"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/03/2018

Jurisprudência (802)

 
Deserção da instância;
dever de prevenção

 
1. O sumário de RG 12/10/2017 (329/13.8TJVNF.G1) é o seguinte:
 
I - Só caso a caso se pode saber se, em decorrência dos deveres de gestão e cooperação processual consagrados nos arts. 6.º e 7.º do CPC, o juiz deve proferir despacho interpelando as partes para impulsionarem os autos e advertindo-as para a eventualidade de a continuação da sua inércia integrar a deserção;
 
II - Quando tal dever seja de afirmar e o mesmo não tenha sido cumprido antes de decorrido o prazo da deserção, deve o juiz notificar as partes para exercício do contraditório antes de se pronunciar sobre a verificação daquela;
 
III - A violação do aludido dever integra uma nulidade que deve ser arguida nos termos do artigo 195º, nº 1 do Código de Processo Civil, não podendo ser interposto recurso da sentença com fundamento na omissão daquele despacho tido por devido;
 
IV - No caso da suspensão da instância por falecimento da parte, notificadas as partes dessa mesma suspensão, é ao interessado no prosseguimento do processo que cabe deduzir o incidente de habilitação, sendo a valoração da negligência da parte em promovê-lo independente de qualquer notificação das partes para impulsionar o processo; 
 
V - Não é eficaz e impeditivo da deserção ato processual que vise impulsionar o processo após o decurso de seis meses de inércia mas anterior ao decretamento da deserção;
 
VI - Ainda que o falecimento da parte tenha ocorrido antes da sentença, interposto recurso pela contraparte e posteriormente comprovado nos autos o dito falecimento, a deserção opera sobre o recurso e não sobre a instância.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"No CPC de 1961 a inércia das partes em promover os termos do processo, se negligente, dava lugar, passado mais de um ano, à interrupção da instância, originando esta, caso se mantivesse por dois anos, a deserção da instância (cfr. art.s 285º e 291º).
 
Para além de encurtado o prazo em que a instância, sem o necessário impulso processual das partes, se extingue por deserção, esta passou a depender de despacho judicial que, após constatar a inércia negligente da parte em promover os ulteriores termos do processo, a julgue verificada. 
 
A respeito da influência das alterações do Novo Código Processo Civil na deserção, escreve Paulo Ramos de Faria, in “O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa, Breve Roteiro Jurisprudencial”, in JULGAR on line, acessível em http://julgar.pt, também citado pelos Recorrentes:
 
“Sendo correto dizer-se que o novo Código veio responsabilizar mais o demandante pela sua inércia, não menos seguro é reconhecer-se que veio também, em maior grau, agravar os deveres do juiz na condução do processo.
 
Decorre com meridiana clareza da norma contida no n.º 1 do art. 6.º que o juiz deve gerir o processo – desde logo, promovendo o seu andamento célere – em colaboração com as partes (art. 7.º).
 
Não se concebe que a demanda possa estar parada durante largos meses, aguardando o impulso das partes, sem que esta circunstância processual seja claramente declarada nos autos. Quando o juiz gere o processo fazendo-o aguardar um ato da parte, por entender que se está perante um caso em que o impulso apenas a esta cabe, tem a obrigação de o proclamar nos autos, ficando os contendores notificados plenamente conscientes de que a demanda aguarda o seu impulso pelo prazo de deserção.”
 
Assim, conclui o referido autor: “Mesmo nos casos que aparentam ser mais evidentes, não representa qualquer esforço relevante para o juiz esclarecer os restantes sujeitos processuais sobre o estado dos autos, despachando no sentido de os informar que: a) o processo aguarda o impulso do demandante; b) a inércia deste determinará a extinção da instância (em data que indicar, ou decorridos seis meses sobre a data que indicar); c) não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art. 281.º, n.º 1); d) qualquer circunstância que impeça o autor de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal. A advertência deve surgir logo que o juiz constate que os autos carecem do impulso da parte.
 
Esta notificação deve ser dirigida a todas as partes, pois, ainda que não tenham o ónus de impulsionar os autos, podem elas ter o direito de o fazer. Tome-se o caso do processo especial de divisão de coisa comum, no qual será de admitir que o demandado promova os termos do processo – juntando uma certidão em falta, por exemplo –, evitando a deserção da instância.”
 
É também certo que em sintonia com esta posição, se entendeu, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-02-2015 (2254/10.5TBABF.L1-2), que deverá o julgador “por força do princípio da cooperação, reforçado no novo CPC, alertar as partes para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei, agora substancialmente mais curto”.
 
E também no Acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2016 se considerou:
 
“Atenta a gravidade dos efeitos da deserção da instância e visando o atual processo civil dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais (cf. Artigo 278º, nº3, do Código de Processo Civil), deve o juiz atuar de forma preventiva de molde a que o processo não sucumba por deserção, sem prejuízo do princípio da autorresponsabilidade das partes. Com efeito, nos termos do dever de gestão processual consagrado no Artigo 6º, nº1, do Código de Processo Civil, «Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (…)». De acordo com o princípio da cooperação, deve também o juiz cooperar com as partes, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio – Artigo 7º, nº1, do Código de Processo Civil.” [...]
 
[...] sabendo-se que por despacho 28-6-2016 foi julgada suspensa a instância até à notificação da decisão que viesse a considerar habilitado o sucessor daquele réu falecido, nos termos dos arts. 269º, nº 1, al. a), 270º e 276º, nº 1, al. a), do CPC, despacho esse que foi notificado às partes em 29-6-2016, forçoso é concluir que os ora Recorrentes sabiam e estavam informados pelo tribunal desde o início da suspensão que teria de ser instaurado incidente de habilitação, correndo, pois, desde então o prazo para a deserção, sendo, como se sublinha no acórdão da Relação de Évora de 10.03.2016, ao interessado no prosseguimento do processo que cabe deduzir o incidente de habilitação.

“E (como ali se diz), das duas uma: ou deduz esse incidente, porque nele tem interesse, ou não deduz, optando por manter o processo suspenso. A escolha é da parte mas acarta as respetivas consequências. Se a parte não quer impulsionar o processo, se a parte deixa decorrer o prazo da suspensão sem que deduza o incidente obrigatório para o prosseguimento do processo - que se pode chamar a isto senão negligência em impulsionar os autos?”

Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, se «a habilitação não tiver lugar, por não ser requerida ou ser julgada improcedente, observa-se o art.º 281-1 (deserção da instância)» (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 681).”"
 
3. [Comentário] A decisão tomada pela RG não levanta problemas. No caso concreto, não parece realmente impor-se que o tribunal exerça o seu dever de prevenção, dado que as partes tinham sido notificadas da suspensão da instância por falecimento de uma das partes (cf. art. 269.º, n.º 1, al. a), CPC) e, por isso, o não cumprimento do ónus de promover a habilitação dos sucessores tem de ser considerado negligente. Isto não quer dizer que os tribunais não possam fazer uso desse dever de prevenção, mesmo em casos como o sub iudice.
 
O que não pode aceitar-se é generalidade da afirmação constante do n.º III do sumário: "III - A violação do aludido dever [de prevenção] integra uma nulidade que deve ser arguida nos termos do artigo 195º, nº 1 do Código de Processo Civil, não podendo ser interposto recurso da sentença com fundamento na omissão daquele despacho tido por devido". Pode suceder que a omissão do dever de cooperação do tribunal só se torne patente em função da decisão desse mesmo tribunal, como acontece quando, por exemplo, o tribunal considera improcedente a acção pela falta da alegação de um facto que a parte poderia ter alegado se para tal tivesse sido convidada (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, CPC). Neste caso, é a própria decisão que é nula por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).
 
MTS