"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/03/2018

Jurisprudência (814)


Agente de execução;
decisão-surpresa; nulidade da decisão


1. O sumário de RL 23/11/2017 (2897-12.2TBTVD-A.L1-6) é o seguinte: 

– Até à reforma introduzida pelo Decreto-Lei 38/2003 de 08/03, a execução tramitava exclusivamente pelos Tribunais, sobre a direcção do Juiz que, no uso do seu poder jurisdicional, intervinha na condução e direcção do processo, determinando a citação, as diligências de penhora, de venda de bens e de pagamento.

– Por via do referido diploma, foi conferido ao agente de execução, a incumbência de proceder a todas as diligências do processo de execução, não reservadas ao tribunal ou aos funcionários judiciais, sob o controlo e dependência funcional do juiz, incluindo citações, consulta do registo informático de execuções, diligências úteis à identificação e localização de bens penhoráveis, penhoras, administração de bens, venda e modalidade da mesma.

– Com a redacção introduzida pela Lei 226/2008 de 20 de Novembro, assistiu-se a um reforço dos poderes do agente de execução, em detrimento dos poderes cometidos ao juiz, eliminando-se a expressão “sem prejuízo do poder geral de controlo do processo”, anteriormente vigente.

– O agente de execução, sendo indicados bens a penhorar pelo exequente, não está vinculado a penhorar os bens indicados, mas apenas quando daí não decorra a inobservância da regra geral de proporcionalidade e adequação que lhe cabe observar, nos termos previstos pelo artº 834 do C.P.C.

– Realizada a penhora, o juiz fiscaliza a legalidade e a proporcionalidade da penhora, nos termos do disposto nos artigos 821.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 834.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, desde que submetida tal questão à apreciação jurisdicional, nos termos do artigo 809.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

– Incorre em nulidade por excesso de pronúncia, despacho judicial que, oficiosamente e sem observância prévia do contraditório, anula a penhora de imóvel, único bem penhorado na execução, com fundamento em ilegalidade por violação do princípio da proporcionalidade.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dos autos não consta nem que a executada, proprietária do imóvel, tenha sido já citada para a execução, (resultando do despacho lavrado pelo Sr. Juiz recorrido que o não foi) nem que outros bens existam que possam satisfazer a dívida exequenda, nem sequer o valor do bem imóvel, que não é referenciado para comparação pelo despacho recorrido.

Ora, não existindo despacho prévio, realizada a penhora, o juiz não pode deixar de fiscalizar a legalidade e a proporcionalidade da penhora a autorizar, nos termos do disposto nos artigos 821.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 834.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Esses mesmos princípios, que presidem ao processo executivo, devem ser observados pelo agente de execução e, em caso de dúvida, submetidos à apreciação jurisdicional, nos termos do artigo 809.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Como podemos constatar da leitura do artigo 834.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a penhora deve efectuar-se pela ordem preferencial ali indicada e sem prejuízo dessa mesma penhora poder ser reforçada ou substituída nas situações previstas pelo n.º 3 desse mesmo preceito legal.(Ac. do T.R.L. de 18/06/2013, proferido no Proc. nº 2384/11.6TBPDL-C.L1-7, disponível para consulta in www.dgsi.pt)

Posto isto, a questão a decidir prende-se com a conformação dos poderes do juiz de execução, na aferição da legalidade de acto de penhora por ofensa do princípio da proporcionalidade, tendo em conta a dívida exequenda, ou seja, se é lícito ao juiz de execução suscitar oficiosamente a ilegalidade do acto de penhora por ofensa do princípio da proporcionalidade e sem prévia audição das partes.

A resposta a nosso ver é negativa. [...]

[...] não pode o juiz, salvo quando solicitado para tal, nomeadamente quando o executado deduza oposição à execução, mormente com fundamento na ilegalidade ou desproporcionalidade da penhora, conhecer oficiosamente de tal questão e, com preterição do princípio do contraditório, ínsito no artº 3 nº 3, do C.P.C.

Mais se dirá, que, nos presentes autos, foi esta penhora efectuada e registada em Março de 2013, sendo o único bem penhorado nos autos, sem que seja dado conhecimento da existência de outros bens penhoráveis, sem que até à data tenha sido conseguida a citação da executada, proprietária do bem e sem que, durante mais de três anos em que a exequente não viu ser ressarcido o seu crédito, tenha sido suscitada a ilegalidade de tal penhora.

Por outro lado, não estão apurados nem foram descritos quaisquer factos pelo juiz recorrido, dos quais decorresse a manifesta desproporcionalidade do bem, face ao valor exequendo, bem como a possível existência de outros bens, sendo certo que a anulação do acto de penhora e o cancelamento do registo do único bem conhecido como pertencente à executada, pode inviabilizar irremediavelmente a satisfação do direito da credora exequente (tendo em conta a possibilidade de realização de outros actos de penhora e respectivos registos) e sem lhe ter sido sequer concedida a faculdade de se pronunciar sobre esta questão.

O princípio da certeza e segurança jurídica é inerente ao processo executivo.

O exercício do contraditório, ainda que sobre questões que o tribunal considere de conhecimento oficioso, destina-se a evitar decisões surpresa e potencialmente gravosas e irreparáveis (como o é a anulação da penhora de bem imóvel e cancelamento do registo), destinando-se a permitir que a parte, se possa pronunciar e eventualmente demonstrar, o que, proferido o despacho recorrido, intenta demonstrar – que não existem nem são conhecidos outros bens e que o bem em causa não tem um valor desproporcional à dívida exequenda.

Não foi assim, tal questão submetida sequer, a apreciação jurisdicional.

Assim, sendo arguida a nulidade do despacho, por reporte ao disposto no artº 154 e artº 615 nº 1, al. d), do C.P.C., dispõe este último preceito legal que existe nulidade quando “d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

Trata-se estes vícios descritos nas diversas alíneas do nº1 deste preceito legal de vícios formais que respeitam à estrutura (alíneas b) e c)) e aos limites da sentença (alíneas d) e e)), cuja verificação afecta a sua validade."

3. [Comentário] O acórdão adopta, de modo implícito, uma orientação que tem sido várias vezes defendida neste Blog: a violação da proibição da decisão-surpresa implica a nulidade da decisão-supresa por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC). Este excesso decorre da circunstância de, sem a prévia audição das partes, o tribunal não poder conhecer da matéria que apreciou na decisão.

MTS