1. Suponha-se
a seguinte situação: num processo de valor superior a metade da alçada da
Relação, o juiz
dispensa a audiência prévia (cf. art. 593.º, n.º 1, nCPC) e profere despacho
saneador onde conhece de uma excepção dilatória não debatida nos articulados
(ou melhor, não invocada por nenhuma das partes nos articulados); perante esta
situação, cabe perguntar como pode reagir a parte prejudicada com o despacho
saneador.
O problema
suscitado parece poder ter uma de duas soluções: o problema pode ser
solucionado no plano da indevida dispensa da audiência prévia ou no plano do indevido
conteúdo do despacho saneador. No primeiro caso, a questão resolve-se no plano
da nulidade processual (cf. art. 195.º, n.º 1, nCPC); no segundo, a questão é
resolvida no plano da nulidade do despacho saneador por excesso de pronúncia,
dado que o tribunal conhece de matéria que, sem a prévia consulta das partes
(cf. art. 3.º, n.º 3, nCPC), não pode conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d),
nCPC).
2. Como se
disse, uma solução possível é aquela que se situa no plano da indevida dispensa
da audiência prévia e, portanto, no da nulidade processual. A favor desta
solução poder-se-ia invocar o disposto no art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC: a
audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no
despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, esta já tenha
sido debatida nos articulados. Desta disposição poder-se-ia retirar, com base
num argumento a contrario sensu, que
a audiência prévia não pode ser dispensada se houver que debater, na própria
audiência, uma excepção dilatória não discutida nos articulados. Todavia, contra
esta solução podem ser invocadas várias razões.
A
utilização do argumento a contrario
justifica-se para encontrar a regulamentação para um caso omisso. A verdade é
que a dispensa da audiência prévia tem uma regulamentação legal que consta do
art. 593.º nCPC; portanto, não se justifica procurar encontrar num argumento a contrario construído a partir do art.
592.º, n.º 1, al. b), nCPC o regime dessa mesma dispensa.
O que foi referido
é reforçado por uma outra circunstância. O argumento a contrario teria alguma justificação se a audição das partes antes
do proferimento do despacho saneador tivesse de ocorrer necessariamente na
audiência prévia. A verdade é que não é assim: essa audição prévia não tem de
se verificar na audiência prévia, podendo ser realizada através de uma resposta
escrita das partes depois de o tribunal lhes ter comunicado a intenção de
conhecer da excepção dilatória não debatida nos articulados. Será, aliás, o
modo a seguir quando o tribunal pretenda conhecer da excepção dilatória na
sentença final.
Pode invocar-se
ainda uma outra razão. O vício processual que subjaz ao problema em análise – que
é o conhecimento de uma excepção dilatória numa “decisão-surpresa” – detecta-se
apenas no momento em que o tribunal profere o despacho saneador, conhecendo
nele de uma excepção dilatória não discutida pelas partes nos seus articulados.
É algo estranho que, havendo uma decisão proferida, se invoque uma nulidade
processual que impede o proferimento dessa decisão, em vez de se invocar um
vício da própria decisão. Repare-se que o problema não é ser proferido um
despacho saneador fora do momento processualmente adequado (a seguir à petição
inicial, por exemplo) – situação que origina uma nulidade processual –, mas ser
proferido um despacho saneador no momento certo com um conteúdo inadmissível –
o que deve conduzir à sua nulidade.
Por fim,
cabe referir que o argumento a contrario
extraído do art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC só poderia resolver a questão
quanto ao conhecimento de uma excepção dilatória não discutida nos articulados.
Se idêntico problema se colocasse quanto a uma excepção peremptória, já o
referido argumento não resolveria a situação, isto é, já não poderia ser
utilizado para impedir a dispensa da audiência prévia. Isto significaria que,
se, por exemplo, o tribunal pretendesse conhecer de uma incompetência absoluta,
não poderia dispensar a audiência prévia, mas, se o tribunal quisesse conhecer
de uma nulidade (substantiva), já nada impediria a dispensa dessa audiência. A
falta de justificação para esta dualidade de regimes também milita contra
qualquer argumento a contrario
retirado do art. 592.º, n.º 1, al. b), nCPC.
3.
Concluindo-se que nada se pode extrair do disposto no art. 592.º, n.º 1, al.
b), nCPC para a solução do problema em discussão, há que passar a analisar o
disposto no art. 593.º nCPC. O que cabe perguntar é se há algo nesse preceito que
impeça que o juiz dispense a audiência preliminar quando só tenha de proferir o
despacho saneador, mas tenha de ouvir previamente as partes sobre uma excepção
dilatória não debatida (ou sobre qualquer outra questão não considerada pelas
partes no seus articulados).
A resposta
só pode ser uma: não há nenhuma incompatibilidade entre a dispensa da audiência
prévia e a necessidade de audição prévia das partes. O tribunal dispensa a
audiência prévia, mas, como só pode conhecer no despacho saneador de uma
excepção não debatida pelas partes depois de lhes dar a possibilidade de se
pronunciarem (cf. art. 3.º, n.º 3, nCPC), manda ouvir previamente as partes.
A falta
desta audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de
consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por
excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC): o tribunal conhece
de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta),
não pode conhecer. No fundo, a situação não é distinta daquela que se verifica
quando o tribunal conhece de matéria não alegada pelas partes e sobre a qual
não há nenhuma regra de aquisição processual (como a que vale para os factos
complementares: cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), nCPC): também nesta hipótese a
decisão padece de excesso de pronúncia.
MTS