"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/06/2014

Revelia do réu: uma incongruência normativa




1. A Comissão que, em 2010 e 2011, foi chamada a colaborar na reforma do processo civil tinha apenas por missão propor algumas medidas mais urgentes em áreas nas quais a prática mostrava que havia disfuncionalidades e bloqueios. Nunca teve mandato para proceder a uma reformulação geral do CPC e nunca isso esteve no seu espírito. Pelo contrário: a Comissão sempre trabalhou na pressuposição de que o que propunha era a última revisão do CPC antes da construção, de raiz, de um novo CPC.

Uma das áreas em que havia que fazer um trabalho cuidadoso na preparação de um novo CPC é aquela que respeita às relações entre o direito interno e o já vasto processo civil europeu. Haveria que determinar que adaptações é que se imporiam ao direito interno em função do direito europeu e que desarmonias entre o direito interno e o direito europeu deveriam ser evitadas.

2. O estabelecido no art. 18.º Reg. 861/2007 (relativo ao processo europeu para acções de pequeno montante) mostra uma das desarmonias que teria sido necessário colmatar. Esse preceito estabelece a possibilidade da revisão de uma decisão proferida numa acção de pequeno montante em que se verificou a revelia do demandado quando:

A notificação do formulário de requerimento ou a citação para comparecer numa audiência tenham sido efectuadas segundo um método que não fornece prova da recepção pelo próprio requerido (art. 18.º, n.º 1, al. a) i), Reg. 861/2007);

– A citação ou notificação não tenha sido transmitida ao requerido com a antecedência suficiente para lhe permitir preparar a sua defesa, sem que tal facto lhe possa ser imputado (art. 18.º, n.º 1, al. a) ii), Reg. 861/2007);

– O requerido tenha sido impedido de contestar o pedido por motivo de força maior ou devido a circunstâncias excepcionais, sem que tal facto lhe possa ser imputado (art. 18.º, n.º 1, al. b), Reg. 861/2007).

Este regime contrasta profundamente com o regime interno em matéria de revelia do réu: a única hipótese que o réu revel tem de impugnar a decisão proferida à revelia é a demonstração da falta ou da nulidade da sua citação (art. 696.º, al. e), nCPC). Assim, por exemplo, se a citação edital tiver sido devidamente utilizada pelo tribunal da acção, não há qualquer forma de o demandado impugnar a decisão proferida à sua revelia.

3. Para além de o direito português ser muito mais restritivo do que outros direitos em matéria de expurgação da revelia, sucede que a convivência do regime europeu em matéria de acções de pequeno montante com o regime interno português mostra uma desarmonia dificilmente aceitável:

– Se a acção – cujo valor não pode exceder € 2.000 (art. 2.º, n.º 1, Reg. 861/2007) – seguir o regime do processo europeu para acções de pequeno montante, é possível a revisão da decisão proferida nos termos do art. 18.º, n.º 1, Reg. 861/2007;

– Se a acção – que pode referir-se a interesses patrimoniais significativos ou que pode incidir sobre interesses não patrimoniais – seguir a forma do processo comum, só é possível atacar a decisão proferida nos termos muito restritos do art. 696.º, al. e), nCPC.

 
MTS