"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/03/2018

Jurisprudência (819)


Recurso de revisão;
documento superveniente

1. O sumário de STJ 19/10/2017 (181/09.8TBAVV-A.G1.S1) é o seguinte: 

I - Por princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, não se permita nova discussão do litígio; situações existem, contudo, em que a necessidade de segurança ou de certeza e as exigências da justiça conflituam de tal forma que o princípio da intangibilidade do caso julgado tem de ceder.

II - O meio processual adequado para esse efeito é o recurso extraordinário de revisão, o qual se comporta estruturalmente como uma acção destinada a fazer ressurgir a instância que o caso julgado extinguiu (fase rescindente) e a reabrir a instância anterior (fase rescisória).

III - Tendo a sentença proferida em 1.ª instância sido impugnada e tendo a Relação proferido acórdão confirmatório da mesma, apreciando definitivamente a questão de facto e de direito controvertida, é à Relação que cabe conhecer do recurso extraordinário de revisão por ter proferido a decisão a rever (art. 697.º, n.º 1, do CPC).

IV - São taxativas as situações previstas no art. 696.º do CPC que podem fundamentar o recurso de revisão.

V - O documento a que alude a al. c) do art. 696.º do CPC, para fundamentar a revisão, tem que revestir dois requisitos cumulativos: (i) a novidade (que significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde dele socorrer-se); e (ii) a suficiência (que implica que o documento constitua um meio de prova susceptível de, por si só, demonstrar ou infirmar facto ou factos relevantes por forma a conduzir a decisão mais favorável ao recorrente).

VI - Uma “Declaração” emitida por uma Junta de Freguesia, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com selo branco, da qual apenas resulta que a passagem nela referida “não é de trânsito público, mas apenas privado” – não obstante ser um documento autêntico com o alcance probatório que deriva do art. 371.º do CC – não é, por si só, um documento idóneo para que se possa ter como provada a facticidade susceptível de demonstrar a existência do
animus possessório, cuja falta conduziu à improcedência da acção na qual foi proferida a decisão a rever e na qual os recorrentes pediam que fosse declarada que uma parcela de terreno lhes pertencia e fazia parte integrante de um prédio de que são proprietários.

VII - Não cabe no âmbito da decisão proferida na fase rescindente do recurso sindicar a decisão revidenda, nomeadamente o bom ou mau uso de presunção legal, mas apenas averiguar se o documento apresentado, além da novidade, é suficiente para conduzir à alteração da decisão objecto do recurso de revisão em sentido favorável aos recorrentes. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:"

[...] Começaremos por salientar que correu termos uma acção declarativa movida pelos ora recorrentes contra os aqui recorridos, na qual os primeiros pediam que fosse declarado que a parcela de terreno que identificaram lhes pertencia e fazia parte integrante do prédio, também por si identificado, de que são proprietários, condenando-se os segundos a demolirem todas as obras que construíram em tal parcela de terreno.

A sentença proferida pela 1ª instância julgou improcedente essa acção, tendo sido confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, transitado em julgado.

Nessa sequência vieram os ali autores interpor recurso extraordinário de revisão ao abrigo do disposto no artigo 696º alínea c) do Código de Processo Civil, com fundamento em que dispunham de um documento novo susceptível de, por si só, modificar a decisão revidenda em sentido mais favorável.

Para tanto, juntaram uma “Declaração” emitida pela Junta de Freguesia de …, datada de 14 de Abril de 2016, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com o selo branco em uso nessa Junta, da qual constava o seguinte:

“A Junta de Freguesia de …, concelho de ..., declara que na localidade chamada vale do ninho desta freguesia de …, existe uma servidão de passagem de águas de regadio e seus acompanhantes, herdeiros da mesma água. Contudo é de salientar que essa passagem não é de trânsito público, mas apenas privado”. 


Não obstante tratar-se de documento autêntico, com o alcance probatório que deriva do disposto no 371º do Código Civil, acolheu-se o decidido no acórdão recorrido, na consideração de que do documento em causa – declaração – apenas resulta de útil que a passagem nele referida “não é de trânsito público, mas apenas privado”, não sendo, só por si, idóneo para abalar o decidido no acórdão objecto da pretensão de revisão, que, confirmando a sentença da 1ª instância proferida na acção declarativa movida pelos recorrentes contra os recorridos, julgou improcedente o recurso de apelação nela interposto.

Acresce que não cabe no âmbito da decisão proferida na fase rescindente sindicar a decisão revidenda, nomeadamente, o bom ou mau uso de presunção legal, mas apenas averiguar se o documento apresentado, além da novidade, é suficiente para conduzir à alteração da decisão (acórdão) objecto do recurso extraordinário de revisão em sentido favorável aos recorrentes, sendo claro, pelas razões expendidas na decisão de que se reclama, que não é."


3. [Comentário] Apenas uma observação a latere. Apesar de ser comum utilizar-se uma noção ampla de documento autêntico para englobar o que mais correctamente se poderia designar como documento oficial (como é o caso, por exemplo, de uma certidão emitida por um entidade pública), é muito discutível que a "Declaração" de uma Junta de Freguesia que qualifica como sendo de trânsito privado uma servidão de passagem de águas possa ser integrada na noção de documento autêntico.

Recorde-se que, como decorre do disposto nos art. 371.º, n.º 1, e 372.º, n.º 2, CC, um documento autêntico é aquele em que uma autoridade ou oficial público atesta um facto que percepciona. Se já é duvidoso que este requisito esteja verificado quanto a uma vulgar certidão de nascimento ou de óbito, é ainda mais duvidoso que esse requisito se encontre preenchido quando uma Junta de Freguesia procede a uma qualificação jurídica de uma servidão de passagem de águas.

MTS