"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/03/2020

Jurisprudência 2019 (191)



Impugnação da paternidade;
prova biológica; dever de colaboração


1. O sumário de RG 3/10/2019 (582/17.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I - Assiste legitimidade ao autor/recorrido para impulsionar ação de impugnação da perfilhação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1859.º, n.º 2, do CC, quando este invoca ser o pai biológico do perfilhado, alegando um conjunto de factos constitutivos do seu direito que são objetivamente idóneos a consubstanciar a conclusão formulada quanto à desconformidade entre o reconhecimento da paternidade pelo réu, tal como consta do ato de perfilhação, e a verdade biológica;

II - Se a ampliação pretendida pelos apelantes em sede de impugnação da matéria de facto importa o aditamento à matéria provada de factos não considerados na decisão recorrida mas que não podem assumir qualquer relevância jurídica à luz das circunstâncias específicas do caso em apreciação, revelando-se tal matéria inconsequente para a decisão de mérito a proferir, não deverá proceder-se, nessa parte, à reapreciação da matéria de facto, por configurar um ato inútil, como tal proibido por lei, nos termos do disposto no artigo 130.º do CPC;

III - Verificando-se que a conduta dos réus ao recusarem sem justificação submeter-se aos exames periciais determinados nos autos, para além de ilegítima e culposa, determinou a impossibilidade da prova direta da procriação biológica, que era, em concreto, o meio idóneo para o autor fazer prova da invocada falta de coincidência entre a verdade registada e a verdade biológica, enquanto facto essencial constitutivo do direito que se arroga na ação de impugnação da paternidade, por perfilhação, deve operar a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do CC.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No caso em apreciação vem o autor/recorrido impugnar a perfilhação registada relativamente à criança V. C., nascido a 5-09-2015, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1859.º, do CC, alegando para o efeito, no essencial, que a perfilhação não corresponde à verdade biológica, porquanto, apesar da menção constante do assento de nascimento, o 3.º réu não é filho biológico do 1.º réu.
 
Não se tratando nos presentes autos de ação intentada pelo perfilhado ou pela mãe - à qual tem aplicação o regime especial de prova previsto no n.º 3 do citado artigo 1859.º do CC -, resulta manifesto impender sobre o autor/impugnante o ónus de demonstrar que o reconhecimento da paternidade contido na declaração de perfilhação não corresponde à verdade, por ser este o elemento constitutivo do direito que o autor se arroga, nos termos da norma substantiva aplicável, atendendo ao disposto nos artigos 342.º, n.ºs 1 e 3, 1859.º, n.ºs 1 e 2, do CC. [...]
 
Analisando as questões submetidas à apreciação neste recurso, importa ter presente que a decisão sobre a procedência da ação baseou-se no entendimento expresso na sentença recorrida de que a verdade biológica configura um dos princípios basilares no domínio do direito da filiação, assumindo por isso as provas científicas inegável importância pois permitem, com um grau de certeza de quase 100%, estabelecer a verdadeira paternidade ou, tal como como ocorre no caso em apreciação, afastar uma paternidade registral que não coincida com a biológica.
 
Daí ter considerado que a recusa do réu neste tipo de ações em submeter-se a esse tipo de prova, quando culposa e impossibilite o autor de, por via de outros meios probatórios, conseguir a demonstração dos factos em que assenta o direito invocado elos meios técnico-jurídicos disponíveis possa conduzir à inversão do ónus da prova.
 
E mediante a invocação do disposto nos artigos 344.º, n.º 2, 1801.º do CC, e 417.º do CPC, entendeu operar a inversão do ónus da prova por concluir, em primeiro lugar, que a recusa dos réus a submeterem-se à prova pericial, nomeadamente a exames de ADN que hoje podem fazer-se com segurança, no recato de um laboratório, sem invasão da integridade física ou psicológica, através da simples recolha de uma amostra de saliva, se revelava no caso ilegítima e culposa. Para o efeito entendeu não colher a argumentação em que os réus fundaram a sua recusa, de não tolerarem que seja posta em causa a paternidade do 3.º réu e a defesa da sua honra, integridade física e moral.
 
A questão central a apreciar reside, então, em saber se estão verificados os pressupostos para operar a inversão do ónus da prova por violação do dever de colaboração das partes para a descoberta da verdade. [...]
 
Como decorre do disposto no artigo 417.º, n.º1, do CPC, «Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados», esclarecendo o n.º 3 do citado preceito que a recusa será legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
 
Também no âmbito deste recurso verificamos que os réus/apelantes retomam a alegação de que não aceitaram submeter-se ao exame de genética apenas porque nunca equacionaram sequer a hipótese de o V. C. não ser filho do 1.º réu, e que a atitude do autor consubstancia um mero capricho deste em pretender submeter os réus a um exame pericial sem que alegue factos ou prove minimamente os pressupostos que justifiquem a necessidade de efetuar tal exame, nomeadamente, dúvidas fundadas sobre a paternidade do 3. º réu ou o facto comprovado de ter tido relações sexuais com a mãe do 3.º réu e reclamar para si a paternidade da criança sob pena de se admitir que qualquer indivíduo, com o fim de aborrecer ou causar dano, possa pôr em causa qualquer paternidade de outrem.
 
Ora, atento o relevo e a natureza que atualmente assumem os exames genéticos no âmbito da presente ação resulta evidente a nossa concordância com a decisão recorrida quando refere que a argumentação sustentada pelos réus para recusarem a realização de exames genéticos não colhe.
 
Assim, como se viu já, resulta indiscutível que no contexto dos autos e perante os factos que foram alegados com vista à procedência da acção, o autor/recorrido preenche o conceito legal de pessoa dotada de interesse moral na procedência da impugnação da perfilhação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1859.º, n.º 2, do CC, porquanto, para além de invocar ser o pai biológico do perfilhado, alegou um conjunto de factos constitutivos do seu direito que são objetivamente idóneos a consubstanciar a conclusão formulada quanto à desconformidade entre o reconhecimento da paternidade constante do ato de perfilhação e a verdade biológica. Note-se, aliás, que a verosimilhança das circunstâncias inicialmente alegadas pelo autor/recorrido mostra-se consubstanciada pela comprovação do facto apurado sob o n.º 3 dos “Factos Provados”, do qual consta que «no período temporal que corresponde aos 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do menor, a ré V. F. manteve relações sexuais de cópula completa com o autor».
 
Por outro lado, atendendo aos métodos usualmente utilizados no âmbito dos exames científicos em sede de ações de filiação também não se vislumbra que a sujeição aos mesmos possa contender com a integridade física, moral - ou mesmo com a honra dos visados -, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3, al. a), do artigo 417.º do CPC (...).
 
De todo o modo, na linha da ponderação já realizada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 616/18 [?], de 21-10 (relator: Artur Maurício) (...) a propósito do confronto entre o direito à integridade pessoal e o direito à identidade pessoal, tudo nos leva a sufragar a fundamentação vertida na decisão recorrida quando conclui que os direitos à honra e à reserva da intimidade da vida privada não são direitos absolutos pelo que, quando conflituem com outros, nomeadamente com os direitos à identidade e à historicidade pessoal, todos consagrados no artigo 26.º da CRP, terão de ser comprimidos na justa medida que se mostre necessária para salvaguardar o conteúdo mínimo destes últimos.
 
Em conclusão, e tal como sustentam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 225-226), «Tido em conta o dever de colaboração, não é legítima a recusa à realização dos exames hematológicos em ação relativa à filiação (art. 1801 CC); mas, tida em conta a tutela dos direitos de personalidade, não é admissível a execução coerciva desses exames (…), sem prejuízo de a recusa dever ser valorada em termos de prova, podendo mesmo, designadamente quando implique a impossibilidade de o autor fazer prova da filiação biológica, dar lugar à inversão do ónus da prova».
 
No caso em apreciação, e tal como consignou a decisão recorrida, verifica-se que «logo com a propositura da ação, ao indicar os meios de prova, requereu o autor a realização de exame pericial a solicitar ao IML, por forma a comparar o perfil biológico dele e do réu menor. Também logo na contestação os réus P. R. e V. F. declararam a sua oposição a serem submetidos a exame pericial. [...]
 
Uma vez mais os réus vieram reafirmar a posição já assumida na contestação, declarando novamente que não aceitavam ser submetidos a exame pericial, acrescentando que “não toleram sequer que seja posta em dúvida a paternidade do réu P. R. relativamente ao seu filho V. C.” e que “em defesa da sua integridade física e moral e da sua honra, não vão sujeitar-se à realização de exame pericial biológico”.
 
O tribunal registou essa oposição, mas ainda assim, por continuar a entender, tal como o autor, que o exame genético era determinante para a decisão do objecto do processo, solicitou o agendamento do exame ao IML, logo advertindo os réus que o comportamento que aqueles viessem a adoptar poderia ser oportunamente valorado para efeitos probatórios, em consonância com o disposto nos artigos 417º do Código de Processo Civil e 344º, nº 2 do Código Civil.
 
Fixado o objecto da perícia nesse mesmo despacho e agendado o exame, os réus não compareceram na data designada para recolha das amostras biológicas (cfr. 61), nem apresentaram qualquer justificação para essa ausência.
 
Num último ensejo para fazer com que aqueles reconsiderassem a sua posição, no início da audiência final foram pessoalmente informados e expressamente advertidos (assim como o foi a curadora do menor) para as consequências probatórias que poderiam advir da sua recusa em submeter-se ao exame pericial, nomeadamente quanto à eventual inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344º, nº 2 do Código Civil, tendo uma vez mais declarado que mantinham aquela recusa».
 
Decorre do exposto que os réus recusaram sem justificação submeter-se aos exames periciais determinados nos autos. Para além de assumirem uma postura omissiva, não comparecendo na data designada para recolha das amostras biológicas nem apresentando qualquer justificação para essa ausência, declararam nos autos a recusa expressa em se submeterem aos referidos exames, apesar de expressamente advertidos das respetivas consequências.
 
Importa pois concluir pela ilegitimidade da recusa dos recorrentes, a qual se considera culposa.
 
O n.º 2 do citado artigo 417.º do CPC prevê diversas sanções para aqueles que recusem a colaboração devida para a descoberta da verdade, as quais, para além da condenação em multa, e sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis, podem implicar consequências de ordem probatória para o recusante que for parte, concretamente, a livre apreciação pelo tribunal do valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no artigo 344.º, n.º 2, do CC.
 
Nos termos do n.º 2 do artigo 344.º do CC «Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações».
 
Ora, à luz das considerações jurídicas supra expendidas, resulta manifesto que a realização do exame pericial biológico ordenado pelo Tribunal a quo ao autor e aos réus certamente permitiria determinar com elevado grau de segurança a filiação biológica e, com isso, determinar o mérito da pretensão deduzida pelo autor, confirmando-a ou negando-a.
 
E a importância de tal meio de prova revela-se absolutamente decisiva quando no caso se verifica que o autor logrou comprovar que «no período temporal que corresponde aos 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do menor, a ré V. F. manteve relações sexuais de cópula completa com o autor». Na verdade, apesar da constatação de tal facto, o Tribunal a quo não logrou concluir com suficiente probabilidade que a paternidade do menor V. C. levada ao registo não corresponde à biológica, porquanto, como também referiu aquele Tribunal na motivação da decisão de facto, se constatou que o 1.º réu mantém com a ré uma relação de namoro de longa data, e, como é evidente, não se produziu prova suficiente que no período legal de conceção do menor estes não tiveram qualquer trato sexual.
 
Assim sendo, face à manifesta impossibilidade da prova indireta do facto com base na exclusividade do relacionamento sexual entre o autor e a mãe da criança mantido durante o período legal de conceção, resta concluir que a sujeição ao referido exame científico se mostrava essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, implicando a verificada recusa dos réus a impossibilidade de o autor fazer prova da invocada falta de coincidência entre a verdade registada e a verdade biológica, enquanto facto essencial constitutivo do direito que se arroga na presente ação. [...]
 
Pelo exposto, resta concluir, tal como na 1.ª instância, que a conduta dos réus, ao recusarem sem justificação submeter-se aos exames periciais determinados nos autos, para além de ilegítima e culposa, determinou a impossibilidade da prova direta da procriação biológica, que era, em concreto, o meio idóneo para a demonstração de tal facto, atendendo às circunstâncias do processo."

[MTS]