"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/09/2020

Jurisprudência 2020 (52)


Processo de execução; 
relação cambiária; prescrição


1. O sumário de RL 3/3/2020 (2747/08.4TBOER-C.L1-7) é o seguinte:

I.– A ação executiva foi intentada em 24.4.2008 pelo que ocorreu a interrupção da prescrição no quinto dia subsequente à instauração da execução porquanto, de acordo com a lei aplicável então e com a factualidade provada, não ocorreu qualquer conduta processual da exequente que tenha determinado o atraso na citação da embargante/executada. A citação da executada para além de três anos sobre a data de vencimento da livrança deveu-se a razões de natureza processual atinentes ao regime da ação executiva, em que a penhora precede a citação, não havendo que imputar tal demora à exequente.

II.– A interpretação referida em I, decorrente dos Artigos 323º, nº2 e 327º, nº1, do Código Civil, não viola os princípios da confiança e da segurança jurídica porquanto trata-se de solução normativa estabilizada desde a entrada em vigor do Código Civil, a qual não sofreu alteração legislativa nem é objeto de dissídio jurisprudencial, sendo que do atraso na realização da citação, por via do regime próprio da ação executiva, não pode derivar uma expectativa legítima do executado de que já não terá de arcar com a sua responsabilidade patrimonial.

III.– Não é nulo por indeterminabilidade do objeto o pacto de preenchimento na medida em que se conhecia, ab initio, o montante global do financiamento, os juros e as penas contratuais aplicáveis, sendo certo que foi entregue à embargante cópia do contrato de crédito.

IV.– A inobservância do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais do contrato de crédito e do pacto de preenchimento não gera a nulidade da livrança executada nem a nulidade do pacto de preenchimento porquanto: (i) não faz sentido entender que a embargante, ao subscrever a livrança, não detinha uma noção de que estava a assumir uma garantia ao cumprimento do contrato, de que lhe foi entregue um exemplar, sendo certo que a subscrição da livrança da livrança ocorreu, simultaneamente, com a subscrição do contrato de crédito, assinado pela embargante na qualidade de legal representante da mutuária; (ii) a obrigação do avalista mantém-se mesmo que a obrigação que ele garantiu seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma pelo que, mesmo a ocorrer a exclusão de cláusulas contratuais em decorrência da sua não comunicação à embargante, a obrigação cambiária da embargante não seria afetada por tal exclusão, mantendo a sua autonomia.

V.– A lei cambiária não impõe ao portador do título que antes de acionar o avalista do subscritor lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que o próprio autorizou, sem prejuízo de tal obrigação poder estar prevista no pacto de preenchimento.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante pugna pela procedência da exceção perentória da prescrição da obrigação cambiária porquanto a interrupção prevista no direito substantivo apenas aproveitará ao Embargado, caso este tenha sido diligente ou não lhe possa ser assacada delonga na realização da penhora. Tal não ocorreu porquanto: a exequente primitiva não indicou bens à penhora; não justificou a impossibilidade de cumprir com o previsto no artigo 810º, nº2, al. d) e nº5; apenas em 31.8.2015, é que a embargada apresentou o primeiro requerimento a solicitar a pesquisa concreta de bens.

O tribunal julgou improcedente a exceção, adotando esta fundamentação:

«A livrança dada à execução teve o seu vencimento em 05/12/2007, facto alegado pela exequente e que é confirmado pela data de vencimento aposta na mencionada livrança.

A realização das diligências visando a penhora de bens dos executados cabia, em primeira linha, ao solicitador ou agente de execução que, nesse sentido, empreendeu várias diligências sem sucesso, acabando por proceder á penhora do veículo com a matrícula YY-YY-YY.

Ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente - independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare - ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, sendo irrelevante, para esse efeito, a falta de impulso processual que apenas é imputável ao agente de execução; estando o processo a aguardar, há mais de seis meses, a realização de diligências que são da competência do agente de execução, não poderá concluir-se, sem mais, que a falta de movimento processual é imputável a negligência do exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para este o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento do agente de execução; assim, constatando-se que o processo não apresenta movimento durante um período temporal significativo que seja bastante para concluir que o agente de execução não está a cumprir os deveres inerentes ao cargo, deverá o Tribunal notificar o exequente para requerer o que tiver por conveniente em face desse incumprimento; só a partir desse momento se poderá considerar que o exequente tem a obrigação e o ónus de tomar posição sobre esse incumprimento e que o processo aguarda o seu impulso processual, considerando-se deserta a instância se nada requerer nos seis meses subsequentes. [vide acórdão de 14-06-2016 do TRC, Proc. n.º 500/12.0TBAGN.C1].

Ora, não resulta dos autos de execução que a tardia realização da penhora do identificado veículo tivesse resultado de facto imputável à inicial ou atual exequente, sendo certo que esta última nunca foi notificada pelo tribunal para impulsionar os autos de execução.

Conclui-se, portanto, que, quanto à livrança dada à execução, o prazo de prescrição interrompeu-se cinco dias após a apresentação do requerimento executivo, que ocorreu em 24-04-2008, não mais tendo voltado a correr tal prazo dada a pendência da execução.» [...]

Da factualidade provada resulta que: o requerimento inicial deu entrada em 24.4.2008; em 29.7.2016 foi penhorado o veículo Audi; em data anterior a 29.7.2016 não foi penhorado qualquer outro bem ou direito, apesar das várias diligências empreendidas pelo agente de execução; a embargante foi citada em 23.5.2017 ( factos 1 a 4).

Atenta a versão do Código de Processo Civil vigente à data da propositura da execução, havia uma forma única de execução (Artigo 465º), não havia citação prévia, precedendo a penhora a citação (Artigos 812º, nº7 e 812º-B, nº1), cabendo a realização da penhora ao agente de execução (Artigo 808º, nº1).

Nos termos do Artigo 323º, nº1, do Código Civil, «A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.» E, nos termos do nº2, «Se a citação ou notificação se não se fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.»

A expressão legal – “causa não imputável ao requerente” – contida no nº2 deve ser interpretada em termos de causalidade objetiva, ou seja, quando a conduta do requerente em nada tenha contribuído, em termos adjetivos, para que haja um atraso no ato de citação (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3.7.2018, Ana Paula Boularot, 1965/13, de 19.6.2019, Alexandre Reis, 3173/17). Para o efeito do nº2 conta a data em que o requerimento executivo foi apresentado em tribunal, e não a data do pagamento da quantia devida ao agente de execução, nos termos do nº 6 do art. 724º do Código de Processo Civil (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2019, Rosa Ribeiro Coelho, 1406/16).

Ora, a ação executiva foi intentada em 24.4.2008 pelo que ocorreu a interrupção da prescrição no quinto dia subsequente à instauração da execução porquanto, de acordo com a lei aplicável então e com a factualidade provada, não ocorreu qualquer conduta processual da exequente que tenha determinado o atraso na citação da ora embargante/executada. A citação da executada para além de três anos sobre a data de vencimento da livrança deveu-se a razões de natureza processual atinentes ao regime da ação executiva, em que a penhora precede a citação, não havendo que imputar tal demora à exequente (cf. facto 3; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.1.2019, Rosa Tching, 524/13). Tendo a livrança como data de vencimento 5.12.2017, infere-se que não decorreu o prazo de prescrição de três anos (Artigos 70º e 77º da LULL).

Nos termos do Artigo 327º, nº1, do Código Civil, «Se a interrupção resultar da citação, notificação ou ato equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.» Resulta deste preceito que, uma vez interrompida a prescrição, nada releva o facto de, no seguimento dos autos, o exequente – por hipótese – haver descurado ulteriormente a realização da citação (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.3.1992, José Magalhães, 081416).

Argumenta a apelante que a interpretação feita pelo tribunal a quo das disposições conjugadas dos artigos 70º, 77º da LULL, 323º, nº2, e 327º, nº1, do Código Civil, é manifestamente ilegal e inconstitucional porque violadas dos princípios da segurança e da confiança jurídica, sendo o instituto da prescrição a consagração normativa de tais princípios.

O principio da confiança postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.3.2007, Sebastião Póvoas, 07A760). O princípio da confiança, intrinsecamente ligado aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, tem como finalidade proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nascem no cidadão, que confiou na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.6.2012, Oliveira Vasconcelos, 506/10). Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, «o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afetações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar» (Acórdãos nos. 303/90, 628/98, 862/2013, 572/2014). [...]

Posto isto, é manifesto que a interpretação acima feita dos artigos 323º e 327º do Código Civil não bule com os invocados princípios da segurança e confiança jurídica. Com efeito, trata-se de soluções normativas estabilizadas desde a entrada em vigor do Código Civil, as quais não sofreram alteração legislativa nem são objeto de dissídio jurisprudencial, sendo que do atraso na realização da citação por via do regime próprio da ação executiva não pode derivar uma expectativa legítima do executado de que já não terá de arcar com a sua responsabilidade patrimonial."

[MTS]