"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/03/2018

Jurisprudência (804)


Litisconsórcio necessário; litisconsórcio natural;
preterição; dever de prevenção


I. O sumário de RL 9/11/2017 (3831/15.3T8LSB.L1-2) é o seguinte:
 
1. – O litisconsórcio é necessário, segundo dispõe os nºs 1 e 2 do artigo 33º do C.P.C., quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

2. – Para uma concepção mais ampla, o efeito útil normal afere-se pela insusceptibilidade de contradição lógica, teórica ou técnica de julgados. Ao invés, para uma concepção mais restrita, o efeito útil afere-se pela insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados, em termos de obstar a decisões que não possam definir estavelmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão.

3. – O nº 2 do artigo 33º do nCPC (tal como sucedia com o art.º 28.º do aCPC) adopta pela noção mais restrita de efeito útil normal, já que o instituto do litisconsórcio necessário natural visa evitar decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, obter segurança e certeza na definição das situações jurídicas.

4. – Incumbe ao juiz, ao abrigo do disposto nos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 1, ambos do CPC, a prolação de despacho vinculado, convidando os autores ao suprimento de um pressuposto processual susceptível de sanação, como é a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados.

5. – O uso anormal do processo previsto do artigo 612º do CPC, quer na vertente de simulação processual, quer na vertente fraude processual, pressupõe o conluio entre as partes, com alegação de uma versão fáctica não correspondente à realidade, com o fim de enganar ou prejudicar terceiros.

6. – O julgador só deve absolver os réus da instância, por ser inadmissível a pronúncia de uma decisão de mérito, devido ao uso anormal do processo, caso seja evidente que as partes pretendem atingir uma finalidade diversa da função processual.
 
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Como é sabido, o requisito da legitimidade é entre nós, um pressuposto processual e exprime a posição pessoal do sujeito em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que aquele sujeito possa ocupar-se em juízo desse objecto do processo – v. neste sentido CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II, 153.

Também MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, 82, explica que a legitimidade não é uma qualidade pessoal das partes, «mas uma certa posição delas face à relação material que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual»

Com o requisito da legitimidade tem se em vista que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, apresentando-se, por isso, como refere CASTRO MENDES, como um reflexo do princípio da autonomia da vontade, já que é o titular do interesse o único que pode prossegui-lo, em juízo ou fora dele, salvo quando a lei disponha diversamente – v. ob. cit., II, 157.

Para que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, necessário se torna que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas que são titulares da relação jurídica em causa.

Nos termos do artigo 30º, nº 1 do C.P.C., autor e réu são partes legítimas quando têm interesse directo respectivamente, em demandar e em contradizer, interesse esse que se afere, de acordo com o nº 2 daquele mesmo preceito legal, pela utilidade derivada da procedência da acção ou pelo prejuízo que daí advém.

Mas, como o critério assente no interesse directo em demandar e em contradizer presta-se a dificuldades no âmbito da sua aplicação prática, a lei fixou, no n.º 3 do mencionado artigo 30.º do CPC, uma regra supletiva na determinação da legitimidade, aí se estatuindo que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo Autor”.

Têm, pois, legitimidade para a acção os sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida.

Ao apuramento da legitimidade interessa ter em consideração o pedido e a causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram essa causa de pedir, visto que legitimidade ad causam, como pressuposto processual que é, não se prende com o mérito do pedido formulado na acção com base em determinada causa de pedir, pois quando se decide da questão da legitimidade, não tem o julgador - nem deve fazer - um julgamento antecipado da questão substancial que lhe é submetida.

A questão que se coloca é a de saber se a acção aqui em causa, tal como foi configurada pelos autores pressupõe e exige uma situação listisconsorcial.

Com efeito, o litisconsórcio exige uma pluralidade de sujeitos e também, segundo uns, uma única relação jurídica material (artigo 32º do CPC) ou, segundo outros, uma unidade de pedidos (artigo 36º do CPC), neste ponto residindo o critério de distinção da figura jurídica da coligação e, sendo certo que a lei processual civil parece utilizar indistintamente, nos citados normativos, estes dois critérios.

O facto de a relação jurídica material controvertida afectar directamente os interesses de várias pessoas não determina, só por si, a necessidade de intervenção de todos os interessados.

A regra é a do litisconsórcio voluntário em que os sujeitos da relação podem intervir ou não em conjunto, tendo carácter excepcional o litisconsórcio necessário, dados os graves embaraços que para a parte representa a sua imposição. E, assim, apenas se exigirá a presença de todos os interessados nos casos em que a lei colocou acima dos interesses das partes e dos respectivos custos, a unidade da decisão - v. ANSELMO DE CASTRO, Dir. Proc. Civil Declaratório, II, 199.

O litisconsórcio é necessário, segundo dispõe o nº 1 do artigo 33º do C.P.C., quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica.

Decorre do nº 2 do artigo 33.º do Código de Processo Civil, que "é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal", esclarecendo o nº 3 do mesmo preceito que "a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado".

Prevê o artigo 33º, nº 2 do CPC o chamado litisconsórcio natural, ao expressar ser necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito útil normal.

O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando caso julgado material - ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, I, p. 111.

Esclarece ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., 203, que “a sentença produzirá o seu efeito normal quando defina uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda seja de molde a poder subsistir inalterada, não obstante ser ineficaz em confronto dos outros co-interessados, como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos”.

Refere ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 117, p. 383, que, a parte final do n.º 2 do art.º 28.º [actual artigo 33º com idêntica redacção] “admite claramente a possibilidade de, nas relações plurais, a acção ser instaurada apenas por algum ou alguns dos seus titulares, ou contra algum ou alguns deles. Essencial é que a decisão a proferir em tais circunstâncias possa regular definitivamente as pretensões formuladas pelas partes»

Para entender o sentido do conceito de «efeito útil normal» agora consagrada no artigo 33.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, existem duas orientações doutrinárias. Uma tese ampla, que afere o efeito útil normal pela insusceptibilidade de contradição lógica, teórica ou técnica de julgados.

E, ao invés, uma tese mais restrita, defendida por MANUEL DE ANDRADE, Scientia Juridica, VII, n.º 34, 186, que afere o efeito útil à insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados, em termos de obstar a decisões que não possam definir estavelmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão – cfr. também neste sentido ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., 204.

O nº 2 do artigo 33º do nCPC (tal como sucedia com o art.º 28.º do aCPC) parece adoptar pela noção mais restrita de efeito útil normal, já que o instituto do litisconsórcio necessário natural visa evitar decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, obter segurança e certeza na definição das situações jurídicas.

Como esclarece ANSELMO DE CASTRO, o facto de a lei se limitar a facultar, e não a impor, o litisconsórcio nas relações com pluralidade de interessados, como unidade de causa de pedir (artº 32º, nº 1, 1ª parte do CPC), leva a concluir que lhe é indiferente a coexistência de decisões divergentes e logicamente contraditórias e, portanto, que a situação a evitar pela obrigatoriedade do litisconsórcio é tão só a de decisões, além de divergentes, praticamente inconciliáveis – ob. cit., loc. cit.

Sempre que inexista a incompatibilidade dos efeitos produzidos – critério consagrado no nº 2 do artigo 33º do CPC – a decisão produz o seu efeito útil normal, sendo irrelevante a possibilidade de superveniente antagonismo ou conflito teórico de decisões resultantes de os interessados não vinculados ao caso julgado serem partes noutra acção com solução diversa.

Seguindo ainda ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., 208, há que compatibilizar entre o princípio da liberdade – cada um tem o direito de propor a acção, sem ser forçado a tal e contra quem quiser – com o princípio da utilidade – a demanda há-de ter utilidade prática, para se concluir que nas relações com pluralidade de sujeitos, se a lei nada disser, é sempre lícito accionar isoladamente ou demandar só um dos interessados, desde que a acção, pelo facto de ser proposta só por um ou apenas contra um, não perca a utilidade prática.

No caso vertente, invocam os autores que, em 1993, os réus transmitiram aos seus filhos, os ora autores, através de uma doação verbal, os três prédios identificados no petitório, com conhecimento e aceitação do outro irmão, que recebeu, por sua opção, uma compensação monetária, visando os autores com a presente acção, o reconhecimento do seu direito de propriedade, alegadamente adquirido por usucapião, sendo que os aludidos prédios se encontram inscritos no registo predial a favor de uma sociedade extinta, que tinha sede em Gibraltar, que terá adquirido os prédios, por força de uma venda efectuada pelos réus, invocando os autores a nulidade da mesma, por vício de simulação, já que visou obviar ao pagamento de obrigações fiscais decorrentes de futura sucessão e evitar a intervenção do irmão dos autores, como herdeiro desses imóveis, caso estes falecessem.

Acresce que, pela análise das fotocópias do registo predial juntas aos autos, se verifica que os prédios identificados em a) e c) do pedido principal estão registados em nome da identificada sociedade extinta, e sobre eles incidem hipoteca e penhoras posteriores à invocada posse dos autores.

Ademais, e como é sabido, sempre que uma determinada sociedade já se encontrar extinta antes da propositura da acção, são os sócios que têm de ser demandados directamente, na pessoa dos liquidatários, com vista a efectivar a sua responsabilidade pelos débitos sociais dentro dos limites consignados no artigo 163º, nº 1 do CSC, os quais respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha.

Sucede, porém, que face aos pedidos formulados pelos autores – pedido principal e pedido subsidiário - e à causa de pedir, tendo em consideração os complexos contornos da lide aqui em causa, é manifesto que a intervenção de todos os interessados, titulares de direitos com interesse em contradizer a pretensão dos autores – credor hipotecário, exequentes nas acções executivas pendentes com penhoras registadas e o próprio irmão dos autores - é exigível para que a decisão produza o seu efeito útil normal.

Comunga-se, portanto, do entendimento do Tribunal a quo, ao constatar a verificação de uma situação de litisconsórcio necessário."
 
[MTS]