"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2020

Jurisprudência 2020 (42)


Actos jurídicos; nulidade;
confissão ficta; admissão por acordo*


I. O sumário de RG 20/2/2020 (976/19.4T8VRL.G1) é o seguinte:

1-As restrições à prova por confissão ficta relativamente aos factos que só documentalmente podem ser provados, previstas nos artigos 364º do Código Civil e 568º, alínea d) do Código Civil, não se aplicam à prova de contratos nulos por falta de forma, porquanto nestes caso não se pretende demonstrar que ocorreu uma declaração negocial qua tale, não se pondo em causa a finalidade pretendida com tais limitações legais.

2- Com a proibição da valoração desse tipo de prova, bem como a prova testemunhal, para considerar a declaração negocial, quando por disposição da lei ou estipulação das partes, a mesma houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, pretende-se salvaguardar o valor que a lei e as partes pretenderam conferir aos documentos, não permitindo que estas, mediante o recurso a um meio de prova menos confiável, contornem tais exigências, o que não ocorre quando se pretende obter a declaração de nulidade de um contrato por inobservância da forma escrita.

3-Porque é impossível que o juiz, ao proferir a sentença ou decisão, conheça de todas as matérias que eventualmente possam ser abordadas em função de um caso concreto, atenta a vastidão do Direito, só se lhe impõe que conheça as que estão controvertidas nos autos e aquelas que a lei mande específica e concretamente emitir pronúncia naquele momento, pelo que não ocorre nulidade da decisão quando esta não aprecia uma questão, ainda que de conhecimento oficioso, que lhe não foi colocada.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3---Da inoperância da revelia para factos em que se exija documento escrito

A tal se refere o artigo 568º, alínea d) do Código de Processo Civil, o qual está intimamente relacionado com o artigo 364º do Código Civil, referente à exigência legal de documento escrito, o qual determina que “quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior. Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.”

Por seu turno, no sentido de impedir a prova testemunhal nestes casos vai também o artigo do 393º nº 1 do Código Civil, (a mesma remete para o artigo 394º do Código Civil) “Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal”.

A Recorrente entende, assim, que não podiam ser dados como provados, por confissão ficta, os factos relativos às declarações negociais em que se traduziu o mútuo verbalmente celebrado, porque o seu valor exigia a forma escrita.

Embora se compreenda a limpidez do raciocínio, o mesmo não colhe.

Ao pretender-se provar a celebração de um contrato nulo por forma não se visa demonstrar que foi reproduzida a declaração de vontade de celebrar um negócio a que se atribui valor contratual. A parte não se propõe provar que ocorreu uma declaração de vontade juridicamente vinculativa do seu emitente, mas, antes pelo contrário, pretende demonstrar que esta vinculação não teve lugar, por falta de forma.

Por outro lado, a razão de ser desta proibição de prova reside no facto de haver que proteger a validade dos documentos escritos: seria perigoso admitir que um meio de prova tão frágil e inseguro como a testemunhal ou uma posterior declaração de uma parte pudesse contrariar a força que é legalmente dada a documento. A admissibilidade da prova testemunhal de acordos contra ou para além do conteúdo do documento, ou sem suporte documental quando este é legalmente exigido, abriria a porta para que qualquer contraente, recorrendo a um meio de prova mais frágil escapasse ao que se obrigara ou deveria obrigar por escrito válido, retirando dessa forma a eficácia aos documentos e à sua exigência.

Da mesma forma, com a proibição da valoração da prova testemunhal ou confissão (entre simuladores) para considerar a declaração negocial quando por disposição da lei ou estipulação das partes, a mesma houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, pretende-se salvaguardar o valor que a lei e as partes pretenderam conferir a tais documentos, não permitindo que as mesmas contornem tais exigências, mediante o recurso a um meio de prova menos confiável, superando todas as vantagens que se pretendem obter com a exigência de forma especial, que passam, também, pela ponderação que é inerente à exigência de maior solenidade na celebração do contrato. (...)

Assim, não se aplicam as restrições probatórias aplicáveis à prova das declarações negociais aos casos em que as afirmações proferidas pelas partes apenas valem como forma de apurar o que determinou uma transferência patrimonial e em que se pretende demonstrar que apesar de terem sido proferidos certos dizeres ou tomados certos comportamentos, estes não valem enquanto declarações de vontade juridicamente vinculantes, por vício de forma.

Não se pretende demonstrar que ocorreu uma declaração negocial qua tale, mas que foram proferidas declarações que não podem valer como tal.

Estas restrições de prova não são, pois, extensíveis à demonstração da celebração de contratos nulos.

Neste sentido é reiterada a posição dos nossos tribunais, citando-se, a título de exemplo, o recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/11/2019 no processo 4013/15.0T8LRS.L1-7, que explica de forma acutilante “A questão que se coloca é, pois, como efetuar a prova de um contrato nulo” citando Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 3ª edição revista e atualizada, 1986, Volume II, pág. 683, em anotação ao artigo 1143º, “As razões justificativas do carácter formal do contrato - tiradas da extrema falibilidade da prova testemunhal - levariam, em último termo, a impedir a produção de testemunhas para prova da entrega de dinheiro e sua consequente restituição ao abrigo da nulidade do contrato. Não se trata, porém, duma consequência forçosa, necessária do regime estabelecido. Concebe-se perfeitamente que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato (sem prejuízo da prova testemunhal da entrega da coisa mutuada), para garantir a observância da forma visada. Aos efeitos da nulidade do mútuo é aplicável o disposto no artigo 289.º, n. 1, e não a doutrina do enriquecimento sem causa (art. 474.º)”.

Nesse sentido, também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 SET. 2007 no processo 07B1963 (https://blook.pt/caselaw/PT/STJ/341898/ ), o acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 11-18-2010, no processo 536/07.2TBFAF.G1 com ampla doutrina e jurisprudência.

*III. [Comentário] a) A RG decidiu bem, mas a argumentação poderia ter sido muito mais simples. 

O que resulta dos art. 568.º, al. d), e 574.º, n.º 2, CPC é que não é possível dar como confessado ou admitido por acordo um facto que deva ser provado por documento, isto é, não é possível substituir a necessária prova documental do facto pela confissão ficta ou pela admissão por acordo desse facto. 

Por isso, se não se trata de dar por confessado ou admitido por acordo um facto que deva ser provado por documento, não se pode aplicar as excepções constantes dos art. 568.º, al. d), e 574.º, n.º 2, CPC. É precisamente o que sucede com o vício de forma que determina a nulidade do contrato, dado que aquele vício não tem de ser provado pelo próprio contrato. O que sucede é que é o próprio contrato celebrado que demonstra o vício de forma de que padece, pelo que nada obsta ao efeito confirmativo desse vício decorrente da confissão ficta ou da admissão por acordo.

b) Generalizando: se o autor invocar uma causa de nulidade do contrato celebrado com o réu (simulação, por exemplo), é claro que, no caso de revelia ou de não impugnação dessa nulidade, não se aplicam as excepções constantes dos art. 568.º, al, d), e 574.º, n.º 2, CPC quanto a essa causa. Note-se, no entanto, que, porque a nulidade é matéria de direito e é de conhecimento oficioso (art. 286.º CC), cabe ao tribunal controlar se o facto confessado ou admitido por acordo conduz à nulidade do acto. 

MTS