"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/09/2020

Jurisprudência 2020 (48)

Advogado;
sigilo profissional


1. O sumário de RE 18/3/2020 (decisão singular) (1071/18.9T8TMR-A.E1é o seguinte:

I.- O dever de cooperação para a descoberta da verdade a que alude o artigo 417.º do CPC, a todos obriga, incluindo as partes, sofrendo, contudo, as restrições enunciadas no n.º 4, onde se inclui o sigilo profissional dos advogados.

II.- Por isso, devem os advogados escusar-se a depor como testemunha relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, como estipula o artigo 92.° do Estatuto da Ordem dos Advogados e o artigo 497.º/3, do CPC.

III.- Deve ordenar-se o levantamento do sigilo profissional do Sr. Advogado quando, estando demonstrado que a prestação do depoimento não viola de forma insuportável direitos fundamentais da A. ou do Sr. Advogado, em contraposição ao direito fundamental que o R. tem de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, como é garantido pelos artigos 18.º/2 e 20.º da CRP e quando é claramente preponderante o interesse na prossecução do interesse público da administração da justiça e da descoberta da verdade.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A relação cliente advogado tem como elemento estrutural, para um bom desempenho da profissão, a confiança que o cliente deposita no advogado, de tal forma que os segredos que o cliente lhe entrega equivalem ao depósito em cofre de que só ele tem a chave.

Este segredo tem um caráter de ordem pública, porque se destina a proteger os interesses da comunidade (não meramente os do advogado ou do cliente), estando vedada a capacidade de fazer prova em juízo se os atos praticados pelo advogado violarem o segredo profissional (artº 92º/5 do EOA).

Em suma, o dever de sigilo tem como finalidade a proteção de direitos pessoais como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da proteção das relações de confiança entre o advogado e o seu cliente; e o dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.

Contudo, até os cofres podem ser abertos e revelado o seu conteúdo por ordem judicial.

E também o pode ser o segredo profissional se assim for fundadamente concluído pela autoridade judiciária competente, desde que finamente ponderados os valores e interesses em causa, fazendo-se prevalecer o que tiver maior relevância/preponderância.

No caso dos autos, está demonstrado que o Sr. Advogado patrocinou a A. em certo momento, mas não a patrocina na presente ação; a parcela de factos objeto do segredo consubstanciam-se numa reunião que terá ocorrido em setembro/outubro de 2014 entre o Sr. Advogado e o R., por iniciativa daquele e no interesse da A.; os factos em averiguação para operar a exceção de caducidade, situam-se em saber, em concreto, se desde setembro/outubro de 2014 a A. sabia que o R. era o seu pai.

Alega-se que o R. terá feito uma reunião com o Dr. (…) em outubro de 2014, altura em que lhe referiu que a A. lhe transmitiu que o pai era o R. e solicitou diligências para indagar sobre o seu paradeiro; estes factos são considerados essenciais para a prova da procedência de exceção perentória da caducidade do direito de propositura da ação, o que equivale por dizer que está apenas em causa averiguar da existência de um direito na esfera jurídica da A..

O que nos leva a concluir que, atendendo à factualidade em concreto, o depoimento não é suscetível de violar a dignidade, direitos fundamentais e interesses do Sr. Advogado nem da A..; que a prestação do depoimento é essencial para se determinar se a A. integra o direito de ação que pretende fazer valer, ou seja, para a descoberta da verdade.

O que implica não estar demonstrado que a prestação do depoimento, acerca destes factos, viole de forma insuportável direitos fundamentais da A. ou do Sr. Advogado, em contraposição ao direito fundamental que o R. tem de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, como é garantido pelos artigos 18º/2 e 20º da CRP, sendo claramente preponderante o interesse na prossecução do interesse público da administração da justiça e da descoberta da verdade.

Repare-se que a reunião ocorreu entre o Sr. Advogado e o R. por iniciativa da A. e, por outro lado, saber o que ali ocorreu é essencial para se saber se a ação deve prosseguir ou soçobrar com absolvição do pedido, não mais podendo ser proposta, a que acresce não estar demonstrado que existe uma outra forma de lograr obter o que pretende o R. por outros meios, o que equivale a dizer que a pretensão do depoimento é imprescindível à realização da Justiça.

Assim sendo, ao abrigo das disposições legais supra referidas, deve ordenar-se a quebra do sigilo profissional.

No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência, Ac. TRC de 23-01-2020, José Manuel Flores, Procº 94/17.0T8AVV-A.G1:

I- O segredo profissional não é um segredo absoluto e inquebrável, mas a razão de ser da sua existência impõe que só em casos excepcionais o advogado o possa quebrar.

II- O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer.

III- A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo, pelo que, a sua falta, importa que este se mantenha.

Ac. TRC de 05-04-2017, Inácio Monteiro, Procº 309/15.9JACBR-A.C1:

I - Por norma aquele que está sujeito ao dever de guardar segredo ou sigilo, obteve conhecimento de factos devido a uma especial relação de confiança com quem lhe presta a informação, justificando-se assim a não divulgação, sem consentimento ou causa justificativa.

II - O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer.

III - O interesse da investigação criminal é preponderante em relação ao interesse protegido pelo sigilo profissional, pelo que se justifica a sua quebra, mediante a prestação dos depoimentos pretendidos."

[MTS]