórdão da Relação pelo STJ (art. 684.º, n.º 1 e 2: nalguns casos regime de substituição, noutros regime de cassação). A justificação para esta diferença de tratamento de uma mesma nulidade não é nada evidente. Perante, por exemplo, uma omissão de pronúncia da 1.ª instância, a Relação substitui-se ao tribunal recorrido; perante uma omissão de pronúncia da Relação, o STJ não pode substituir-se à Relação e deve solicitar a esta que se pronuncie.


MTS