"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/03/2020

Jurisprudência 2019 (207)


Agente de execução; responsabilidade civil;
dever de completude da parte; litigância de má fé

 
1. O sumário de RE 24/10/2019 (1121/18.9T8FAR.E1) é o seguinte:

I - A responsabilidade civil delitual assacável à ré assenta na omissão por banda desta de um comportamento profissional devido, em concreto, da comunicação aos titulares do direito de preferência na aquisição do imóvel, do projecto de venda e respectivas condições, que motivou a procedência da acção por estes intentada contra a autora para se lhe substituírem na posição de adquirentes.

II - Se a Agente de Execução tivesse levado a cabo o comportamento devido, o mesmo é dizer o comportamento lícito alternativo à ilícita omissão daquele, ou seja, a oportuna comunicação para o exercício do direito de preferência que os titulares do direito vieram exercer judicialmente, nunca a autora teria adquirido o imóvel, pelo que, caso a ré tivesse cumprido com o dever omitido, nunca se constituiria na esfera jurídica da Autora a possibilidade da venda do imóvel com lucro, e tanto sempre bastaria para a improcedência da pretensão indemnizatória fundada quer em lucro cessante quer em perda de chance.

III - O artigo 563.º do CC, consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, o que significa que a omissão ilícita da agente de execução, ora ré, só deixa de ser considerada causa adequada da produção do dano decorrente da realização das despesas que um proprietário diligente tomaria no sentido da manutenção e valorização do imóvel indevidamente adquirido, sem o conhecimento deste e mercê da omissão daquela, quando o comportamento omissivo se revelar de todo indiferente para a produção do dano.

IV - No caso em presença, a omissão da ré deu causa à indevida aquisição do imóvel pela autora que, sem qualquer culpa da sua parte, a determinar o funcionamento do artigo 570.º do CC, actuou como proprietária, realizando despesas que suportou, na convicção de ter adquirido a seu favor essa qualidade, a qual veio a perder na sequência da procedência da acção de preferência por omissão da devida actuação da ré quanto à comunicação aos preferentes.

V - Portanto, ao omitir o dever profissional que sobre si impendia, permitindo com tal omissão a aquisição por banda da autora, em detrimento dos preferentes, a esfera de responsabilidade da ré abrange ainda as despesas acima referidas, as quais não podem sequer ser qualificadas como alguma especial idiossincrasia da adquirente que agravasse desproporcionalmente a esfera de risco que o comportamento omitido espoletou.

VI - Justifica-se a condenação da autora como litigante de má fé, se a mesma omitiu parcialmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento, com o fito de tentar obter também da ré indemnização que já havia recebido parcialmente na acção de preferência.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"III.2.3. - Da litigância de má fé

Insurge-se a Recorrente quanto à sua condenação como litigante de má-fé, invocando, em suma, que não pretendeu qualquer vantagem indevida mas pretende apenas ser ressarcida dos prejuízos que efectivamente teve.

Vejamos.

Dispõe o artigo 542.º, do CPC, para o que releva na apreciação da questão relativa à litigância de má fé, o seguinte:

“1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (…)
 
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
 
Trata-se de norma que reproduz o que anteriormente constava no artigo 456.º do CPC, relativamente ao qual havia já abundante jurisprudência, com entendimento firmado e que continua a ter plena aplicação.

Efectivamente, a redacção do preceito nos termos em que actualmente se encontra, foi introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, visando consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.

Visou-se assim estender a possibilidade de condenação da parte como litigante de má fé, também aos casos de actuação com negligência grave, já que anteriormente se cingia apenas à respectiva actuação dolosa. “O elemento subjectivo é, pois, um pressuposto constitutivo da figura” [Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina 2006, pág. 92.  Sobre este ponto, vide ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ, ABUSO DO DIREITO DE ACÇÃO E CULPA “IN AGENDO”, 2006, ALMEDINA, nomeadamente páginas 65 e ss.].

Portanto, “com a reforma de 95/96 passou-se a sancionar a litigância temerária (sublinhado nosso) ao lado da litigância dolosa, como integrando o conceito de litigância de má fé.

As partes devem, em obediência ao princípio da sua auto responsabilidade, praticar os actos indispensáveis e idóneos a fundamentar e desenvolver os seus respectivos posicionamentos em termos de adequação ao fim que visam e de não contraditoriedade com a verdade material, assim devendo agir de acordo com a boa fé, expondo os factos em juízo sem formularem pretensões que sabem ser destituídas de qualquer razoável fundamento” [Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção [...]].

De facto, quer o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional competente, solicitando a abertura de um processo com vista à composição do litígio com emissão de pronúncia final mediante decisão fundamentada, quer o direito de defesa por banda daquele contra o qual a pretensão é deduzida, assenta, dentro do quadro normativo vigente, no respeito por parte daquele que o exerce e daquele que se lhe opõe, dos deveres de probidade e de leal colaboração, de boa fé processual e de recíproca correcção, devidos ao tribunal e à parte contrária, deveres cujo cumprimento e escopo último visam afinal uma pronta, justa e serena aplicação da justiça ao caso concreto. Daí que o legislador tenha entendido, para potenciar a salvaguarda do respectivo cumprimento, sancionar aqueles que adoptam condutas reprováveis à luz daqueles princípios, constituindo o elenco das consagradas no n.º 2 do referido artigo 542.º do CPC, seguramente actuações censuráveis, a merecer reprovação pelos tribunais e que nem sequer estão dependentes do pedido das partes nesse sentido.

Acresce que, a litigância de má fé assenta sobre o comportamento processual das partes, apreciado com base na sua actuação na lide, globalmente considerada, daí que a decisão possa ser alicerçada quer nos factos alegados pelas partes quer ainda em quaisquer outros factos ou actuações que constem dos autos e que evidentemente são do conhecimento das partes podendo consequentemente estas pronunciar-se sobre tal, como ocorreu no caso em apreço e flui da decisão recorrida [Ac. STJ de 26-04-2012, Agravo n.º 81-E/1999.S1 - 7.ª Secção].

Podemos, pois, assentar que, constituindo a má fé um claro limite ao exercício do direito de acção ou de defesa, a conduta das partes só deve ser censurada por via deste instituto quando tenham actuado de forma ilícita em qualquer uma das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 542.º do CPC. Por isso que, não se encontram abrangidas pela previsão da norma as meras situações de discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou na defesa de uma posição que, ainda assim, não se venha a provar, em virtude de a parte não ter conseguido convencer o tribunal da bondade do invocado.

Inversamente, as condutas que integram tais comportamentos censuráveis a título de dolo ou negligência grave, e de lide considerada temerária, são amiúde alvo de condenação pelos tribunais, confirmadas, mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, extraindo-se dos vários exemplos de condenação o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé [Cfr. a título exemplificativo o Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção], sendo exemplo de situações consideradas como de correcta condenação por litigância de má fé pelo STJ aquelas em que: “o Autor, durante quase toda a lide, alterou a verdade acerca dos salários auferidos (…), é de considerar que o mesmo não foi apenas confuso e imprudente; foi temerário, actuando na «cobiça» da indemnização a qualquer título querida” [Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção].

Ora, extrai-se de todos estes mencionados exemplos o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé.

Assentes estes princípios e enquadrados pelos exemplos que antecedem, voltemos ao caso dos autos para decidir afirmando desde já que, independentemente do desfecho da acção lhe ser parcialmente favorável, a litigância da autora configura claramente uma actuação temerária da sua parte, porque não podia deixar de ter conhecimento da anterior acção e do pedido que ali formulou, repetindo-o parcialmente nesta e “atirando” documentos para os autos para que o tribunal os confrontasse com os anteriores, nunca sequer indicando quais aqueles que repetira quando reduziu o pedido, e escudando-se na mudança de mandatário e na quantidade de documentos juntos, sequer cotejando aqueles que se reportavam a reparações/materiais já pedidos na acção de preferência, e pagos, que manteve pelo menos em grande parte, conforme comprova o facto provado em 24. quase coincidente com o valor da condenação dos adquirentes naquela primeira acção.

Louvamo-nos nesta parte no segmento mais relevante da fundamentação da Senhora Juíza, quando referiu que «a autora, para além de ter inicialmente deduzido pedido global sem correspondência com as parcelas que indicou, o qual corrigiu em sede de audiência prévia, apenas confrontada pelo Tribunal com a existência de eventual litigância de má-fé veio reduzir o pedido, excluindo, precisamente, as verbas relativas a tais despesas.(…)

A justificação que a autora apresenta também não colhe, pois que não é verdade que o mandatário seja diverso, pois, após a sentença proferida, foi o mandatário que agora a representa que formulou o pedido de pagamento dessas despesas (cfr. fls.16 e 400 destes autos).

Donde, concluímos a posição assumida pela autora nos autos excedeu os indicados limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais, na medida em que sabia ter sido ressarcida de despesas com a aquisição e com obras realizadas no prédio misto adquirido, omitiu tal ressarcimento e procurou ser ressarcida pela ré pelo mesmo dano.

Ora, em síntese clara do sobredito louvamo-nos no juízo efectuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, onde se afirmou que “as partes, recorrendo a juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas aos deveres de cooperação, probidade e boa fé com o tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à verdade e ao Direito, sob pena de a protecção jurídica que reclamam não ser alcançada, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os tribunais.

A actuação processual do litigante de boa fé postula uma actuação verdadeira, correcta no tempo e modo processuais, não se compadecendo com subterfúgios e meias verdades, que mais não visam senão uma egoísta defesa de posições próprias que, prejudicando o opositor, acabam por não conduzir o tribunal à célere e correcta percepção da realidade.

Uma das condutas em que se exprime a litigância de má fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável. (…)

Se é certo que o direito de recorrer aos tribunais para aceder à justiça constitui um direito fundamental – art. 20.º da CRP – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art. 456.º do CPC” [Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção].

Assim, à luz do preceito legal supra citado e dos ensinamentos retirados dos referidos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, a outra conclusão não se pode chegar do que àquela que levou a Senhora Juíza à condenação da Autora como litigante de má fé, ou seja, que a mesma omitiu parcialmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento, tudo fazendo com o fito de tentar obter também da ré indemnização que já havia recebido, actuação que se reputa inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei impõe às partes, visando a descoberta da verdade material e a justa composição do litígio."
 
[MTS]