Direito ao recurso
1. O sumário de RL 10/9/2019 (976/12.5TBALM-C.L1-6) é o seguinte:
I) A Constituição não consagra, em sede não penal, o direito ao recurso, entendido como o direito pleno a um duplo grau de jurisdição.
II) A jurisprudência do Tribunal Constitucional considera, porém, a admissibilidade do recurso de decisão judicial não enquadrada na previsão do artigo 629.º, do CPC, quanto à alçada e à sucumbência, quando esteja em causa a violação de direitos fundamentais directamente pela própria decisão judicial.
III) Não basta a tal admissibilidade que no processo se decida matéria que contenda ou se relacione com direitos fundamentais.
IV) Em incidente de incumprimento da obrigação de alimentos não está em causa direito fundamental com protecção reforçada nos termos dos artigos 16.º a 18.º da Constituição.
Em incidente de incumprimento da obrigação de alimentos, a admissibilidade do recurso da decisão que fixe as quantias em que o incumprimento se exprime está sujeita à regra da sucumbência.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2.2.5. Com o citado acórdão 280/2015 [do TC], que recolhe as posições do Tribunal Constitucional desde o voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira, cremos ser de concluir que em relação às decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, designadamente direitos, liberdades e garantias, o recurso pode apresentar-se como garantia imprescindível destes direitos, mesmo fora do âmbito penal.
Em suma, pode configurar-se uma situação (que parece ainda não se ter configurado em concreto ao Tribunal Constitucional) em que a violação do direito fundamental ocorra directamente por via de decisão judicial irrecorrível nos termos ordinários determinados pela aplicação da norma do artigo 629.º do CPC. Em tal caso, a aplicação do regime específico da força jurídica dos direitos liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) poderá impor a admissão de recurso, fora das regras da alçada e da sucumbência.
Cremos ser esse aliás o sentido da referência ao recurso ao instituto do amparo [...] constante do voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira.
Ou seja, constituindo garantia imprescindível de defesa contra decisão judicial que afecte directamente direitos fundamentais, deve entender-se admissível outro grau de jurisdição [...]. Mas importa saber como devem interpretar-se os dois requisitos cumulativos, a saber, (i) a natureza dos direitos em causa, ou seja, o que deve entender-se para o caso por direitos fundamentais, e (ii) a afectação directa desses direitos pela decisão.
2.2.6. Sem postergar a dificuldade da delimitação do que deva entender-se por direitos fundamentais, um primeiro critério normativo assenta na consagração constitucional específica assumida no artigo 18.º, da CRP, que os refere aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias enquanto o artigo 17.º estatui que o regime respectivo se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga. Tendo-se presente o âmbito alargado indicado no artigo 16.º da CRP que constitui uma autêntica cláusula aberta de direitos fundamentais [...].
Jorge Reis Novais [In Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, AAFDL, 2007, p. 53], atendendo à materialidade do conteúdo dos direitos no contexto da protecção acrescida a que alude a norma constitucional citada, refere, que o princípio da dignidade humana acaba, assim, por constituir o fundamento material da concepção dos direitos como trunfos [...], porque é dessa igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um conformar autonomamente a sua existência. Ou, mais adiante, a respeito de teses em confronto, em nosso entender, é ainda com base naquela associação fundamental da teoria dos direitos como trunfos à dignidade da pessoa humana que podemos encontrar a resposta [referindo-se à antinomia valor reforçado dos direitos fundamentais e decisão democrática da maioria].
Não se oferecerá dúvida em integrar como direitos fundamentais pelo menos os do título II, capítulo I, da CRP. A Recorrente invoca como violado o direito a alimentos e, em consequência deste, o direito à vida e ao desenvolvimento da personalidade.
Mesmo concedendo uma relação directa entre o direito a alimentos e o direito à vida, o que está em causa neste processo e por isso na decisão impugnada não é o direito a alimentos que foi já apreciado na sua concretização no contexto da criança.
Aliás, a própria Recorrente refere que deve considerar-se como referente a direitos fundamentais qualquer decisão determinativa do direito a alimentos, maxime do respectivo montante.
Ora, num estrito incidente de incumprimento das prestações patrimoniais estabelecidas, não está em causa a determinação do direito a alimentos, sequer quanto ao seu montante, mas apenas a avaliação do cumprimento da obrigação previamente estabelecida.
O que está no caso em causa é averiguar se as violações ao estabelecido quanto a alimentos, que a Recorrente imputa ao Recorrido, se verificam e, verificando-se, em que medida assim acontece. Sob pena de desvalorização do que deve valorizar-se – os direitos fundamentais – não pode considerar-se que estes se encontram envolvidos na questão de saber se o pagamento da despesa com a natação está ou não incluído no determinado quanto a alimentos a prestar pelo Pai. Ou que a averiguação sobre os montantes que em concreto se encontram em dívida e sua medida seja uma questão de direitos fundamentais com o peso e sentido a que acima se aludiu.
Logo por esse primeiro motivo improcederia a excepcionalidade invocada quanto à admissibilidade do recurso.
2.2.7. Mas, admita-se que nos encontrávamos em sede de direitos fundamentais. Teria sido a decisão recorrida a violá-los?
É que não podemos esquecer o segundo requisito da excepcional admissão de recurso que aproxima do tradicional amparo: a violação decorrer directamente da decisão judicial [...].
Tenha-se presente que a fiscalização da constitucionalidade atribuída ao Tribunal Constitucional Português, é uma fiscalização de normas e não de decisões. Nesse sentido, refere Jorge Reis Novais [In Sistema Português de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade, AAFDL, 2007, p. 88]:
(…) no nosso caso o Tribunal Constitucional só está habilitado a proteger os direitos fundamentais dos cidadãos contra intervenções normativas, não contra a acção dos poderes constituídos que se desenvolva por via não normativa. Sem prejuízo da jurisprudência do Tribunal Constitucional, continua o mesmo Autor, alargar esse âmbito de tal modo que não se limita a fiscalizar a constitucionalidade das normas ordinárias quando consideradas objectivamente e em abstracto na sua relação com a norma constitucional, mas arroga-se a competência para fiscalizar a constitucionalidade das normas na concreta interpretação que delas supostamente fez o juiz comum [Idem, p. 132].
No caso, o que se invoca não é que a decisão recorrida seja ela própria violadora de direitos fundamentais. O que a Recorrente entende é que a decisão recorrida se insere num processo em que estão em causa direitos fundamentais, ficando sujeita à admissibilidade de recurso por essa razão.
Prescindindo das situações em que a situação viole outros princípios como o da igualdade ou da confiança, situação que não se verifica in casu, a jurisprudência do Tribunal Constitucional amplamente exposta, apenas considera a exigência de duplo grau (fora das situações de recurso não enquadradas no artigo 629.º do CPC), quando a afectação de direitos fundamentais decorre directamente da própria decisão.
Ora, não é essa a situação dos autos. Eventual afectação de direitos fundamentais, considerada apenas em sede argumentativa, não decorreria da decisão, mas de a mesma decidir no sentido propugnado pelo alegado infractor desses direitos.
Nem se argumente com a norma do artigo 18.º na parte em que se refere à vinculação de entidades privadas com possíveis efeitos reflexos na decisão que alegadamente não atenderia a essa vinculação. Por um lado, porque não se verifica o requisito de afectação directa, por outro, porque não é sentido admissível para a vinculação de entidades privadas o da vinculação directa em termos similares aos dos órgãos do poder público. Por outro ainda, porque o dissêndio não é sobre o direito fundamental, mas sobre a integração de determinadas quantias entre aquelas consideradas na decisão que fixou a obrigação de alimentos.
Veja-se o mesmo Autor [In Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares: do dever de protecção à proibição do défice, Almedina, 2018, p. 181] quando refere que esta questão convoca a de saber qual o enquadramento dogmático mais adequado para a resolução dos conflitos jurídicos entre particulares que envolvem o acesso a bens jusfundamentalmente protegidos (…) qual o tipo e natureza das garantias jurídicas de que os particulares aí devem dispor para se defenderem de ameaças ou lesões de outros particulares.
Pese embora, qualquer que seja a posição assumida, qualquer das teses em confronto não prescinde da mediação de apreciação jurisdicional, remetendo para o carácter mediato da alegada ofensa efectuada pela decisão judicial.
Com o que se conclui que não se encontra verificado nenhum dos requisitos que poderiam autorizar o afastamento do regime do artigo 629.º, mesmo admitindo as situações consideradas pelo Tribunal Constitucional como de exigência constitucional de duplo grau de jurisdição.
Assim, deve ser mantida a decisão da Relatora e rejeitado o recurso por inadmissível – artigo 655.º, n.º 1, do CPC."
[MTS]