"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/03/2020

Jurisprudência 2019 (203)

 
Reconvenção;
conexão objectiva
 
 
1. O sumário de RP 22/10/2019 (3445/18.6T8VFR-A.P1) é o seguinte:

I - Só o fundamento factual/jurídico da acção e da defesa podem conduzir à reconvenção – em consequência lógica, a causa de pedir, quer da acção, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da acção, sob pena de inadmissibilidade do pedido reconvencional.

II - Os factos essenciais podem conceber-se enquanto factos essenciais principais, ou factos essenciais complementares ou concretizadores - só os factos essenciais principais desempenham função individualizadora ou identificadora e só a respectiva omissão implica a ineptidão da petição inicial, para efeitos do disposto no artº 186º nº2 al.a) CPCiv (veja-se o actual artº 5º nºs 1 e 2 CPCiv, na esteira do que já dispunha a norma do artº 264º CPCiv, proveniente da revisão de 95/96).

III - Os danos invocados não têm por força que ser quantificados, para que possam proceder, mesmo que num quadro de alegação complementar ou concretizadora, visto o disposto no artº 566º nº3 CCiv, mas o Juiz deve ainda utilizar os factos que conduzam directamente à quantificação, até à pronúncia em 1ª instância, desde que tenha conferido expressamente às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem – cf. artº 5º nº2 al.b) CPCiv, no quadro dos respectivos poderes/deveres oficiosos em matéria probatória – artº 411º CPCiv.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I
 
O pedido em causa tem por base uma causa de pedir desdobrada em três segmentos (isto pese embora os prejuízos invocados venham contabilizados numa única quantia liquidada - €450.000):
 
- os prejuízos decorrentes da propositura da acção;
 
- os prejuízos decorrentes da resolução do contrato, por parte da Reconvinte – acréscimo de prémios de seguro;
 
- os prejuízos decorrentes da execução contratual, motivadora da justa causa de resolução – a conduta em geral da Reconvinda, a ausência de informação quanto à sinistralidade.
 
Quanto ao primeiro dos apontados segmentos do pedido, tem razão a douta impugnação recursória.
 
Na verdade, só o fundamento factual/jurídico da acção e da defesa podem conduzir à reconvenção – em consequência lógica, a causa de pedir, quer da acção, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da acção – neste sentido, Ac.R.P. 14/1/88 Bol.373/600, relatado pelo Consº Jorge Vasconcelos.
 
No mesmo sentido, veja-se o Ac.S.T.J. 22/5/03, pº 03A3141, relatado pelo Consº Afonso de Melo, baseado na doutrina do Ac.S.T.J. 2/3/45 Bol.28/99, com anotação concordante da Revista dos Tribunais, 63º/169 e 86º/365.
 
Por isso mesmo, da forma concreta como o autor articula os factos da presente acção não se podia deduzir o concreto pedido reconvencional, pois não nos encontramos perante idêntica causa de pedir; de forma idêntica, está também vedada a dedução de pedido reconvencional se a defesa invoca que o Autor promove alegação atentatória do seu bom nome, com efeitos junto das entidades de crédito.
 
O Ac.R.P. 16/10/86 Col.IV/236, relatado pelo Consº Flávio Pinto Ferreira, entendeu que os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a propositura da acção devem integrar pedido de indemnização com base em litigância de má fé, sem excluir a possibilidade de dedução de acção própria.
 
Portanto, nesta parte a reconvenção era efectivamente inadmissível, à luz do disposto no artº 266º nº2 al.a) CPCiv.
 
II

Como visto, o Autor alega ainda:
 
- os prejuízos decorrentes da resolução do contrato, por parte da Reconvinte – acréscimo de prémios de seguro;
 
- os prejuízos decorrentes da execução contratual, motivadora da justa causa de resolução – a conduta em geral da Reconvinda, a ausência de informação quanto à sinistralidade.
 
Não curamos do mérito dos pedidos – apenas de saber se tais pedidos podem, ou não, considerar-se ineptos, visto o disposto no artº 186º nº2 al.a) CPCiv, por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir.
 
Como é sabido, na exegese do actual artº 5º nºs 1 e 2 CPCiv, na esteira do que já dispunha a norma do artº 264º CPCiv, proveniente da revisão de 95/96, pode dizer-se que os factos essenciais podem conceber-se enquanto factos essenciais principais, ou factos essenciais complementares ou concretizadores.
 
Ora, só os factos essenciais principais desempenham uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de só a respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial (cf. Ac.R.P. 8/1/2018, pº 1676/16.2T8OAZ.P1, relatado pelo Des. Baldaia de Morais).
 
“Quanto aos factos complementares e aos factos concretizadores, embora também integrem a causa de pedir, não têm uma função individualizadora, pelo que a omissão da respectiva alegação não é passível de gerar ineptidão da petição inicial; assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir complexa, ou seja, uma causa de pedir aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele; por seu turno, os factos concretizadores têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção” – escreveu-se no mesmo aresto, aliás reproduzido pelo Prof. Teixeira de Sousa, in blog do ippc, entrada de 11/4/2018.
 
Sem curarmos do mérito, repetimo-lo, foram invocados danos, recorde-se, decorrentes de acréscimo de prémios de seguro (veja-se a alegação do artº 30º do articulado de resposta às excepções, por parte da Ré), e decorrentes da inércia da conduta da Autora ou da ausência de informação quanto à sinistralidade (no decurso da execução do contrato – vejam-se os artºs 55º, 67º a 69º, 79º, 82º e 83º do articulado contestação/reconvenção).
 
Isto posto, os danos invocados não têm por força que ser quantificados, para que possam proceder, mesmo que num quadro de alegação complementar ou concretizadora, visto o disposto no artº 566º nº3 CCiv.
 
A necessidade de quantificação ou de mais adequada concretização dos factos alegados deveria ter dado origem, fosse o caso, à prolação do despacho de aperfeiçoamento, previsto na norma do artº 590º nº4 CPCiv.
 
Todavia, há que não olvidar que os factos complementares e concretizadores, designadamente em matéria de quantificação, podem ainda ser utilizados pelo Julgador, até à pronúncia em 1ª instância, desde que se tenha conferido expressamente às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem – cf. artº 5º nº2 al.b) CPCiv, no quadro dos respectivos poderes/deveres oficiosos em matéria probatória – artº 411º CPCiv.
 
Em resumo – não existe fundamento para afirmar que, na parte em que excede o pedido inadmissível, tal como supra expusemos, a reconvenção formulada o foi, designadamente, na ausência de causa de pedir.
 
Não existe assim que afirmar a ineptidão da reconvenção, por aplicação da norma do artº 186º nº2 al.a) CPCiv."
 
[MTS]