"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/03/2018

Jurisprudência (823)


Título executivo; requisitos;
obrigações futuras


1. O sumário de RP 14/12/2017 (1401/15.5T8AGD.P1) é o seguinte:

I - Os efeitos do reconhecimento de créditos no âmbito de um processo de insolvência circunscrevem-se a esse processo. O efeito declarativo da correspondente decisão, designadamente o referente ao valor do crédito ali reconhecido, não pode impor-se a terceiros a esse processo, designadamente a quem tenha sido garante da insolvente e seja alheio ao processo de insolvência. 
 
II - Em relação a créditos anteriores à data da sua celebração, a escritura de constituição de uma hipoteca tendente a garantir a sua satisfação só poderia constituir título executivo desde que, simultaneamente, constituísse um documento recognitivo desses créditos, não podendo aplicar-se-lhes o regime do art. 50º do CPC anterior, correspondente ao art. 707º do actual CPC, que só vale para obrigações a cumprir ou a constituir ulteriormente.
 
III – Em relação a créditos emergentes de operações ulteriores à escritura de constituição de hipoteca, no respeitante a créditos emergentes do fornecimento de bens ou prestação de serviços, esta poderá constituir título executivo desde que complementada com documentos comprovativos de ter ocorrido um efectivo fornecimento de bens ou uma efectiva prestação de serviços; quanto a eventuais operações financeiras, para que a escritura pudesse constituir título executivo, de outro documento haveria de resultar a demonstração de que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
 
IV – A forma desses outros documentos - comprovativos da realização da prestação ou da constituição de obrigações - tem de obedecer às condições previstas na própria escritura, ou têm eles de constituir de per si, títulos executivos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
"[...] o objecto do recurso reduz-se a apurar se a escritura de constituição de hipoteca junta com o requerimento executivo constitui título executivo que possa fundar a execução.

*
Para a apreciação das questões descritas, é útil ter presente os seguintes elementos, que resultam dos próprios autos:

1 – As exequentes intentaram a presente execução pretendendo a cobrança dos seguintes créditos: C..., S.A., um total de €7.585,13, a título de capital, a que acrescem juros de mora; C..., S.A., um total de €437.330,92, sendo €372.787,53 a título de capital e o restante de juros. [...]

3 – No requerimento executivo, alegaram que os executados constituíram, através de escritura de 16/11/2011, em seu favor, hipoteca voluntária unilateral sobre diversos imóveis “para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presente ou futuras, da sociedade F..., LDA, emergentes do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou de quaisquer operações de financiamento ou afins, até ao montante máximo global de capital de €300.000,00 (trezentos mil euros) e acessórios” e que, em 13.06.2013, a referida sociedade F...,LDA, foi declarada insolvente, tendo sido liquidada.

4 – Alegaram que reclamaram os seus créditos nessa insolvência, que lhes foram reconhecidos pelos valores referidos, mas que nada receberam.

5 – Como título executivo, juntaram cópia da escritura de constituição da referida hipoteca, onde a executada E... e marido declararam constituir hipoteca voluntária unilateral sobre diversos imóveis ali descritos, de sua pertença, “para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presentes ou futuras da sua concessionária, "F..., LDA" (…) [...]

7 – Perante tal requerimento, o tribunal proferiu o seguinte despacho: “Antes do mais, e compulsado o requerimento executivo e da exposição sucinta dos factos, apenas resulta que o exequente juntou o comprovativo de ter garantia real sobre os executados, relativamente a créditos contraídos consigo.

No entanto, não juntou qualquer título executivo nem alegou quaisquer factos de onde provenha o seu crédito, sendo certo que da escritura não resulta qualquer confissão de dívida, mas, como dissemos, tão só que o crédito exequendo beneficia de garantia real.

Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 726/4 do Código de Processo Civil, convido o exequente a juntar aos autos o título executivo de onde resulte o seu crédito e a completar o requerimento executivo, quanto aos factos, alegando de onde resulta o seu crédito, data de incumprimento e valores em dívida, no prazo de 10 dias, sob pena de vir a ser indeferido o requerimento executivo.”

8 – Em resposta a tal interpelação, as exequentes ofereceram articulado onde afirmaram que o valor dos créditos exequendos é o que lhes foi reconhecido no processo de insolvência da "F..., LDA”, conforme as certidões extraídas desse processo; e, bem assim, que a documentação que agora apresentavam era a mesma que haviam apresentado para instruir as reclamações de créditos naquele processo, onde nenhuma impugnação havia sido oposta. [...]

10 – Foi, subsequentemente proferida a decisão recorrida, que concluiu não terem sido juntos que aos autos “quaisquer documentos que impliquem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação por parte dos ora executados, D... e E..., nem anterior nem posterior a 1 de setembro de 2013”, que os documentos juntos não têm “a força de título executivos” e que “as certidões juntas aos autos referentes ao reconhecimento dos créditos reclamados pelas ora exequentes junto do processo de insolvência da sociedade F..., Lda apenas certificam o reconhecimento do crédito das mesmas perante aquela sociedade e não perante os ora executados, não constituindo, assim, título executivo válido contra os ora executados.” Por isso, invocando o disposto no art. 726º, nº 2, al a) do CPC, indeferiu liminarmente o requerimento executivo.

*
Como anteriormente se referiu, a questão a decidir traduz-se em aferir se a escritura de constituição de hipoteca junta pelas exequentes, associada ao reconhecimento dos créditos exequendos no processo de insolvência da "F..., LDA”, bem como aos documentos complementarmente juntos [...] pode asssumir eficácia executiva e fundar, nesta causa, a cobrança coerciva dos valores referidos, sendo certo que tais créditos são precisamente do género daqueles que tal hipoteca se destinava a garantir.

Desta análise não pode dissociar-se o teor da cláusula constante da escritura e referida supra, no ponto 5º, nos termos da qual as partes acordaram que “os documentos que representam os créditos da B..., S.A., da L..., S.A., e da M..., S.A. e, bem assim, toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca, constituirão títulos ou documentos respeitantes a esta escritura, dela fazendo parte integrante para efeitos de execução, sendo caso disso.”

O que acaba de referir-se comporta duas conclusões que, pela sua simplicidade, desde já se enunciam.

Em primeiro lugar, a escritura em questão, de per si, não pode assumir-se como título executivo. Nela não está descrita qualquer obrigação a favor das exequentes, que, mesmo através de um ulterior processo de liquidação, pudesse ser concretizada e feita cumprir coercivamente. [...]

Em segundo lugar, ao caso é indiferente a circunstância de o volume de créditos aqui invocados pelas exequentes lhes ter sido reconhecido no processo de insolvência da "F..., LDA”. Os efeitos desse reconhecimento circunscrevem-se a esse processo, ao qual as aqui executadas foram alheias. O reconhecimento de tais créditos destina-se a, ali, através da execução universal do património da insolvente, se satisfazerem, na medida do possível, os créditos reconhecidos. Mas o efeito declarativo referente, designadamente, ao valor do crédito ali reconhecido não pode impor-se a terceiros a esse processo, designadamente a quem tenha sido garante da insolvente e seja alheio ao processo de insolvência. A isso obsta o regime resultante dos arts. 619º, 580º e 581º do CPC. [...]

Consequentemente, deverá ser em função de uma análise conjugada entre o teor da referida escritura e o dos documentos oferecidos pelas exequentes que haverá de se apurar da suficiência desse complexo documental para servir de título executivo.

Regendo sobre essa matéria, dispunha o art. 50º do CPC então vigente “Os documentos exarados ou autenticados, por notário (…), em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.” Esta norma foi replicada no novo CPC, sob o art. 707º. [...]

No caso em apreço, podemos verificar, por um lado, que parte dos créditos cuja satisfação é pretendida por via desta execução, eram anteriores à data da constituição da hipoteca; e, por outro lado, que, estando em causa, quanto aos créditos ulteriores à data dessa escritura, aparentes negócios de fornecimento de automóveis, os documentos complementares hão-de demonstrar a realização de prestações, pelas exequentes, em cumprimento do negócio declarado pelas partes.

Em relação ao valor dos créditos anteriores, a escritura de constituição de hipoteca não pode servir de título executivo, mesmo complementada com os correspondentes documentos de suporte.

Com efeito, em relação a créditos anteriores à data da sua celebração, a escritura de constituição de hipoteca só poderia constituir título executivo desde que, simultaneamente, constituísse um documento recognitivo das dívidas. [...]

No caso sub judice, a escritura dada à execução não compreende o reconhecimento de qualquer obrigação, que do seu próprio teor, se possa extrair. [...]

Ao que acresce que os correspondentes documentos de suporte não constituem, nem títulos de crédito, nem documentos de confissão de dívida que pudessem constituir títulos executivos para cobrança dos valores a que se referem.

Consequentemente, a escritura em questão, mesmo complementada por tais documentos, não pode constituir título executivo para pagamento desses créditos anteriores à data da sua elaboração."


[MTS]