"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/03/2020

Jurisprudência 2019 (197)


Herança jacente; representação;
princípio da dualidade das partes*
 

1. O sumário de RP 26/9/2019 (487/17.2T8STS-A.P1) é o seguinte:

I - A acção de divisão de coisa comum tem de reunir entre o lado activo e passivo da lide a totalidade dos consortes.


II - Se o único consorte não demandante faleceu e a respectiva herança permanece por partilhar a acção deve ser instaurada contra a herança do consorte.


III - Se os demandantes são em simultâneo os herdeiros da herança demandada, havendo apenas um herdeiro que não é demandante, a herança será representada apenas por este herdeiro, pois a mesma pessoa/entidade não pode ocupar em simultâneo, os lados activo e passivo de uma acção judicial.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na decisão recorrida entendeu-se que a ré não é parte legítima porque «não é comproprietária dos prédios cuja divisão se pede (mas) apenas herdeira de um dos comproprietários, entretanto falecido, não sendo sequer a única».

Os recorrentes objectam que no artigo 14 do requerimento inicial foi alegado que a ré «intervém nesta acção [está em falta mas subentende-se: na qualidade de] representante legal da herança do falecido N…, na qual é cabeça-de-casal» e que por isso cabendo-lhe administração da herança onde se integra um dos quinhões no direito de propriedade sobre as coisas cuja divisão se requer, compete-lhe representar a herança, neste processo.

Efectivamente, lendo a petição inicial no seu todo e não apenas o respectivo cabeçalho (onde essa especificação devia ter sido feita pelos autores), é mister concluir que a ré foi demandada não a título pessoal ou em nome próprio, mas na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de N… e em representação desta.
 
Por outras palavras, quem tem efectivamente a qualidade de ré na acção não é M…, mas sim a herança aberta por óbito de N…, representada pela cabeça de casal M…. Por conseguinte, a afirmação de que a ré não tem legitimidade passiva para a acção porque não é comproprietária está, salvo o devido respeito, errada. Da herança aberta por óbito de N… faz parte a quinhão de 35/56 avos na propriedade dos imóveis comuns cuja divisão é reclamada pelos autores, pelo que a herança tem legitimidade inequívoca por ser titular da relação material controvertida (comproprietária).
 
Por conseguinte, a questão que se podia colocar não era a da legitimidade da ré (herança), mas sim a da representação da ré, isto é, não era se na acção devia estar a herança, mas antes se a herança podia ser representada na acção apenas pela respectiva cabeça-de-casal ou devia antes ser representada por todos os herdeiros.
 
A questão era pois se o direito de intervir na divisão de uma coisa comum na qual a herança é titular de um quinhão pode ser exercido apenas pelo cabeça-de-casal (por estar compreendido no âmbito dos respectivos poderes representativos da herança) ou tem de ser exercido em conjunto por todos os herdeiros (por exceder o âmbito dos poderes representativos do cabeça de casal). No primeiro caso a herança estaria bem representada na acção; no segundo, tal não sucederia e haveria que proceder à regularização da representação da herança, fazendo intervir na acção os restantes herdeiros (artigo 27.º do Código de Processo Civil).
 
Sucede, todavia, que no caso concreto existe um pormenor que prejudica essa discussão.
 
Nos termos do artigo 925.º do Código de Processo Civil «todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas».
 
Este preceito define de forma clara a legitimidade das partes na acção de divisão de coisa comum.
 
A acção deve ser instaurada pelo consorte (ou consortes) que não pretenda mais manter-se na indivisão. Ele pode instaurar a acção sozinho pois basta a sua vontade – unilateral e mesmo que oposta à vontade dos restantes consortes – de pôr termo à indivisão para impor aos demais consortes a obrigação de procederem à divisão (trata-se, portanto, de um direito potestativo).
 
Por sua vez, do lado passivo da lide têm de estar todos os restantes consortes não demandantes, o que é afinal de contas uma evidência já que se na acção faltasse um consorte a respectiva sentença nunca poderia produzir efeito útil.
 
Em suma, no conjunto, entre o lado activo e o lado passivo da lide têm de estar na acção todos os consortes. O que significa também que os que estiverem do lado activo (porque desejam a divisão e decidiram tomar a iniciativa de a pedir) não têm de estar no lado passivo. Logo, se a acção for instaurada por todos os consortes menos um, a acção apenas tem de ser instaurada contra o … consorte em falta.
 
Ora no caso sucede que os consortes são todos demandantes, com excepção apenas do consorte N… cuja morte determinou a sua substituição pela respectiva herança jacente. Sucede ainda que os herdeiros de N… são os seus descendentes e a viúva M…. Os seus descendentes encontram-se todos do lado activo da lide, apenas restando fora dessa posição processual a outra herdeira: a viúva.
 
Logo parece que a única pessoa a poder ser demandada, a ocupar a posição da herança demandada, só pode ser mesmo a viúva M…, pela singela razão de que uma pessoa não pode estar em simultâneo do lado activo e passivo da lide e não faria qualquer sentido fazer intervir em representação da herança os respectivo herdeiros que afinal … são autores e por isso mesmo têm interesse em demandar, não em contradizer!
 
Refira-se, não obstante, que estamos apenas a falar em legitimidade processual, isto é na chamada de uma pessoa a ocupar uma posição processual numa acção judicial para estabelecer o contraditório que a acção pressupõe. Não estamos a falar, nem confundimos, de legitimidade substantiva para dispor do direito de operar a divisão do quinhão da herança na coisa comum. Esta há-de aferir-se em conformidade com as regras de direito material próprias da comunhão hereditária, para o que poderá ser necessário consultar a vontade conjunta ou maioritária dos herdeiros, independentemente da posição que eles ocupem na acção de divisão de coisa comum.
 
Em conclusão: no caso, uma vez que a ré demandada é a herança do único consorte não demandante e que os herdeiros deste são, para além dos demandantes, somente a viúva demandada em representação da herança, não apenas não existe ilegitimidade passiva nem a herança necessita de ser representada por herdeiros que já se encontram na lide do lado activo e por isso não podem em simultâneo vir a ocupar o lado passivo."
 
*3. [Comentário] O acórdão faz aplicação do chamado princípio da dualidade das partes. Uma das consequências do princípio é -- como se reconheceu no caso sub iudice -- a impossibilidade de uma das partes ser representante da outra.
 
MTS