"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/03/2018

Jurisprudência (821)


Matéria de facto; factos conclusivos;
cláusula contratual geral; nulidade


1. O sumário de STJ 19/10/2017 (1077/14.7TVLSB.L1.S1) é o seguinte: 

I. A natureza factual ou meramente jurídica (conclusiva ou valorativa) de determinado enunciado linguístico não deve ser aferida numa simples base dogmática ou categorial, mas em função das estratégias comunicacionais reveladas pelo contexto alegatório ou probatório em que esse enunciado é produzido, discutidos e ajuizado.

II. Perante a alegação do autor, impugnada pelo réu, de que a expressão “conta do Cliente” inserida numa cláusula contratual geral não especifica a conta bancária do aderente onde terá lugar o débito - permitindo assim que o predisponente debite e proceda a compensação em contas coletivas de que aquele aderente seja contitular -, tendo as instâncias dado como provada tal alegação, este juízo probatório reveste natureza factual, devendo ser acatado pelo tribunal de revista nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC.

III. São nulas as cláusulas contratuais gerais que autorizem o predisponente a compensar o seu crédito sobre o saldo de conta coletiva solidária de que o aderente seja ou venha a ser contitular, por violação do princípio da boa-fé objetiva, em relação aos demais contitulares não aderentes, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º da LCCG, conforme a jurisprudência uniformizada pelo AUJ do STJ n.º 2/2016, de 13/11/2015, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 07/ 01/2016,

IV. Uma vez adotada aquela jurisprudência, com a função uniformizadora que lhe é atribuída, em termos de acatamento pelos tribunais judiciais, deve ela ser seguida “enquanto se mantiverem as circunstâncias em que se baseou”.

V. Considerando que o caso em apreço se inscreve no âmbito da factualidade e do quadro normativo tido em conta no indicado AUJ, não se mostra oportuno nem curial, sem mais, questionar novamente o ali fixado.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 

"A cláusula 5.ª, n.º 7, das “Condições Especiais da Super Conta Ordenado” tem o seguinte teor:

O produto das mobilizações de aplicações de capital, que hajam sido ordenadas pelo Cliente, destinar-se-ão prioritariamente à liquidação dos montantes que excederem o novo limite de crédito, nos termos do número anterior ficando o Banco expressamente autorizado a proceder ao respetivo débito da conta do Cliente pelos montantes que forem necessários para o efeito.

Da cláusula 2.ª, n.º 7, das Condições Aplicáveis à Facilidade de Descoberto da Super Conta Ordenado” (DA) consta o seguinte:

O produto das mobilizações de aplicações de capital, que hajam sido ordenadas pelo Cliente, destinar-se-ão prioritariamente à liquidação dos montantes que excederem o novo limite de crédito, nos termos do número anterior ficando o Banco expressamente autorizado a proceder ao respetivo débito da conta do Cliente pelos montantes que forem necessários para o efeito. 


Ficou também provado que “estas duas cláusulas não especificam a conta bancária onde terá lugar o débito” – ponto 1.19 da factualidade provada.

Perante tal factualidade, à luz do doutrinado no mencionado AUJ do STJ n.º 2/2016, a 1.ª instância concluiu que aquelas cláusulas eram contrárias ao princípio da boa-fé objetiva, inspirada no princípio da confiança, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 15.º da LCCG.

Por sua vez, o Banco R., no recurso de apelação por si interposto, sem deduzir impugnação da decisão de facto, limitou-se a sustentar, no que aqui releva, o entendimento de que a locução “conta do Cliente” ali empregue devia ser interpretada, à luz do respetivo contexto contratual e do espírito que lhe está subjacente, no sentido de se referir à conta do Cliente que é objeto das “CEs” e não as outras contas singulares ou coletivas de que o mesmo seja titular.

Porém, no acórdão recorrido, como observa o Recorrente, o Tribunal da Relação não empreendeu qualquer argumentação específica sobre esse ponto, apenas concluindo pela confirmação do julgado em 1.ª instância nessa parte, face ao que o mesmo Recorrente vem reiterar a sua posição.

Vejamos.

A interpretação a dar à indicada expressão “conta do Cliente”, inserta nas cláusulas gerais em apreço convoca, desde logo, a questão de saber se estamos perante uma questão de facto ou uma questão meramente jurídica, o que nem sempre, no terreno prático, se torna destrinça fácil de fazer.

Importa, no entanto, considerar que a natureza factual ou meramente jurídica (conclusiva ou valorativa) de determinados enunciados linguísticos não deve ser aferida numa base dogmática ou categorial, mas em função das estratégias comunicacionais reveladas pelo contexto alegatório ou probatório em que são produzidos, discutidos e ajuizados.

No caso presente, o A. alegou, sob o artigo 52.º da petição inicial que as duas cláusulas em foco “autorizam a R. a proceder à compensação de quantias não pagas através do débito em qualquer conta do titular do cartão, já que não especificam a conta bancária onde terá lugar o débito[...]. E no artigo 53.º do mesmo articulado alegou que “deste modo, é permitido que a Ré também debite e proceda a essa compensação em contas que o aderente não é o único titular, como contas conjuntas e solidárias uma vez que não especifica qual a conta através da qual vai operar a compensação.”

Por seu turno, o Banco R. impugnou essa matéria sob os artigos 118.º a 128.º da contestação, dizendo, além do mais, que a possibilidade alegada no artigo 52.º da petição inicial é incompreensível, uma vez que “a utilização do crédito concedido ao cliente aderente a este regime, para movimentar “a descoberto” a sua conta bancária que se aplique o regime especial da “Conta Ordenado” não se faz apenas mediante a utilização de cartões, podendo também fazer-se mediante o saque de cheques ou a realização de transferências e ordens de pagamento (artigos 118.º e 119.º da contestação).

Mas da impugnação aduzida naqueles artigos e subsequentes, o Banco R. não assumiu uma posição pelo menos clara sobre o entendimento que agora faz da locução “conta do Cliente”, deixando mesmo perpassar a ideia de que a compensação se podia operar sobre outras contas, nomeadamente coletivas, do cliente.

Seja como for, o certo é que essa matéria foi submetida a instrução, de que resultou dar-se como provado, na alínea S) da sentença, vertida no ponto 1.19 da factualidade acima consignada, que “estas duas cláusulas não especificam a conta bancária onde terá lugar o débito”, não tendo o Recorrente impugnado, em sede de apelação, aquele juízo probatório.

Em tais circunstâncias, é lícito entender que a afirmação do A. de que “as duas cláusulas em apreço não especificam a conta através da qual se vai operar a compensação” se reporta ao sentido material da expressão “conta do Cliente” ali inserta. O mesmo é dizer que, segundo tal alegação, aquela expressão não tem o sentido real da dita Conta Ordenado, podendo compreender quaisquer outras contas mormente coletivas do aderente e de que sejam também contitulares não aderentes.

Neste conspecto, apurar e fixar o sentido real dessa expressão constitui decisão de facto que, como tal, foi ajuizada pelas instância e não impugnada pelo Recorrente e que, a este tribunal de revista, compete acatar nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Nessa linha de entendimento, tal fixação não viola o preceituado nos artigos 10.º e 11.º, n.º 1, da LCCG, como sustenta o Recorrente.

Diversamente seria se fosse dado apenas como provado o teor literal das referidas cláusulas, caso em que, nessa base, se poderia discutir o seu sentido e alcance normativo, à luz do contexto do respetivo clausulado contratual.

Nesta conformidade, tem-se por adquirido que a expressão “conta do Cliente” inserida nas referidas cláusulas 5.ª, n.º 7, das “Condições Especiais da Super Conta Ordenado” (CEs) e 2.ª, n.º 7, das Condições Aplicáveis à Facilidade de Descoberto da Super Conta Ordenado” (DA) não especifica as contas sobre as quais o Banco Recorrente pode operar a compensação, donde se infere que o poderia ser sobre outras contas, mesmo coletivas do aderente.

Assim sendo, à luz da jurisprudência fixada pelo AUJ do STJ n.º 2/2016 não resta senão concluir que tais cláusulas se mostram contrárias ao princípio da boa-fé objetiva nos termos e para os efeitos do artigo 15.º da LCCG, mas só na medida em que permite operar a compensação em contas coletivas do aderente de que sejam contitulares não aderentes.

Termos em que procede parcialmente a revista, nesta parte, confinando-se a declaração da nulidades das sobreditas cláusulas ao segmento em que podem alcançar as contas coletivas do aderente de que sejam também contitulares não aderentes, devendo, por isso, ser objeto de reformulação explícita no sentido de não incluir tal segmento."
 

3. [Comentário] O acórdão debate-se com o problema dos chamados "factos conclusivos" Mesmo que se entenda que a expressão "conta do Cliente" pode ser integrada na categoria dos referidos "factos conclusivos", trata-se, na verdade, de um falso problema, como houve a oportunidade de referir recentemente em Jurisprudência (784). 

Ao que então se referiu pode acrescentar-se um outro aspecto. Como se sabe, as presunções legais podem ser de facto ou de direito: estas últimas são aquelas que permitem estabelecer a existência ou inexistência de um direito, como é o caso, por exemplo, da presunção de que o possuidor é titular de um direito sobre a coisa (art. 1268.º, n.º 1, CC). Ora, nunca se defendeu que as presunções de direito não integram a matéria da prova pela circunstância de das mesmas se inferir um direito, ou seja, um facto juridicamente qualificado e, portanto, um facto conclusivo. Isto significa que a prova não é incompatível com factos juridicamente qualificados.

MTS