"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/03/2020

Jurisprudência 2019 (189)


Herança indivisa;
falta de personalidade judiciária; sanação

 
I. O sumário de RC 24/9/2019 (348/18.8T8FND-A.C1) é o seguinte:

1. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).

2. Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a acção, nela figurando como autora - ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal.

3. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Na prática forense é frequente a intervenção (activa ou passiva) de heranças indivisas como se tivessem personalidade judiciária (v. g.: a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A, representada pela cabeça-de-casal, B; determinada pessoa singular instaura acção declarativa comum contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F e G, “representada por todos os seus herdeiros”, depois devidamente identificados; “Herança Indivisa aberta por óbito de A”, representada pelos seus herdeiros, aí devidamente identificados; ou ainda, numa formulação mais adequada, diversas pessoas singulares, devidamente identificadas, “por si e na qualidade de herdeiros da herança ilíquida indivisa” aberta por óbito de M, instauram acção com processo comum contra certa pessoa singular ou colectiva, pedindo que se declare o direito de propriedade dos autores por si e na qualidade de herdeiros da herança aberta, ilíquida e indivisa por óbito de M. sobre o prédio urbano identificado na petição inicial; etc.).

Resulta inequívoco da alínea a) do art.º 12º do CPC que apenas a herança jacente é dotada de personalidade judiciária, isto é, apenas a herança aberta que ainda não haja sido aceite nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º do CC) goza de tal atributo.

E é entendimento corrente que relativamente a conflitos relativos a herança que já haja sido aceite mas permaneça indivisa devem estar em juízo, consoante a natureza dos direitos em litígio, ou o cabeça-de-casal (art.ºs 2087, 2088º, 2089º e 2090º do CC) ou todos os herdeiros (art.º 2091º do CC).

No entanto, esta questão, nas situações concretas submetidas à apreciação dos tribunais, não tem apresentado resposta única ou unânime, dando-se, nalguns casos, especial relevo à presença na lide daqueles cujo direito ou interesse importa salvaguardar, na prossecução do objectivo de regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, tanto mais que estamos hoje “sob a égide de legislação muito menos tributária de meros e rígidos conceitos formais, em detrimento e com ostracismo dos verdadeiros interesses e valores a que aqueles servem de simples indumentária jurídica” [Cf. o acórdão do STJ de 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1 [...]]. [...]

5. A herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado. [Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310 [...]] [...]

6. Na situação em análise, sem quebra do devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que os autos não fornecem elementos probatórios de que a herança A. tenha sido aceite pelos respectivos herdeiros; inexistindo aceitação expressa da referida herança por parte dos respectivos herdeiros, também não pode sustentar-se, perante os elementos facultados pelos autos, que tal aceitação tenha ocorrido de forma tácita (art.º 217º, n.º 1 do CC), pelo que tal herança jacente é/será, nos termos referidos, dotada de personalidade judiciária. [...]

Mas ainda que se propenda para o entendimento de que a herança-A. não deve ser qualificada de jacente (“herança indivisa” não “jacente”), uma vez que tacitamente aceite pelos respectivos herdeiros (art.º 2046º do CC), no configurado quadro fáctico-jurídico, e convocando, principalmente, os princípios que presidiram às reformas processuais desde 1995/96 até ao presente, sempre será de concluir que, não obstante a herança-A. seja, in casu, desprovida de personalidade judiciária (apenas a herança jacente goza de personalidade judiciária, não extensiva à herança indivisa com titulares determinados) [...], com a intervenção de todos os herdeiros, mostram-se agora salvaguardados os interesses que estes deveriam prosseguir caso a acção tivesse sido por si instaurada; ou seja, estando em causa a protecção dos interesses dos herdeiros da A. e nenhum outro motivo obstando ao conhecimento do mérito da causa, a subsistente excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da A. não poderá/deverá determinar a absolvição da instância (art.º 278º, n.º 3 do CPC), antes devendo os autos prosseguir os seus termos para conhecimento de mérito [...] - entendimento que melhor se explicitará adiante. [...]

8. Como vimos, a herança indivisa pode, conforme os casos, estar em juízo representada pelo cabeça-de-casal ou por todos os herdeiros (art.ºs 2088º, 2089º e 2091º, n.º 1 do CC).

Tendo a acção sido proposta em nome da herança só por um herdeiro que alegou ser o respectivo cabeça-de-casal, atento o respectivo objecto (in casu, sobretudo, o reconhecimento de um direito de servidão de passagem incluído no acervo hereditário), a intervenção de todos os herdeiros, face ao disposto no art.º 2091º, n.º1 do CC (onde se preceitua que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”), assegura de forma eficaz a regularidade daquela representação. [Vide, designadamente, [...] o referido acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1].

9. Esta, de resto, a solução conforme a uma leitura segundo o espírito e filosofia do nosso sistema processual civil.

Se a herança indivisa (mas não jacente) não tem personalidade judiciária e a falta de personalidade judiciária é, por regra, insanável, há que notar, contudo, que a própria lei estabelece, de modo expresso, uma situação em que esse vício pode ser sanado (cf. art.º 14º do CPC [...]).

E também na situação dos autos se poderá considerar que, em bom rigor, não está sequer em causa a sanação da falta de personalidade da herança indivisa, mas sim uma leitura e interpretação da p. i. menos formalista e da qual se poderá concluir que a parte (a autora) não será propriamente a herança, mas sim a respectiva cabeça-de-casal, sendo que a formulação adoptada nestes autos em nada difere da comummente utilizada para identificar a pessoa que propõe ou contra quem se propõe uma acção, quando está em causa uma herança, sem que, habitualmente, se questione a falta de personalidade judiciária, por se entender que, na realidade, a parte na causa é a cabeça-de-casal ou os herdeiros que demandam ou são demandados por questões relacionadas com a herança. [...]

Ademais, reafirma-se, o espírito e a filosofia subjacentes ao actual direito adjectivo também apontam para a conveniência de interpretar a p. i. de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária, dada a circunstância de a acção ter sido intentada pela cabeça-de-casal (ainda que indevidamente se identificando como representante da herança), importando notar que, ainda que a acção exija a intervenção dos demais herdeiros, essa já é questão que se prende com a legitimidade e que facilmente poderá ser corrigida (como foi, porquanto requerida e efectivada a intervenção dos demais herdeiros).

A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, visando que o processo e a respectiva tramitação tenham a maleabilidade necessária para funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes [...], como claramente se evidencia no preâmbulo do DL n.º 329-A/95 de 12/12 [...] e vemos reafirmado e até reforçado no CPC vigente. [...]

11. Face ao que se deixa exposto, nada será de objectar à intervenção principal provocada dos demais herdeiros da herança-A. e da herança que motivou o segundo requerimento de intervenção, assegurando-se, pois, a regularidade de representação (por sucessão) [...] exigida pelo art.º 2091º, n.º 1 do CC [...][...]"
 
[MTS]