"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/03/2018

Jurisprudência (805)


Condomínio; administrador;
legitimidade; substituição processual


1. O sumário de RP 27/11/2017 (822/17.3T8VFR.P1) é o seguinte:

I - O artigo 1437.º do Código Civil não se reporta à legitimidade processual, no sentido da legitimidade ad causam, mas apenas à legitimatio ad processum, daí decorrendo que a representação do condomínio em juízo (parte na ação por força da extensão da personalidade judiciária prevista no art.º 12/e) do CPC) incumbe ao respetivo administrador.
 
II - Numa ação intentada por condóminos, em que é pedida a condenação na realização de obras de restauro e impermeabilização do terraço dum prédio urbano em regime de propriedade horizontal, e no pagamento de uma quantia indemnizatória, deverá ser demandado o condomínio, a citar na pessoa do seu administrador.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"Dispõe o artigo 1437.º do Código Civil:

1. O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
 
2. O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
 
3. Exceptuam-se as acções relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador.

Em suma, a medida da personalidade judiciária do condomínio coincide com a das funções do administrador, ou seja, as ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador devem ser intentadas por (ou contra o) condomínio. Fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em juízo em nome próprio [Vide Gonçalo Oliveira Magalhães, in Revista Julgar, n.º 23, Coimbra Editora, 2014, pág. 62].

No que respeita ao específico âmbito da impugnação das deliberações da assembleia de condóminos, preceitua o n.º 6 do artigo 1433.º do diploma legal citado, que «A representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para esse efeito».

Como se refere no acórdão desta Relação, de 13.02.2017 [Proferido no Processo n.º 232/16.0T8MTS.P1, subscrito pelo ora relator na qualidade de adjunto], mal se percebe que os condóminos, pessoas singulares ou coletivas, dotados de personalidade jurídica, careçam de ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio, dado que a representação judiciária apenas se justifica relativamente a pessoas singulares desprovidas de capacidade judiciária ou relativamente a entidades coletivas, nos termos que a lei ou respetivos estatutos dispuserem, ou ainda relativamente aos casos em que as pessoas coletivas ou singulares se venham a achar numa situação de privação dos poderes de administração e disposição dos seus bens por efeito da declaração de insolvência.

Conclui-se no citado aresto que «… quando no nº 6, do artigo 1433º, do Código Civil se faz referência aos condóminos, o legislador incorreu nalguma incorreção de expressão e de facto parece ter-se tido na mira, uma entidade coletiva, a assembleia de condóminos corporizada pelos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada, o condomínio vinculado pelas deliberações impugnadas e cuja execução compete ao administrador…».

Revertendo à situação em debate nos autos, não restam dúvidas de que a questão se centra na interpretação do n.º 2 do artigo 1437.º do Código Civil, que atrás se transcreveu: «O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício».

Na interpretação da disposição legal citada, ensinava o Professor Castro Mendes [Direito Processual Civil, II, AAFDL, Lisboa, 1980, pág. 25.]: “A legitimidade do administrador a que se refere o art.º 1437.º é uma legitimidade indirecta: a entidade que está em juízo é a associação de condóminos”.

Como lapidarmente refere Rui Pinto Duarte na anotação ao normativo em apreço [ In Código Civil Anotado, Volume II, Coordenação de Ana Prata, Almedina, 2017, pág. 294] “Não tendo o administrador interesse pessoal nestas ações, essa legitimidade só pode ser atribuída na qualidade de representante dos condóminos, à semelhança do disposto no n.º 6 do art.º 1433.º, quanto às ações de impugnação das deliberações da assembleia”.

No seu acórdão de 4.10.2007 [Proferido no processo n.º 07B1875, acessível no site da DGSI, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino], o Supremo Tribunal de Justiça adere à posição doutrinária enunciada, sediando a questão no pressuposto processual da personalidade judiciária (por extensão legal) e na exigência legal de representação dos patrimónios autónomos pelos seus administradores, e sintetizando-a no respetivo sumário que se transcreve parcialmente:

«[…] 4. O art. 1437º do CC consagra a capacidade judiciária do condomínio, ao estabelecer a susceptibilidade de o administrador, seu órgão executivo, estar em juízo em representação daquele, nas lides compreendidas no âmbito das funções que lhe pertencem (art. 1436º), ou dos mais alargados poderes que lhe forem atribuídos pelo regulamento ou pela assembleia, sendo que, em qualquer dos casos, as acções deverão ter sempre por objecto questões relativas às partes comuns. […]

8. Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art. 1437º do CC mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto no art. 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que carecem de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial.

9. O art. 1437º não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca, porque este age, em juízo, enquanto órgão do condomínio e, portanto, em representação deste. Do que, no fundo, se trata, é de atribuir ao administrador legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.

10. Parte no processo, relativamente às partes comuns do edifício, é o condomínio, sendo relativamente a este, e não no tocante ao administrador, que se poderá colocar a questão da legitimidade. […]»".


3. [Comentário] A orientação defendida no acórdão da RP está, muito provavelmente, de acordo com a orientação maioritária na jurisprudência e na doutrina. Com o devido respeito, essa orientação não corresponde ao disposto no art. 1437.º CC.

A legitimidade processual singular (cf. art. 30.º CPC) (que respeita à relação da parte com o objecto do processo) é um pressuposto processual distinto da capacidade judiciária (cf. art. 15.º CPC) (que se refere ao suprimento da incapacidade de exercício e à representação de entes colectivos), pelo que é mais do que discutível que um preceito que se refere textualmente àquela legitimidade deva ser interpretado como referindo-se afinal a esta capacidade. Pode assim perguntar-se se está de acordo com os critérios interpretativos constantes do art. 9.º CC -- e, em particular, do disposto no seu n.º 2 -- que, onde se estabelece que o administrador do condomínio tem legitimidade para ser parte, se possa entender que afinal o que se determina é que ele tem legitimidade para ser representante do condomínio como parte processual.

Poder-se-ia dizer que esta é a única interpretação possível do preceito. Mas não é. Como se sabe, a legitimidade processual (ou ad causam) pode ser directa ou indirecta:

-- A legitimidade directa é aquela que é atribuída ao titular da relação material controvertida, como resulta do disposto no art. 30.º, n.º 3, CPC;

-- A legitimidade indirecta é aquela que é atribuída, pela lei ou pelas partes, a um substituto processual, isto é, a alguém que age em juízo como parte com base num direito alheio; a substituição processual legal é expressamente admitida pelo estabelecido no início do art. 30.º, n.º 3, CPC ("Na falta de indicação de lei em contrário [...]) e a substituição processual voluntária tem expressão, por exemplo, no art. 34.º, n.º 1 ("[...] ou por um deles com consentimento do outro [...]").

Isto significa que é possível dar à expressão "legitimidade" referida no art. 1437.º CC um sentido textual e totalmente correcto sobre o ponto e vista jurídico. Faz todo o sentido que a lei atribua ao administrador do condomínio uma legitimidade indirecta para que este actue em juízo como parte em substituição do condomínio. Afinal, o art. 1437.º CC é apenas uma das muitas regras processuais ou materiais que estabelece uma substituição processual. In casu, o administrador do condomínio é o substituto processual e o condomínio é a parte substituída.

Aliás, a não se entender assim, o disposto no art. 1437.º, n.º 2, CC (que dispõe que "O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício) teria de ser interpretado como se estabelecesse afinal que aquele administrador tem legitimidade para representar o condomínio quando este for demandado numa acção. Quer dizer: enquanto a lei atribui a qualidade de demandado -- e, portanto, de parte -- ao administrador, a interpretação que obteve vencimento no acórdão da RP atribui a qualidade de parte ao condomínio e a qualidade de representante ao administrador. Salvo o devido respeito, esta interpretação do preceito, além de, como se viu, não ser imposta por nenhuma razão processual, não tem nenhuma correspondência verbal com a sua letra, pelo que contraria o disposto no art. 9.º, n.º 2, CC.

No caso em apreciação, a orientação defendida pela RP conduz a uma situação curiosa. O que estava em causa era uma omissão do administrador do condomínio na realização de determinadas obras. Qual foi a solução encontrada? A de os condóminos demandarem o condomínio que eles próprios integram para que este condomínio seja condenado a realizar as obras que o seu representante em juízo -- que é o administrador do condomínio -- não realizou. Além do muito mais, cabe referir que não é certamente a melhor solução atribuir a qualidade de representante do condomínio a quem tem um conflito com o próprio condomínio ou, pelo menos, com alguns condóminos.

Em conclusão: demonstrada a insustentabilidade jurídica e prática da orientação defendida pela RP, o desafio que deve ser superado é o de aplicar o disposto no art. 1437.º CC na área a que o mesmo se refere, que é o da atribuição da qualidade de substituto processual ao administrador do condomínio. Isto, aliás, em nada contende com a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio decorrente do estabelecido no art. 12.º, al. e), CPC, necessária, por exemplo, para permitir que o condomínio possa demandar o seu administrador. 

MTS