"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/03/2020

Jurisprudência 2019 (190)


Competência material;
responsabilidade civil; ETAF


I. O sumário de RC 17/9/2019 (10066/15.3T8CBR.C1) é o seguinte:
 
1. O legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, tendo esta distinção deixado de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

2. Assim, o novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; pelo que, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, g), do ETAF).

3. Mas, igualmente, lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, h), do ETAF).

4. A função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas que a estas estejam ligadas.

5. Estão, assim, integrados na função administrativa os actos médicos praticados num hospital que colabora com o Serviço Nacional de Saúde e a prosseguir as tarefas que legalmente a este estão confiadas.

6. Daí que sejam os Tribunais Administrativos os competentes para julgarem a acção proposta contra dois médicos e uma Clínica que colabora com o SNS, no âmbito do SIGIC, e prestou cuidados a utente deste sistema, com fundamento em actos médicos deficientemente prestados.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Competência material do tribunal judicial. [...]

2. Na decisão recorrida escreveu-se [...]: [...]

Cremos que se decidiu bem  [...].

Adicionalmente, temos por pertinente acrescentar mais 4 observações jurídicas: [...]

- a jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP).

Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.

Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa segundo o entendimento de J. C. Vieira de Andrade, quando, depois de afirmar que à justiça administrativa só interessam «as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo», acentua que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» - em A Justiça Administrativa - Lições, 3ª Ed., 2000, pág. 79.

É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada, tendo esta distinção deixado de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.

Assim, o novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Pelo que, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, g), do ETAF).

Mas, igualmente, lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (art. 4º, nº 1, h), do ETAF) – (vide Ac. Rel. de Coimbra de 21.10.2008, Proc. 163/05.9TBFCR, em www.dgsi.pt);

- como se menciona no Ac. de 2.10.2008 (Proc.012/08) do Trib. Conflitos (disponível no mesmo sítio), é sabido que “a função administrativa compreende o conjunto de actos de execução de actos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer as necessidades colectivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder do Estado – colectividade” (M. Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, pg. 12 [...].) e que essa função é “desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, entre as quais o Estado – Administração, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública. As primeiras formam o cerne da Administração Pública e exercem a função administrativa do Estado – colectividade de forma imediata, necessária a por direito próprio, em obediência a opções prévias, que se traduziram no exercício da função legislativa daquele Estado, função principal ou primária. As segundas assumem uma posição secundária dentro da Administração Pública, exercendo a função administrativa por delegação daquelas. Assim, as pessoas colectivas privadas que se encontram nesta posição exercem a função administrativa do Estado por efeito de decisão prévia de uma pessoa colectiva pública, decisão essa que se insere no exercício da função administrativa por parte da pessoa delegante.” (Idem a pg. 148, com sublinhado nosso.).

O que quer dizer que a função administrativa do Estado tanto pode ser praticada directamente pelos organismos e serviços integrados na sua pessoa sob a gestão imediata dos seus órgãos, como por pessoas colectivas que lhe são exteriores, públicas ou privadas, mas que a ele estão ligadas (M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.º ed., vol. I, pg. 187.), o que tem como corolário que as relações jurídicas decorrentes da função administrativa delegada a estas pessoas colectivas se desenvolvem a coberto dos poderes de autoridade necessários ao cumprimento da função que lhes foi confiada e a serem reguladas por normas de direito administrativo visto se dirigirem à satisfação do interesse público.”

E se assim é, como é, a conclusão que se pode retirar é a de que os actos praticados por tais entidades, enquanto elas estiverem integradas na administração indirecta do Estado e esses actos se direccionarem à satisfação do interesse público, devem ser considerados praticados a coberto de normas de direito administrativo;

- Á data dos factos regulava o Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei 27/2002 de 8.11. Como se menciona no Ac. de 21.4.2016 (Proc.06/15) do Trib. Conflitos (disponível no mesmo sítio) “Por seu turno o Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei nº 27/2002 de 08/11 dispõe no seu artº 1º, nº 2: «A rede de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, os estabelecimentos privados que prestam cuidados aos utentes do SNS nos termos de contratos celebrados ao abrigo do disposto no Capítulo IV e os profissionais com quem sejam celebradas convenções».

E no nº 1 do artº 2º do referido Regime Jurídico dispõe-se: «Os hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde podem revestir uma das seguintes figuras jurídicas: a) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira, com ou sem autonomia patrimonial; b) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial e natureza empresarial; c) Sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos; d) Estabelecimentos privados, com ou sem fins lucrativos com quem sejam celebrados contratos, nos termos do nº 2 do artigo anterior» - sub. nosso.

No que respeita ao regime a que estão sujeitos os estabelecimentos privados, estabelece o artº 20º [capítulo IV do RJGH]:

«1º. Os hospitais previstos na al. d) do nº 1 do artº 2º, regem-se:

a) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas com fins lucrativos pelos respectivos estatutos e pelas disposições do Código das Sociedades Comerciais;

b) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, pelo disposto nos respectivos diplomas orgânicos e subsidiariamente, pela lei geral aplicável;
 
2. O disposto no número anterior não prejudica o cumprimento das disposições gerais constantes do capítulo I»


Temos assim que as normas que constituem o capítulo I do RJGH, aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (artº 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (artº 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (artº 6º a 8º).

E da observação destas normas extrai-se que os hospitais que revistam a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, que estejam integrados na rede de prestação de cuidados de saúde, por força de contratos celebrados ao abrigo do disposto no capítulo IV do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, anexo à Lei nº 27/2002 de 02/11 têm a respectiva actividade disciplinada por um conjunto de regras que decorrem do facto da entidade privada ter sido chamada a desenvolver, em colaboração com o Estado, uma tarefa de interesse público.”.

Concluindo, agora, podemos dizer que atendendo à narrativa dos factos constantes da causa de pedir, verifica-se que os mesmos foram praticados no âmbito de uma relação jurídica de prestação de cuidados de saúde em que o hospital privado – S (…)– em virtude do contrato celebrado com a Administração Regional de Saúde, tem a sua actividade disciplinada por normas de direito administrativo.

Deste modo, e atento o disposto no art. 4º, nº 1, h) do ETAF, cremos que a competência, em razão da matéria, para conhecer da presente acção radica na jurisdição administrativa."

[MTS]