"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/03/2020

Jurisprudência 2019 (200)


Recurso de revisão;
documento superveniente

 
1. O sumário de RG 10/10/2019 (465/15.6T8GMR.G1-A) é o seguinte: 

I- O recurso extraordinário de revisão comporta duas fases:

A fase rescindente em que o tribunal aprecia os fundamentos do recurso, de modo a poder decidir se a decisão já transitada em julgado deve ou não ser rescindida. Portanto, o seu objectivo é revogar a decisão.

II- A fase rescisória, uma vez considerado procedente o recurso e, portanto destruída a decisão objecto do recurso, vai-se retomar, em princípio, o processo, de forma a obter-se uma decisão que substitua a rescindida. Aqui ocorre uma renovação da instância, segundo a maioria da doutrina. O seu objectivo é produzir uma nova decisão em substituição da decisão revogada.

III- No que especificamente concerne à alínea c), do artigo 696.º, o documento atendível terá que preencher dois requisitos: a novidade e a suficiência, significando o primeiro que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão a rever, seja porque não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele, e o segundo que o documento produzido implique uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

IV- O provimento do recurso de revisão pressupõe que na acção onde foi proferida a sentença a rever hajam sido alegados os factos que o documento novo se destina a provar.

V- O documento novo a que alude o art. 696º-c) CPC deve ser, portanto, um meio de prova de factos. Mas estes factos devem ter sido oportunamente alegados no processo onde foi proferida a decisão a rever e que, por falta do referido documento, teve uma decisão desfavorável ao recorrente.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"O Mérito do recurso.

O recurso extraordinário de revisão comporta duas fases:

A fase rescindente em que o tribunal aprecia os fundamentos do recurso, de modo a poder decidir se a decisão já transitada em julgado deve ou não ser rescindida.

Portanto, o seu objectivo é revogar a decisão.

A fase rescisória, uma vez considerado procedente o recurso e, portanto destruída a decisão objecto do recurso, vai-se retomar, em princípio, o processo, de forma a obter-se uma decisão que substitua a rescindida. Aqui ocorre uma renovação da instância, segundo a maioria da doutrina. O seu objectivo é produzir uma nova decisão em substituição da decisão revogada.

Como se sintetiza no acórdão do STJ de 13 de Dezembro de 2017, Proc. 2178/04.5TVLSB-E.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt «O recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696.º do CPC, ao contrário do recurso ordinário – que se destina a evitar o trânsito em julgado de uma decisão –, visa uma decisão judicial (revidenda) já coberta pela autoridade do caso julgado – e a sua substituição por outra que venha a ser proferida, sem a verificação da anomalia que sustentou a impugnação – , pelo que, só é aparentemente admissível nas situações taxativamente indicadas e de tal modo graves que as exigências da justiça e da verdade sejam susceptíveis de ser clamorosamente abaladas, no conflito com a necessidade de segurança ou de certeza, se estas, com a inerente intangibilidade do caso julgado, prevalecessem. Assim, estamos face a um recurso ou mecanismo processual que não pode deixar de ser encarado como um “remédio” de aplicação extraordinária a uma comprovada ofensa ao primado da justiça, que, de tão gritante, consinta a cedência da certeza e da segurança conferidas pelo princípio do caso julgado».

O fundamento alegado pelos recorrentes para a revisão é o previsto no artº.696º, c) CPC - “A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

No que especificamente concerne à alínea c), do artigo 696.º, o documento atendível terá que preencher dois requisitos: a novidade e a suficiência, significando o primeiro que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão a rever, seja porque não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele, e o segundo que o documento produzido implique uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Os recorrentes entendem que o documento que ora juntam, emitido pela Câmara Municipal ..., atesta o facto de que a bancada em questão nos presentes autos, referida no ponto 5) da matéria de facto dada como provada, não tinha licença nem de construção nem de utilização, nunca sequer tendo apresentado qualquer projecto referente à mesma. E consideram, tal como vem alegado na conclusão 13ª da alegação de recurso, que este documento «é suficiente para alterar-se a matéria de facto, nomeadamente, dando-se como provado o seguinte facto assaz relevante para a decisão justa a proferir no presente caso (que ora se alega)»:

“A bancada referida em 5), não se encontra contemplada no processo de licenciamento camarário do prédio referido em 3), não se encontrando licenciada. Não tendo sido requerida, nem emitida qualquer licença de ocupação ao Réu Grupo Desportivo …”, o que, em seu entender, tem implicação, pelo menos, na decisão da matéria atinente à reconvenção, pois implica que os Autores/Reconvindos não poderiam ser condenados a pagar ao Réu/Reconvinte o valor de € 375,00/mês, por um período com início em Novembro de 2014 até que se mostre concluída a construção da bancada em condições de utilização pelos adeptos.

Importa, pois, analisar se o documento junto pelos recorrentes preenche os requisitos a que alude a al. c) do artigo 696º do CPC.

Quanto ao requisito da novidade

Mostram os autos que os documentos foram obtidos em 11.03.2019 (notificados aos recorrentes).

Neles se atesta que «a bancada existente no lado nascente, da qual não se dispõe de qualquer projecto (elementos escritos e desenhados), não se encontra contemplada naquele processo, não se encontrando licenciada. Não foi requerida nem emitida qualquer licença de ocupação ao Grupo desportivo …».

“Perante a letra e a razão de ser do preceito contido na al. c) do artigo 771º do CPC, parece evidente que, quem queira utilizar o recurso de revisão, com base na referida alínea, terá de alegar e provar que não tinha conhecimento da existência do documento, ou tendo dele conhecimento não pôde usá-lo no processo em tempo processualmente útil. Trata-se de um pressuposto da própria viabilidade do recurso a apreciar numa primeira fase e que pode levar ao indeferimento liminar, se aquele pressuposto não estiver presente – cf. artº 774º, nº2 do CPC. É essencial que não seja imputável à parte vencida a não produção do documento no processo anterior. Exige-se, portanto, ao pretendente à revisão que tenha desenvolvido todas as diligências que estavam ao seu alcance para utilizar o documento de que tinha conhecimento e, não obstante, o não tinha conseguido, por motivo que não lhe seja imputável”. (cfr. Ac. STJ de 13.07.2010: Proc. 480/03.2TBVLC-E.P1.S1. dgsi. Net).

Em face do disposto na al.c), conclui-se que: os documentos aí referidos já devem existir quando correu a acção em que foi proferida a sentença revidenda e, por outro lado, que a revisão não pode constituir meio de o litigante que interpõe esse recurso suprir as omissões por ele cometidas quando litigou no anterior processo, ou seja, é essencial que não seja imputável à parte vencida a não-produção do documento no processo anterior (A. dos Reis, RLJ, 85º-300). Consequentemente, se o documento é conhecido ou utilizável antes do trânsito da decisão em julgado, deve ser invocado em recurso ordinário. Neste sentido se observa no Acórdão do STJ de 11-9-2007, processo 07 A 1332, www.dgsi.pt, «a parte que só tardiamente obteve o documento que, poderia ter obtido antes, não pode beneficiar desse facto, sob pena de se abrir a porta à revisibilidade de decisões transitadas com uma facilidade que se não compagina com a certeza e o rigor do caso julgado» (cf. Acórdão do STJ de 11-9-2007, processo 07 A 1332, www.dgsi.pt).

No caso vertente, a parte só tardiamente obteve o documento que poderia ter obtido antes, sendo-lhe imputável a não-produção do documento no processo anterior. Não padece dúvida que ao pretendente à revisão era-lhe exigível que desenvolvesse todas as diligências que estavam ao seu alcance para utilizar o documento. No presente caso, estamos perante documento que é anterior à decisão a rever e até à própria instauração da acção, não sendo de obtenção difícil e intransponível, bastando pedido de consulta junto dos serviços da Câmara Municipal ....

Sendo assim, é mister concluir pela não verificação do requisito da novidade.

Quanto ao requisito da suficiência

Por outro lado, para que o documento a que se refere a al. c) do artigo 696º do CPC seja fundamento do recurso extraordinário de Revisão, é necessário que ele, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Como é bom de ver nem mesmo apresentado no tribunal que proferiu a decisão revidenda, o documento em causa teria a virtualidade de alterar a decisão proferida.

E, o requisito da suficiência tem de ser entendido como exigência de que o documento apresentado disponha, por si só, de total e completa suficiência probatória, no sentido de que, se esse documento tivesse sido tomado em consideração pelo tribunal que proferiu a decisão revidenda, essa decisão nunca poderia ter sido aquela que foi – e isto sem fazer apelo a outros elementos de prova, sejam eles documentais, testemunhais ou periciais –, por constituir prova plena de um facto inconciliável com a decisão a rever, o que não é o caso (neste sentido, Ac. STJ de 18-12-2013: Proc. 3061/03.7TTLSB-B.L1.S1, acessível em dgsi.Net).

A decisão revidenda perfila-se no campo da responsabilidade civil, mostrando-se preenchidos os seus pressupostos e a obrigação de indemnizar.

O documento apresentado, atestando a inexistência de licença de utilização da bancada apenas tem implicações de natureza administrativa, entre o Recorrido e a Câmara Municipal ... e em nada sendo suficiente para, só por si, acarretar decisão diversa da que foi proferida.

Acresce dizer que o provimento do recurso de revisão pressupõe que na acção onde foi proferida a sentença a rever hajam sido alegados os factos que o documento novo se destina a provar.

É que o documento é um meio de prova e as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art.341º CC).

De factos que devem ser alegados, porque o ónus de alegação precede o ónus de prova.

O documento novo a que alude o art. 696º-c) CPC deve ser, portanto, um meio de prova de factos. Mas estes factos devem ter sido oportunamente alegados no processo onde foi proferida a decisão a rever e que, por falta do referido documento, teve uma decisão desfavorável ao recorrente.

Ora, no caso vertente, com o documento que os recorrentes apresentam, pretendem comprovar factos objectivamente novos e supervenientes relativamente ao processo onde foi proferida a decisão a rever. Não foram aí alegados, e, portanto, não representam factos discutidos no processo anterior. Antes, vêm invocados pela primeira vez em sede de recurso extraordinário de revisão.

O fundamento da revisão a que alude a alínea c) do art. 696º CPC deve ser um documento novo, não um facto novo.

A revisão não pode ter lugar se os factos comprovados por tal documento não tiverem sido alegados na acção anterior."

[MTS]