"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/06/2014

Dispensa da audiência prévia e observância do dever de consulta



1. Suponha-se a seguinte situação: num processo de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz dispensa a audiência prévia (cf. art. 593.º, n.º 1, nCPC) e profere despacho saneador onde conhece de uma excepção dilatória não debatida nos articulados (ou melhor, não invocada por nenhuma das partes nos articulados); perante esta situação, cabe perguntar como pode reagir a parte prejudicada com o despacho saneador.

O problema suscitado parece poder ter uma de duas soluções: o problema pode ser solucionado no plano da indevida dispensa da audiência prévia ou no plano do indevido conteúdo do despacho saneador. No primeiro caso, a questão resolve-se no plano da nulidade processual (cf. art. 195.º, n.º 1, nCPC); no segundo, a questão é resolvida no plano da nulidade do despacho saneador por excesso de pronúncia, dado que o tribunal conhece de matéria que, sem a prévia consulta das partes (cf. art. 3.º, n.º 3, nCPC), não pode conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC).   


2. Como se disse, uma solução possível é aquela que se situa no plano da indevida dispensa da audiência prévia e, portanto, no da nulidade processual. A favor desta solução poder-se-ia invocar o disposto no art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC: a audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. Desta disposição poder-se-ia retirar, com base num argumento a contrario sensu, que a audiência prévia não pode ser dispensada se houver que debater, na própria audiência, uma excepção dilatória não discutida nos articulados. Todavia, contra esta solução podem ser invocadas várias razões.

A utilização do argumento a contrario justifica-se para encontrar a regulamentação para um caso omisso. A verdade é que a dispensa da audiência prévia tem uma regulamentação legal que consta do art. 593.º nCPC; portanto, não se justifica procurar encontrar num argumento a contrario construído a partir do art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC o regime dessa mesma dispensa.

O que foi referido é reforçado por uma outra circunstância. O argumento a contrario teria alguma justificação se a audição das partes antes do proferimento do despacho saneador tivesse de ocorrer necessariamente na audiência prévia. A verdade é que não é assim: essa audição prévia não tem de se verificar na audiência prévia, podendo ser realizada através de uma resposta escrita das partes depois de o tribunal lhes ter comunicado a intenção de conhecer da excepção dilatória não debatida nos articulados. Será, aliás, o modo a seguir quando o tribunal pretenda conhecer da excepção dilatória na sentença final.

Pode invocar-se ainda uma outra razão. O vício processual que subjaz ao problema em análise – que é o conhecimento de uma excepção dilatória numa “decisão-surpresa” – detecta-se apenas no momento em que o tribunal profere o despacho saneador, conhecendo nele de uma excepção dilatória não discutida pelas partes nos seus articulados. É algo estranho que, havendo uma decisão proferida, se invoque uma nulidade processual que impede o proferimento dessa decisão, em vez de se invocar um vício da própria decisão. Repare-se que o problema não é ser proferido um despacho saneador fora do momento processualmente adequado (a seguir à petição inicial, por exemplo) – situação que origina uma nulidade processual –, mas ser proferido um despacho saneador no momento certo com um conteúdo inadmissível – o que deve conduzir à sua nulidade. 

Por fim, cabe referir que o argumento a contrario extraído do art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC só poderia resolver a questão quanto ao conhecimento de uma excepção dilatória não discutida nos articulados. Se idêntico problema se colocasse quanto a uma excepção peremptória, já o referido argumento não resolveria a situação, isto é, já não poderia ser utilizado para impedir a dispensa da audiência prévia. Isto significaria que, se, por exemplo, o tribunal pretendesse conhecer de uma incompetência absoluta, não poderia dispensar a audiência prévia, mas, se o tribunal quisesse conhecer de uma nulidade (substantiva), já nada impediria a dispensa dessa audiência. A falta de justificação para esta dualidade de regimes também milita contra qualquer argumento a contrario retirado do art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC. 


3. Concluindo-se que nada se pode extrair do disposto no art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC para a solução do problema em discussão, há que passar a analisar o disposto no art. 593.º nCPC. O que cabe perguntar é se há algo nesse preceito que impeça que o juiz dispense a audiência preliminar quando só tenha de proferir o despacho saneador, mas tenha de ouvir previamente as partes sobre uma excepção dilatória não debatida (ou sobre qualquer outra questão não considerada pelas partes no seus articulados).

A resposta só pode ser uma: não há nenhuma incompatibilidade entre a dispensa da audiência prévia e a necessidade de audição prévia das partes. O tribunal dispensa a audiência prévia, mas, como só pode conhecer no despacho saneador de uma excepção não debatida pelas partes depois de lhes dar a possibilidade de se pronunciarem (cf. art. 3.º, n.º 3, nCPC), manda ouvir previamente as partes.

A falta desta audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC): o tribunal conhece de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta), não pode conhecer. No fundo, a situação não é distinta daquela que se verifica quando o tribunal conhece de matéria não alegada pelas partes e sobre a qual não há nenhuma regra de aquisição processual (como a que vale para os factos complementares: cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), nCPC): também nesta hipótese a decisão padece de excesso de pronúncia.


MTS