"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/03/2020

Jurisprudência 2019 (199)


Causa de pedir;
facto complementar


1. O sumário de RG 10/10/2019 (169/17.5T8BGC.G1) é o seguinte:

I. Cabendo às partes alegar os factos essenciais ou principais que constituem a causa de pedir, afigura-se que esta ficou suficientemente individualizada com a alegação pela Autora de que o acidente ocorreu quando o sinistrado se deslocava de carro no âmbito da sua actividade profissional de carpinteiro, tendo saído da sua residência, após o almoço, para trabalhar na sua actividade de carpinteiro, mas, por outro lado, se mostra incompleta, por não estar indicado o local a que na ocasião se dirigia nem o concreto serviço que ia prestar.

II. Assim, o ter-se dado como provado que o sinistrado seguia «com intenção de se deslocar à aldeia de ..., concelho de Bragança, para fazer medições para um orçamento», corresponde a uma complementação ou concretização de factos essenciais alegados pela Autora, resultante da instrução da causa.

III. Do art. 72.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo do Trabalho, mesmo antes da redacção introduzida pela Lei n.º 107/2019, de 09/09, resulta que, por razões consabidas, relacionadas com a natureza dos interesses a acautelar e dos direitos em discussão, muitas vezes indisponíveis, é admissível a utilização pelo tribunal de factos essenciais não alegados pelas partes em termos ainda mais amplos dos que os admitidos pelo Código de Processo Civil, bastando que sejam considerados relevantes para a boa decisão da causa, estando, em contrapartida, bem explicitados o procedimento e as garantias das partes a observar, em ordem ao estrito cumprimento do princípio do contraditório.

IV. Tendo o tribunal recorrido feito uso daquele poder, ao adquirir para o processo factualidade essencial não alegada, mas sem cumprir o indispensável contraditório, cabe determinar a anulação parcial da decisão proferida na primeira instância, nos termos do art. 662.º, n.ºs 2, al. c) e 3, al. c) do Código de Processo Civil, de modo a que seja ampliada a base instrutória e a que seja novamente produzida prova sobre a matéria acrescentada, com observância daquele princípio. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] nos termos do n.º 1 do art. 5.º do mesmo diploma, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, acrescentando o n.º 2 que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
 
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
 
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

Trata-se, agora, do princípio do dispositivo, de acordo com os mencionados autores na vertente de princípio da controvérsia, o qual “(…) traduz-se na liberdade de alegar os factos destinados a constituir fundamento da decisão, na de acordar em dá-los por assentes e, em certa medida, na iniciativa da prova dos que forem controvertidos. O seu aspeto principal consiste em que às partes cabe a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as exceções perentórias. (…)

De acordo com o n.º 2-b, devem ser considerados na decisão os factos principais que, completando ou concretizando os alegados pelas partes, se tornem patentes na instrução da causa. (…) trata-se sempre de casos em que a causa de pedir ou exceção está individualizada, mediante alegação fáctica suficiente para o efeito (diverso é o caso de ineptidão da petição inicial por falta total de factos que integrem a causa de pedir: art. 186-2-a), mas não completa, por não terem sido alegados todos os factos necessários à integração da previsão normativa. Qualquer destes factos integradores da previsão da norma pode surgir em ato de instrução, sendo todos eles entre si permutáveis no papel de complementares: o facto só é complementar por não ter sido inicialmente alegado, não tendo natureza diversa dos que as partes alegaram nos articulados.” [
Lebre de Freitas/I. Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª edição,] p. 14-17].

Nesta conformidade, os princípios do contraditório e do dispositivo ínsitos nos preceitos legais em apreço ditam que, perante os factos principais que sejam complementarmente introduzidos na causa, nos sobreditos termos, deve ser assegurado o direito de resposta da parte contrária àquela a quem aproveitam, bem como, a menos que haja confissão, a possibilidade de a mesma fazer a respectiva contraprova [
Aut. cit., op. cit., pp. 8 e 18].

No caso sub judice, estando em causa um acidente de viação, é por demais evidente que o mesmo não ocorreu quando o sinistrado se encontrava a executar uma tarefa da profissão de carpinteiro, pelo que, para ser tutelado como de trabalho, se impunha que tivesse sido alegado que se verificou no decurso dum trajecto relevante e entre locais relevantes para efeitos do art. 6.º do regime jurídico do seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, aprovado pelo DL n.º 159/99, de 11 de Maio, designadamente no trajecto que o sinistrado tinha de utilizar entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituíam o seu local de trabalho ou o local onde ia prestar um serviço.

Ou seja, nos acidentes in itinere, a causa de pedir não é a verificação dum sinistro na execução do trabalho – núcleo original da tutela jurídica dos acidentes de trabalho – mas a verificação dum sinistro em determinado trajecto que, pela conexão que tem com o trabalho, veio a ser objecto da extensão daquele conceito em consequência da evolução do Direito do Trabalho e das finalidades que lhe subjazem.

Nesta sequência, cabendo às partes alegar os factos essenciais ou principais que constituem a causa de pedir, afigura-se que esta ficou suficientemente individualizada com a alegação pela Autora de que o acidente ocorreu quando o sinistrado se deslocava de carro no âmbito da sua actividade profissional de carpinteiro, tendo saído da sua residência, após o almoço, para trabalhar na sua actividade de carpinteiro, mas, por outro lado, se mostra incompleta, por não estar indicado o local a que na ocasião se dirigia nem o concreto serviço que ia prestar.

Assim, o ter-se dado como provado que o sinistrado seguia «com intenção de se deslocar à aldeia de ..., concelho de Bragança, para fazer medições para um orçamento», corresponde a uma complementação ou concretização de factos essenciais alegados pela Autora, resultante da instrução da causa, porém, às partes, e, em especial, à Ré, sempre deveria ter sido dada a possibilidade de se pronunciarem, nos sobreditos termos, sendo certo que das actas de audiência de julgamento nada resulta nesse sentido.

Acresce que, nos termos do art. 72.º do Código de Processo do Trabalho, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 107/2019, de 09/09, se, no decurso da produção da prova surgirem factos que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve ampliar a base instrutória (n.º 1), podendo as partes indicar as respectivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal, sendo aquelas requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias (n.º 2).

Deste preceito especial do processo laboral resulta que, por razões consabidas, relacionadas com a natureza dos interesses a acautelar e dos direitos em discussão, muitas vezes indisponíveis, é admissível a utilização pelo tribunal de factos essenciais não alegados pelas partes em termos ainda mais amplos dos que os admitidos pelo Código de Processo Civil, bastando que sejam considerados relevantes para a boa decisão da causa, estando, em contrapartida, bem explicitados o procedimento e as garantias das partes a observar, em ordem ao estrito cumprimento do princípio do contraditório.

Como refere Maria Adelaide Domingos 
[Cfr. «Poderes do juiz na discussão e julgamento da matéria de facto», Prontuário de Direito do Trabalho, n.ºs 79-80-81, pp. 309-313], “[n]a fase da audiência de discussão e julgamento, o art. 72.º, n.º 1, do CPT consagra um amplo poder inquisitório, sempre acompanhado pelo princípio do contraditório, traduzido na imposição do dever de aquisição de matéria factual, através do aditamento de novos quesitos, se houver base instrutória, ou apenas através da sua consideração na decisão da matéria de facto, se a base instrutória não tiver sido elaborada.

Este poder cognitivo abrange os factos não articulados, desde que relevantes para a boa decisão da causa e desde que o alargamento factual não conduza ao acrescento de nova causa de pedir e pedido, por força do limite temporal imposto pelo art. 28.º, n.º 2, do CPT.”

E assim é, acrescenta, quer quanto ao conhecimento de factos instrumentais, quer “quanto ao conhecimento de factos essenciais não articulados, isto é, quando a parte não cumpriu na íntegra o ónus de alegação em relação a todos os factos constitutivos do direito invocado, aqueles que constituem o pressuposto da aplicação da lei substantiva, que integram a causa de pedir e fundam o pedido, comprometendo, com essa falta, a procedência da pretensão formulada, quer seja do pedido, da reconvenção ou da excepção invocada (…), obviamente desde que estejam preenchidos os requisitos legais impostos pelo n.º 1 do artigo 72.º, nunca sendo de mais referir a absoluta indispensabilidade do cumprimento do princípio do contraditório [...]

Retornando ao caso dos autos, decorre da tramitação processual havida e que se descreveu que o tribunal recorrido utilizou na decisão da causa – e de modo determinante – factualidade que não tinha sido alegada por nenhuma das partes nem constava da base instrutória, tendo resultado apenas da actividade probatória, designadamente em sede de audiência de julgamento, sem que, todavia, tivesse sido observado o contraditório nos termos prescritos pela citada norma especial constante do Código de Processo do Trabalho – e igualmente impostos pelo aludido art. 5.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil.

Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Fevereiro de 2017, proferido no processo n.º 1758/10.4TBPRD.P1.S1 [...], “[a]dmitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.

Crê-se que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art. 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam.

Em decorrência lógica do que acaba de dizer-se, não parece possível que, sem o acordo das partes, a Relação possa aditar à matéria de facto um facto novo, nos termos do art. 5º, nº 2, al. b), no âmbito da reapreciação da prova, efectuada nos termos do art. 662º do CPC (sem prejuízo de poder anular a decisão, considerando a relevância do facto na apreciação do mérito)." [...]."

[MTS]