"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/03/2018

Jurisprudência (812)



Caso julgado;
limites subjectivos


1. O sumário de RP 27/11/2017 (909/15.7T8AMT-A.P1) é o seguinte:

I - A aferição da eficácia reflexa do caso julgado de sentença proferida em ação anterior, relativamente a quem não interveio nessa ação, implica que se questione se o direito de terceiro é suscetível de ser prejudicado na sua consistência jurídica ou no conteúdo pela decisão proferida na referida ação.

II - Em homenagem ao princípio do contraditório, a decisão judicial só poderá ser oponível a terceiro juridicamente indiferente, ou seja, não titular de quaisquer direitos com ela incompatíveis.

III - Tendo sido proferida sentença em ação anterior, intentada pelo promitente-comprador contra a promitente-vendedora que veio a ser declarada insolvente, na qual o tribunal considerou provada a
traditio dos bens prometidos vender, com fundamento na omissão de contestação da devedora, concluindo pela condenação desta no reconhecimento do crédito correspondente ao sinal em dobro e do direito de retenção, tal decisão não pode ser oposta ao credor hipotecário que não interveio na ação e que tinha a sua garantia registada em data anterior.

IV - De acordo com a tese que prevaleceu no AUJ n.º 4/2014, exige-se para a validade e oponibilidade do direito de retenção do promitente-comprador ao credor hipotecário: i) que o promitente-adquirente seja “consumidor”; ii) que tenha ocorrido a
traditio da coisa prometida vender.

V - O critério normativo de “consumidor” é o que emerge do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31.07, recaindo sobre o credor que invoca o direito de retenção, a prova da respetiva factualidade integradora.

VI - O promitente-comprador que obteve a
traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste, sendo, na perspetiva enunciada, mero detentor precário.

VII - Recai também sobre o credor que invoca o direito de retenção, a prova da factualidade concreta, integradora da
traditio.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"No que concerne à alegada vinculação por parte da credora impugnante, decorrente do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 73/15.1T8PNFJ, não poderá vincular a impugnante, na medida em que esta não foi interveniente na referida ação, não podendo, em consequência, ser considerada “terceiro juridicamente indiferente”.

Façamos uma brevíssima abordagem à problemática da eficácia relativa e reflexa do caso julgado.

O Professor Antunes Varela [Manual de Processo Civil, Antunes Varela e outros, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, pág. 724 e seguintes] refere a necessidade de explicitação da “regra milenária” segundo a qual o caso julgado só produz efeitos entre as partes, baseada no facto de a exceção do caso julgado pressupor a repetição da causa e a causa só se repetir quando haja identidade de sujeitos nas duas ações.

Após referir a teoria da eficácia reflexa do caso julgado em face de terceiros, para a refutar em parte, escreve o insigne professor (ob. cit., p. 726): “Há, em primeiro lugar, as pessoas a quem podemos chamar terceiros juridicamente indiferentes. São as pessoas a quem a sentença não causa prejuízo jurídico, por não bolir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afectar a sua consistência prática ou económica. […] Nestes casos, em que a decisão contida na sentença não causa prejuízo jurídico ao direito de terceiro, nenhuma razão há para recusar a invocação do caso julgado perante esse terceiro, visto a regra da eficácia relativa do caso ter por fim evitar que terceiros sejam prejudicados, na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito, sem eles terem tido a possibilidade de se defender e esse risco não ocorrer em tal tipo de situações. Pode, por conseguinte, dizer-se que, em relação aos terceiros juridicamente indiferentes, a sentença impõe-se-lhes”.

Em comentário ao acórdão da Relação de Coimbra, de 4.04.2017 (Processo n.º 210/08.2TBLMG-B.C1), escreveu o Professor Miguel Teixeira de Sousa (https://blogippc.blogspot.pt/search?q=caso+julgado): «Em substituição da pouco precisa distinção entre terceiros juridicamente indiferentes e terceiros juridicamente interessados há um critério muito mais seguro para verificar se um terceiro - isto é, se alguém que não foi parte num processo - fica abrangido pelo caso julgado da decisão nele proferida. O critério é o seguinte: ficam abrangidos pelo caso julgado todos aqueles que não sejam titulares, de acordo com o direito positivo, de nenhum direito incompatível com a decisão transitada. Se assim suceder, é claro que, qualquer que seja a repercussão da decisão transitada na sua esfera jurídica, o terceiro fica vinculado ao caso julgado».

Seguindo o critério proposto pelo Professor Antunes Varela, haverá que averiguar se na situação em debate neste recurso, o direito da credora impugnante é suscetível de ser prejudicado, “na sua consistência jurídica ou no conteúdo”, pela decisão proferida numa ação em que não interveio.

A resposta não pode deixar de ser positiva.

Com efeito, ao declarar o direito de retenção, a decisão judicial em causa, afeta claramente a posição do credor hipotecário, que vê o seu crédito relegado para segundo plano, face à prevalência do direito reconhecido aos ora recorrentes.

A conclusão a que aderimos constitui uma homenagem ao princípio do contraditório: ninguém pode ser prejudicado no seu direito, sem que lhe seja dada a possibilidade de o defender.

Em conclusão, a sentença proferida na ação n.º 73/15.1T8PNFJ não abrange a credora impugnante, quanto aos efeitos do seu caso julgado.

No mesmo sentido vai a posição expressa por José Lebre de Freitas, num trabalho publicado na Revista da Ordem dos Advogados – “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença” [ROA, Ano 66 - II, 2006, http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1&idsc=50879&ida=50920]: «Não sendo contra ele invocável a sentença que declare a existência de direito de retenção sobre a coisa hipotecada em acção movida pelo respectivo titular contra o promitente vendedor ou o dono de obra, não carece o credor hipotecário de dela recorrer extraordinariamente, nem de mover acção declarativa própria (...). Todas as questões contra a verificação do direito de retenção podem ser levantadas na acção de verificação e graduação de créditos, seja ela apensa à execução movida pelo titular do direito de retenção, em que o credor hipotecário se apresente como credor reclamante, seja apensa à sua própria execução, em que reclame o titular do direito de retenção, seja ainda apensa à execução de terceiro credor, em que quer o credor hipotecário quer o titular do direito de retenção reclamem (...). O credor hipotecário pode assim pôr directamente em causa o direito de retenção nos termos gerais, isto é, mediante impugnação dos factos alegados pelo empreiteiro, na petição da acção executiva por ele proposta ou na petição da acção de verificação e graduação de créditos, em que reclame, ou mediante sustentação da respectiva inconcludência; e, constituindo a existência do crédito garantido pressuposto do direito de retenção, ela mesma pode ser impugnada pelo credor hipotecário, embora com as limitações adiante referidas». 
 
3. [Comentário] Qualquer construção teórica, para ter qualquer mérito, tem de "sobreviver" ao teste da realidade. O critério transcrito no acórdão justifica a solução que neste se adoptou: dado que a credora impugnante é titular de um direito incompatível com o direito de retenção dos credores reclamantes, essa mesma credora não pode ser abrangida pelo caso julgado da decisão que reconheceu este direito de retenção.
 
Pode ainda acrescentar-se que o que não é aceitável é analisar os limites subjectivos do caso julgado pela perspectiva de que ninguém pode ser prejudicado por uma decisão proferida numa acção em que não foi parte. Esta afirmação é contrariada todos os dias nos tribunais. Como é claro, qualquer crédito que é reconhecido numa acção prejudica os demais credores do mesmo devedor, dado que diminui as garantias patrimoniais destes últimos; todavia, isto não constitui justificação para negar que estes credores estejam vinculados a reconhecer, tal como o devedor demandado, aquele crédito.
 
MTS