Da prova documental resulta provado o seguinte:
Por óbito de M[1]... e marido L... procederam os herdeiros à partilha por escritura pública de 21/3/1996, sendo o único bem relacionado o prédio urbano inscrito no art..., adjudicado à interessada M[2]..., pelo valor de 3.500.000$00. [...]
A Ré M[2]... é irmã do falecido M[1]...Em 2 de Abril de 1996, A... [por si e na qualidade de gestor de negócios da esposa M[2]] e M[3]... outorgaram o documento de fls. 18, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, tendo por objecto o prédio urbano inscrito na matriz sob o art..., adjudicado à M[2]..., pelo preço de 7.000.000$00, declarando-se que “o mencionado preço foi integralmente pago pelo 2º outorgante ao 1º nesta data”. [...]
Conforme fundamentação, a sentença justificou no essencial com os depoimentos indirectos das testemunhas ...:
“Ora, analisando a maioria dos depoimentos, temos que grande parte deles constituem depoimento indirecto, quanto à partilha e pagamento do preço por parte do falecido marido da AA. No entanto, tendo em conta que quer o marido da AA, quer o RR já faleceram, na ausência de prova directa quanto aos factos, temos de reconhecer que a prova apenas é possivel de efectuar admitindo o depoimento indirecto, ou seja, aquele em que uma testemunha tem conhecimento de um facto mediante o que lhe transmitiu um terceiro, através de uma representação oral, escrita ou mecânica, não provindo o conhecimento da testemunha sobre o facto da sua perceção sensorial imediata. (…)
Atento o exposto, entendemos que os depoimentos supra referidos quanto reportados ao ouvir dizer pelo falecido marido da AA merecem credibilidade e devem ser considerados para consideração dos factos provados e não provados. Acresce que tais depoimentos não foram postos em causa por outra prova testemunham directa ou indirecta e são consentâneos com o teor dos documentos juntos, mormente a escritura de partilha de fls. 127v e ss. outorgada em 21 de Março de 1996 e o contrato promessa de partilha junto a fls. 18, datado de 2 de Abril de 1996, de onde consta expressamente, para além do mais, que “o preço global da compra e venda aqui ajustada é de 7.000.000$00 (sete milhões de escudos)” e “o mencionado preço foi integralmente pago pelo 2.º outorgante ao 1.º nesta data”. Por outro lado, tal é consentâneo com a afirmação de que a casa sempre foi considerada como “ a casa do M...”, sendo que os RR não efectuaram qualquer prova de que o contrato que pretendiam celebrar tinha outra natureza ou objectivo.”
Do documento particular de fls.18 consta que o preço global é de 7.000.000$00, e que “o mencionado preço foi integralmente pago pelo 2º outorgante ao 1º nesta data”.
Os Réus defenderam-se, além do mais, com a simulação do contrato promessa de compra e venda, alegando tratar-se de um contrato simulado, pois que as partes nunca tiveram a intenção de vender e comprar o prédio, e que dissimula um contrato de comodato, ou seja, tal foi o meio escolhido para garantir ao M[3]... (irmão da M[2]... e cunhado do A...) a possibilidade de residir na casa, caso algo lhe acontecesse e que os herdeiros do R marido não pudessem reclamar o imóvel (cf. arts. 20 a 25, 27 da contestação ).
Estes factos foram impugnados na réplica, revelando-se controvertidos, mas não estão incluídos nos temas da prova, nem foram objecto de cognição pelo tribunal.
Tratam-se [sic] de factos relevantes para a decisão da causa, pois questiona-se, desde logo, a validade do contrato promessa de compra e venda, pressuposto da pretensão dos Autores (execução específica e subsidiariamente a resolução e devolução do sinal em dobro).
Na verdade, é indispensável saber em que contexto foi outorgado o contrato promessa e qual a intenção das partes outorgantes, tanto mais haver sido alegado um relacionamento pessoal e dependência financeira do M[3]... em relação à irmã.
Por isso, ocorre erro de julgamento por vício da deficiência, a implicar a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto (art.662 nº 2 c) CPC)
Esta norma confere à Relação poderes de cassação (“anular a decisão proferida na 1ª instância… “), embora se entenda que o poder rescisório ou cassatório é subsidiário dos poderes de reexame dos factos, pois só assim será se não constarem do processo todos os elementos que permitam a alteração (“quando, não constando do processo todos os elementos que , nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto “ ).
Daí que se questione quando é que que constam do processo todos os elementos que impliquem a alteração de facto, e, por essa, via solucionar o vício na Relação.
O nº 1 do art. 662 CPC apenas enuncia os elementos que podem impor decisão diversa, e, por consequência, alteração de facto: os factos assentes, a prova produzida e documento superveniente.
Uma vez que a factualidade omitida não está logicamente assente, resta apurar se a “prova produzida “permite a alteração, e, por consequência, o reexame, em vez da anulação.
A prova produzida foi a documental e a testemunhal, gravada em audiência. Contudo, para o poder de substituição ou de reexame não basta a mera gravação prova testemunhal, sem qualquer indicação ou individualização, pois de outro modo tal implicaria uma audição integral e indiscriminada.
Quando o nº 2 c) do art. 662 remete para o nº 1 refere-se a todos os elementos que “permitam a alteração da decisão proferida, sobre a matéria de facto”, pressupondo logicamente a respectiva individualização ou discriminação, e que os depoimentos tenham incidido sobre todos os factos.
Note-se que, sendo a Relação chamada a apreciar a prova testemunhal, a lei impõe ao recorrente o ónus de especificação (tanto o ónus primário, como o ónus secundário), e se é assim para a impugnação, também o deve ser por maioria ou identidade de razão para o reexame com vista a solucionar o vício da deficiência.
Por outro lado, se a Relação pode oficiosamente reenviar o processo para fundamentação da decisão de facto, mesmo na situação em que os depoimentos estejam gravados ou registados (cf. alínea d) do nº 2 do art. 662), significa que a lei determina que nestes casos não se procede ao reexame (por falta da individualização). Ou seja, se estando a prova gravada quando falte ou seja insuficiente a fundamentação a lei impõe o reenvio, e não o reexame, então o mesmo terá que suceder, por maioria de razão, para a correção do erro de julgamento motivado por um dos vícios, e sobretudo quanto ao vício da deficiência. É que implicando o vício da deficiência a ampliação dos temas da prova, o reexame na Relação importaria a privação do contraditório, do direito à prova quanto aos factos omitidos e a proibição do duplo grau de jurisdição.
Deste modo, impõe-se a anulação do julgamento para ampliação dos temas de prova sobre os factos alegados nos arts. 20 a 25, 27 da contestação, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso."
*3. [Comentário] a) Salvo melhor opinião, o acórdão da RC poderia ser muito mais claro.
b) O disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC contém duas regras:
-- A Relação pode anular a decisão da 1.ª instância quando, não constando do processo do processo todos os elementos que, nos termos do n.º 1 do art. 662.º CPC permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto;
-- A Relação pode anular a decisão da 1.ª instância quando considere indispensável a ampliação da decisão sobre a matéria de facto.