"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/03/2020

Jurisprudência 2019 (192)


Litigância de má fé;
alteração da verdade de factos

1. O sumário de RE 10/10/2019 (456/12.9T2STC.E2) é o seguinte: 

I - O direito de preferência previsto no 1380.º, n.º 1, do CC, é um direito legal de aquisição que depende da verificação dos seguintes requisitos: i) - ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) - que o preferente seja dono de prédio confinante com o alienado; iii) - que um dos prédios tenha área inferior à unidade de cultura; iv) - que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante”.

II - O artigo 204.º do CC não se refere ao prédio misto, encontrando-se este conceito definido no artigo 5.º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aplicando-se os princípios da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, em face da principal afectação do imóvel, nada impedindo o exercício do direito de preferência por se tratar de um prédio denominado “misto”.

III - Ainda que se encontrem demonstrados os requisitos positivos do direito de preferência, não pode o tribunal decretar a procedência da acção e, constitutivamente, a aquisição por banda dos AA. do direito de propriedade sobre o prédio objecto da acção, se a constituição do mesmo depende da prévia desanexação de uma parte de um prédio rústico com a área inferior à unidade mínima de cultura, ficando o restante prédio igualmente com área inferior àquela, implicando, por isso, o decretamento do direito de preferência sobre o prédio em causa, a violação de comando legal imperativo, o que constitui obstáculo intransponível à procedência da acção.

IV - O incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé, ainda que o desfecho da acção venha a ser favorável a essa parte.

V - Justifica-se a condenação dos Réus como litigantes de má fé, se os mesmos alteraram intencionalmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento a respeito do negócio celebrado, e tentaram obstar a que se conhecesse, por via do pagamento efectuado e sua data, qual o negócio que quiseram realmente efectuar, tudo fazendo com o fito de tentar obstar ou, pelo menos, dificultar de forma inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei lhes impõe, a descoberta da verdade material e a justa-composição do litígio.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"III.2.3. - Da litigância de má fé

Insurgem-se os Recorrentes quanto à sua condenação como litigantes de má-fé, invocando, em suma, que não foi com base em factos inverídicos que pediram a improcedência da acção, e que a litigância de má-fé, exige de quem pleiteia a consciência de não ter razão.

Vejamos. [...]

As partes devem, em obediência ao princípio da sua auto responsabilidade, praticar os actos indispensáveis e idóneos a fundamentar e desenvolver os seus respectivos posicionamentos em termos de adequação ao fim que visam e de não contraditoriedade com a verdade material, assim devendo agir de acordo com a boa fé, expondo os factos em juízo sem formularem pretensões que sabem ser destituídas de qualquer razoável fundamento [ Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 [...]].

De facto, quer o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional competente, solicitando a abertura de um processo com vista à composição do litígio com emissão de pronúncia final mediante decisão fundamentada, quer o direito de defesa por banda daquele contra o qual a pretensão é deduzida, assenta, dentro do quadro normativo vigente, no respeito por parte daquele que o exerce e daquele que se lhe opõe, dos deveres de probidade e de leal colaboração, de boa fé processual e de recíproca correcção, devidos ao tribunal e à parte contrária, deveres cujo cumprimento e escopo último visam afinal uma pronta, justa e serena aplicação da justiça ao caso concreto. Daí que o legislador tenha entendido, para potenciar a salvaguarda do respectivo cumprimento, sancionar aqueles que adoptam condutas reprováveis à luz daqueles princípios, constituindo o elenco das consagradas no n.º 2 do referido artigo 542.º do CPC, seguramente actuações censuráveis, a merecer reprovação pelos tribunais e que nem sequer estão dependentes do pedido das partes nesse sentido.

Acresce que, a litigância de má fé assenta sobre o comportamento processual das partes, apreciado com base na sua actuação na lide, globalmente considerada, daí que a decisão possa ser alicerçada quer nos factos alegados pelas partes quer ainda em quaisquer outros factos ou actuações que constem dos autos e que evidentemente são do conhecimento das partes podendo consequentemente estas pronunciar-se sobre tal, como ocorreu no caso em apreço e flui da decisão recorrida [...].

Podemos, pois, assentar que, constituindo a má fé um claro limite ao exercício do direito de acção ou de defesa, a conduta das partes só deve ser censurada por via deste instituto quando tenham actuado de forma ilícita em qualquer uma das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 542.º do CPC. Por isso que, não se encontram abrangidas pela previsão da norma as meras situações de discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou na defesa de uma posição que, ainda assim, não se venha a provar, em virtude de a parte não ter conseguido convencer o tribunal da bondade do invocado.

Inversamente, as condutas que integram tais comportamentos censuráveis a título de dolo ou negligência grave, e de lide considerada temerária, são amiúde alvo de condenação pelos tribunais, confirmadas, mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, extraindo-se dos vários exemplos de condenação o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé [...], sendo exemplo de situações consideradas como de correcta condenação por litigância de má fé pelo STJ aquelas em que: “o Autor, durante quase toda a lide, alterou a verdade acerca dos salários auferidos (…), é de considerar que o mesmo não foi apenas confuso e imprudente; foi temerário, actuando na «cobiça» da indemnização a qualquer título querida” [Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção].

Ora, extrai-se de todos estes mencionados exemplos o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé.

Assentes estes princípios e enquadrados pelos exemplos que antecedem, voltemos ao caso dos autos para decidir afirmando desde já que, independentemente do desfecho da acção, a defesa apresentada pelos RR. configura claramente uma actuação intencional e temerária da sua parte, com vista a dificultar o exercício do direito que sabiam poder assistir aos autores.

Louvamo-nos nesta parte no segmento mais relevante da fundamentação da Senhora Juíza, quando referiu que «os RR. DD e EE, ao repetirem, entre o mais, em sede de contestação, que adquiriram por usucapião o prédio objecto do litígio, tal como já o tinham feito na escritura de justificação notarial, vieram apresentar uma versão flagrantemente desconforme à verdade, como notoriamente se verificou em sede de audiência de julgamento quando, nos respectivos depoimentos de parte, confessaram expressamente tal factualidade, conforme resulta da acta da audiência e das assentadas dela constantes.

Por outro lado, tanto estes RR. como o Réu FF tentaram impedir que se conhecesse o valor do preço pelo qual transaccionaram o imóvel, não permitindo o acesso aos respectivos dados bancários, o que apenas foi possível através do incidente, processado por apenso, de levantamento do sigilo bancário. Vieram, porém, em sede de audiência, confessar expressamente o preço da transmissão, mas é notório que, quando o fizeram, não apagaram a má fé processual que já haviam consumado, pois que sabiam ter entorpecido de forma grave a acção da justiça.

Não podiam os RR. ignorar, pois, que as condutas processuais que empreenderam contrariam os deveres de boa fé e honestidade que devem pautar a conduta dos litigantes duma acção judicial».
 
Por isso que, à luz do preceito legal supra citado e dos ensinamentos retirados dos referidos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, a outra conclusão não se pode chegar do que àquela que levou a Senhora Juíza à condenação dos Réus como litigantes de má fé, ou seja, que os mesmos alteraram intencionalmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento a respeito do negócio celebrado, tanto mais que, pelo menos parcialmente os vieram a confessar em audiência, e tentaram obstar a que se conhecesse, por via do pagamento efectuado e sua data, qual o negócio que quiseram realmente efectuar, prosseguindo nessa senda ao persistir na defesa de que apenas quiseram adquirir a parte vedada do prédio, tudo fazendo com o fito de tentar obstar ou, pelo menos, dificultar de forma inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei lhes impõe, a descoberta da verdade material e a justa-composição do litígio.

Ora, em síntese clara do sobredito louvamo-nos no juízo efectuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, onde se afirmou que “as partes, recorrendo a juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas aos deveres de cooperação, probidade e boa fé com o tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à verdade e ao Direito, sob pena de a protecção jurídica que reclamam não ser alcançada, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os tribunais. [...]
 
Uma das condutas em que se exprime a litigância de má fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável. [...]
 
Se é certo que o direito de recorrer aos tribunais para aceder à justiça constitui um direito fundamental – art. 20.º da CRP – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art. 456.º do CPC” [Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção].

Desta sorte, aplicando-se de pleno o que vem de dizer-se ao caso em apreço, conclui-se que os Réus foram, e bem, condenados como litigantes de má-fé, em montante igualmente adequado, posto que, de acordo com o disposto no artigo 27.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, a multa deve ser fixada entre 2 e 100 unidades de conta, tendo sido fixada em 15 UC´s, e a indemnização calculada como sendo adequada a ressarcir os autores por tal facto, em 2.000,00 €."


[MTS]