Usufruto; penhora;
terceiros para efeitos de registo*
1. O sumário de RP 26/9/2019 (6062/12.0YYPRT-A.P1) é o seguinte:
I - O direito de usufruto é passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito de execução movida contra o usufrutuário.
II - O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, não tendo por isso natureza constitutiva.
III - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
IV - O titular de um direito real de garantia (sic) registado sobre imóvel anteriormente vendido ao recorrido, mas sem o subsequente registo, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum.
V - No caso dos autos, o identificado acto voluntário dos executados de renúncia gratuita ao usufruto de que eram titulares sobre imóvel e que não foi registado antes da penhora, deve ser considerado ineficaz relativamente a esta, não podendo por isso ser por aqueles invocado contra o exequente.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Cumpre [...] apreciar e decidir a questão que tem a ver com a procedência da presente oposição à penhora.
"Cumpre [...] apreciar e decidir a questão que tem a ver com a procedência da presente oposição à penhora.
Como ficou já visto nas suas alegações de recurso os opoentes ora apelantes sustentam a tese da inadmissibilidade da penhora sobre o direito de usufruto, expondo os seus argumentos (de facto e de direito) nas conclusões 15ª a 33ª das suas alegações, cujo conteúdo aqui voltamos a transcrever para uma melhor entendimento das razões invocadas:
“20. Estabelece o artigo 4.º, n.º 1 do Código de Registo Predial que, os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros.
21. Apesar da renúncia do usufruto apenas se ter efectivado em 2017, a verdade é que o aludido direito já não produzia os seus efeitos desde Junho de 2015, ou seja, dois anos antes do respectivo registo.
22. Tendo por referência a regra base de que o efeito do registo é de mera publicidade, dúvidas não restam que, na realidade, o direito de usufruto sobre o prédio a que vem sendo feita alusão já estava extinto desde Junho de 2015 e não apenas em 2017. [...]
Para responder a tal questão chamaremos desde já à colação o acórdão do STJ de 18.12.2003, processo 03B2518, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino e dado a conhecer em www.dgsi.pt.
Assim:
“Em matéria de registo, vigora o princípio prior tempore potior jure (princípio da prioridade), com assento no art.6º/1: "o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes".
Os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, mesmo que não registados (art.4º/1). Já no que tange à oponibilidade do registo predial a terceiros prescreve o art.5º/1 que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo". Significa isto que, inter partes, os factos sujeitos a registo são plenamente eficazes, mesmo que não registados; para com terceiros interessados, a sua eficácia depende do registo.
Importa, todavia, ter presente que o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.1º), não tendo natureza constitutiva: entre nós, os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos.
O conceito de terceiros deve reflectir, por isso, essa função declarativa do registo e ser entendido à luz das finalidades publicitárias deste.
Após longa e diversificada controvérsia doutrinal e jurisprudencial, o conceito de terceiros ganhou roupagem legal com o já acima aludido Dec-lei 533/99, de 11 de Dezembro, que aditou ao art.5º do Código o n.º 4, do teor seguinte:
Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Esta formulação legal é tributária de uma das posições doutrinais que, acerca do conceito, se vinham digladiando desde há muito. O próprio legislador não deixou de o assinalar, escrevendo, no preâmbulo daquele diploma:
Aproveita-se, tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no art.5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens.
Parece, assim, irrecusável a consideração deste n.º 4 como uma norma interpretativa, o que postula a sua integração na lei interpretada, nos termos do n.º 1 do art.13º do CC, e a sua aplicação ao caso em apreço, não obstante a dedução dos embargos (04.08.99) ter precedido a entrada em vigor do Dec-lei 533/99 (11.01.2000). Neste sentido se tem, aliás, pronunciado este Supremo Tribunal (Sic, nos acórdãos de 30.04.2003, na revista 996/03, da 7ª Sec., e de 26.05.2003, na revista 1416/03, da 6ª Sec.).
Do indicado normativo decorre que o ora recorrente, titular de um direito real de garantia registado sobre imóvel anteriormente vendido ao recorrido, mas sem o subsequente registo, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum.
O mesmo entendimento fora adoptado pelo acórdão deste Supremo Tribunal n.º 3/99, de 18.05.99, (uniformizador de jurisprudência) que, revendo a doutrina fixada pelo seu homólogo 15/97, de 20.05.97, retomou, na matéria, a posição de Manuel de Andrade (O citado acórdão 3/99 fixou a regra seguinte: Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa), consagrando a orientação segundo a qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupunha que ambos os direitos tivessem advindo de um mesmo transmitente comum, excluindo "os casos em que o direito em conflito com o direito em conflito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial" (Cf. Ac. de 07.07.99, deste Supremo Tribunal, na Col. Jur. (Acs. do STJ) VII, 2, 164.)”.
Regressando ao caso concreto não se pode questionar que o direito de usufruto é passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito da execução movida contra o usufrutuário (cf. a jurisprudência e a doutrina citadas na decisão recorrida e que aqui nos dispensamos de voltar a reproduzir).
Tudo isto porque o direito de usufruto não se pode confundir com o direito de uso e habitação, atenta a sua natureza e o regime jurídico a que deve estar sujeito, não se lhe sendo aplicável a regra da impenhorabilidade prevista no art.º 1488.º do Código Civil.
A ser assim valem pois os argumentos vertidos na decisão recorrida e que podem ser resumidos da seguinte forma:
Resulta dos elementos constantes dos autos de execução que na altura em que foi realizada a penhora que agora se questiona e perante o que constava do registo predial, o direito de usufruto dos executados sobre o imóvel em apreço podia ser penhorado nos termos e que teve lugar, inexistindo então e agora qualquer impedimento à sua penhorabilidade (cf., entre outros, os artigos 735º, 736º, 751º e 783º, todos do CPC e o artigo 1439º e seguintes do Cód. Civil).
Por outro lado, atentos os factos provados e a tese jurisprudencial antes exposta, impõe-se considerar que o identificado acto voluntário dos aqui executados/oponentes de renúncia gratuita ao usufruto de que eram titulares sobre imóvel e que não foi registado antes da penhora que aqui se discute, deveria ser sempre considerado ineficaz, não podendo ser por estes invocado contra o aqui exequente.
Ou seja, tal renúncia ao usufruto não pode ser oponível à penhora previamente registada a favor do exequente, D… S.A. (cf. os artigos 2º, n.º 1, alíneas a) e x), 5º, n.ºs 1 e 4, e 6º, todos do Código do Registo Predial e artigos 819º, 822º, n.º 1, e 824º, n.ºs 2 e 3, todos do Código Civil).
Tem pois razão o Tribunal “a quo” quando com estes fundamentos considerou não verificados no caso, os pressupostos previstos no art.º 784º, nº 1 do CPC e assim sendo julgou improcedente a presente oposição à penhora."
*3. [Comentário] a) A RP decidiu com razoabilidade, bom senso e justiça, mas totalmente contra legem (ou melhor, contra malam legem). Importa justificar esta afirmação.
A RP considerou -- bem, sob o ponto de vista de uma sã razão jurídica -- que uma renúncia não registada ao usufruto pelos executados não pode ser oposta ao exequente com penhora registada sobre esse mesmo usufruto. Do acórdão parece depreender-se que a RP entendeu que a oposição à penhora estabelecida no art. 784.º CPC não era o meio adequado para o executado alegar a renúncia ao usufruto, quiçá com o argumento de que este preceito se refere a bens pertencentes ao executado e, no caso sub iudice, o executado pretendia demonstrar que o direito registado já não lhe pertencia. Sob o ponto de vista legal, a RP procurou fundamentar esta sua posição no conceito restrito de terceiros que consta do art. 5.º, n.º 4, CRegP. É aqui que reside o equívoco.
Em princípio, dever-se-ia esperar que um facto registado seria oponível a qualquer pessoa que não tivesse um registo incompatível anterior. Mas, estranhamente, no ordenamento jurídico português não é assim: seguindo uma chamada concepção restrita de terceiros para efeitos de registo, o art. 5.º, n.º 4, CRegP estabelece que um facto registado só (de acordo com a tal concepção restrita) é oponível a um outro adquirente de um autor comum.
Na verdade, a concepção restrita de terceiros para efeitos de registo obriga a distinguir nos terceiros (isto é, no universo daqueles que não são titulares do registo) entre os terceiros aos quais o registo é oponível (que são apenas aqueles que tenham adquirido o direito registado de um mesmo transmitente ou cedente) e os terceiros aos quais o registo não é oponível (que são todos os outros). O carácter restritivo da referida concepção reside nisto mesmo: em restringir, através do referido critério, os terceiros (ou seja, os não titulares do registo) aos quais o registo é oponível.
b) As consequências desta concepção restrita são, no âmbito processual, verdadeiramente "catastróficas". É com base nela que, por exemplo, um terceiro que tem um direito não registado sobre o bem penhorado pode embargar de terceiro (e, naturalmente, obter a procedência dos embargos, mesmo que invoque uma aquisição derivada). Isto porque, como o exequente e o terceiro não são adquirentes do mesmo bem de um autor comum, a penhora obtida pelo exequente não é oponível ao terceiro.
Tudo isto apesar de o direito não registado do terceiro ser um daqueles que se extingue com a venda executiva (art. 824.º, n.º 2, CC). Isto conduz à curiosa situação de que o direito não registado que o legislador aceita que seja oponível à execução através de embargos de terceiro é o mesmo direito que o legislador estabelece que, por não ser oponível à execução, se extingue com venda executiva.
O caso em análise mostra uma outra das indesejáveis consequências da referida concepção restrita de terceiros para efeitos de registo: segundo esta, a penhora do exequente sobre o usufruto não pode ser oposta ao executado renunciante (!), porque o exequente e o executado não são, entre si, adquirentes de um autor comum. Logo, no caso sub iudice, o que se imporia extrair do regime legal teria sido a conclusão de que a renúncia ao usufruto não registada seria oponível ao exequente penhorante (!).
c) Já acima se chamou a atenção para uma das incongruências sistemáticas do disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP. Cabe agora fazê-lo sobre uma outra incoerência: o art. 784.º CPC só admite a oposição à penhora pelo executado quanto a bens pertencentes a esta parte; este regime é, em teoria, completamente compreensível: se -- como se esperaria que acontecesse -- a penhora é oponível ao executado, então compreende-se que esta parte só possa opor-se à penhora quanto a bens registados em seu nome; em contrapartida, cabe a terceiros a oposição à penhora (através de embargos ou da acção de reivindicação) quanto a bens que, por se se encontrarem registados em seu nome, foram indevidamente penhorados.
Só que o regime consagrado no art. 5.º, n.º 4, CRegP "baralha" esta coerência. Ao admitir-se que a penhora não seja oponível ao executado (!), cria-se a possibilidade de esta parte alegar um direito (ou a inexistência de um direito) que não consta do registo. Se esta possibilidade decorre do regime substantivo (neste caso, do regime do registo), então tem de haver um meio processual para que o executado possa exercer essa possibilidade.
Nesta base, não se pode acompanhar a orientação da RP de que a oposição à penhora regulada no art. 784.º CPC não é o meio adequado para os executados invocarem a renúncia ao usufruto.
d) Atento o acima referido, pode perguntar-se: os resultados processuais que decorrem do estabelecido no art. 5.º, n.º 4, CRegP são razoáveis? A resposta só pode ser: não!, são totalmente absurdos.
Enfim, cabe perguntar: para quando o abandono da concepção restrita de terceiros para efeitos de registo e a revogação do incompreensível art. 5.º, n.º 4, CRegP?
Num outro plano, cabe ainda questionar: é aceitável que, na era da informação e da Internet, os interessados numa execução (credor exequente, devedor executado e credores reclamantes) possam ser surpreendidos com a invocação de um direito não registado e que não tinham nem a possibilidade, nem a obrigação de conhecer?
MTS