"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/09/2020

Jurisprudência 2020 (50)


Oposição à penhora; omissão de acto devido;
nulidade da decisão


1. O sumário de RL 3/3/2020 (17732/11.0T2SNT-A.L1-7) é o seguinte:

I– O incidente de oposição à penhora previsto no artigo 784º do Código de Processo Civil deve assentar nos fundamentos enunciados no n.º 1 desse normativo legal, entre eles, a inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela tenha sido realizada, e a sua procedência determina o levantamento da penhora, como estatui o n.º 6 do art.º 785º do Código de Processo Civil.

II– Atento o princípio da proporcionalidade da penhora, que decorre do disposto no artigo 735º, n.º 1 do Código de Processo Civil, esta pressupõe uma adequação entre meios e fins, o que significa que não devem ser penhorados mais bens do que os necessários para a satisfação da pretensão exequenda, não devendo ser causado ao executado um dano ou um prejuízo superior ao necessário para a execução da obrigação.

III– O indeferimento liminar assenta no princípio da economia processual com vista a evitar o dispêndio inútil de actividade judicial; a manifesta improcedência do pedido a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 732º do Código de Processo Civil corresponde a situações em que é evidente que a pretensão não pode proceder por ser manifestamente inviável ou inconcludente, tornando inútil qualquer instrução e discussão subsequente.

IV– Compete ao executado/oponente o ónus de alegar os factos concretos que traduzam o preenchimento de determinada categoria de impenhorabilidade ou, quando invoque a violação do princípio da proporcionalidade da penhora, a existência de outros bens penhoráveis que possam satisfazer integralmente o crédito exequendo no lapso de tempo previsto na lei.

V– Porque o incidente de oposição à penhora tem natureza declarativa e segue a tramitação prevista nos artigos 293º a 295º do Código de Processo Civil (por força do estatuído no artigo 785º, n.º 3 deste diploma legal), a analogia das situações justifica a aplicação do disposto no artigo 590º, n.º 4 daquele Código, pelo que, tendo sido alegada a base factual essencial para a pretensão de levantamento e/ou redução da penhora, deveria o tribunal recorrido ter proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de oposição à penhora, omissão que justifica a anulação da decisão de improcedência baseada na falta de alegação de factos considerados necessários à procedência da pretensão.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] o incidente de oposição à penhora tem natureza declarativa e por força do disposto no art. 785º, n.º 2 do CPC, segue a tramitação prevista nos art.ºs 293º a 295º do mesmo diploma legal.

Ainda que esta tramitação não contemple norma idêntica à que decorre do vertido no n.º 4 do art. 590º do CPC, não deixará esta de aqui colher aplicação, porquanto, embora os incidentes não constituam processos especiais[...], conduzem à aplicação das normas do processo comum nos casos omissos, sempre que a analogia das situações o imponha – cf. art. 549º, n.º 1 do CPC; J. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 475.

No que às imprecisões na exposição da matéria de facto diz respeito, o n.º 4 do art. 590º do CPC determina que “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”

Trata-se de um verdadeiro dever legal do juiz – despacho de aperfeiçoamento vinculado – no sentido de identificar os aspectos que importa corrigir.

Mas o convite ao aperfeiçoamento dos articulados, previsto para situações de imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência e, bem assim, para peças com teor conclusivo, pressupõe sempre que estas contenham um quadro factual mínimo, pois que se torna necessário que a causa de pedir da pretensão nela esteja individualizada.

Como referem A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 679:

“O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do art. 590º, n.º 4, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar, ex novo, um quadro fáctico até então inexistente ou de todo imperceptível (o que, aqui, equivale ao mesmo), restrição que, aliás, também decorre do art. 590º, n.º 6.”

No mesmo sentido propende a essencialidade da doutrina e jurisprudência, ou seja, o juiz só pode convidar a parte a corrigir a exposição ou concretização da matéria de facto quando esta tenha a densidade suficiente para constituir uma causa de pedir inteligível – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, 2018, Volume II, pág. 109.

Note-se que há insuficiência da causa de pedir quando os factos, apesar de terem sido alegados, são insuficientes para determinar a procedência da acção. Ou seja, não é o núcleo essencial da causa de pedir que está em falta, mas sim a aclaração ou correcção de factos essenciais ou o aditamento de factos complementares.

Em consonância com o acima expendido, face àqueles que foram os fundamentos aduzidos pelos opoentes, à sua clara invocação da suficiência da penhora incidente sobre o imóvel descrito sob a verba 1) do auto de penhora de 28 de Novembro de 2018 e, bem assim, da penhora que recaiu sobre as pensões de reforma para assegurar o pagamento da quantia exequenda ainda em dívida e na ausência de concretização de qual seja o valor em falta e de quais os montantes já arrecadados para os autos por via da penhora das pensões e de depósitos bancários, estavam reunidas as condições para justificar, não só a averiguação oficiosa pelo tribunal recorrido dos valores já penhorados e da quantia em falta, mas também o convite dirigido aos opoentes para concretizarem qual o valor que atribuem aos imóveis penhorados para efeitos de concluírem, como fazem, que o imóvel descrito em 1) é suficiente e que a penhora da sua casa de habitação (verba 2)) extravasa aquilo que é necessário para o pagamento da dívida exequenda, em violação do disposto no art. 735º, n.º 1 do CPC – cf. no sentido da admissibilidade do convite ao executado para corrigir o seu requerimento de oposição à penhora, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pp. 296 e 297 mencionado por Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pág. 380, nota 1348.

A omissão de tal despacho inquina necessariamente a decisão de indeferimento liminar que veio a ser proferida, pela singela razão de que esta se louvou, precisamente, na falta de concretização do valor atribuído aos bens penhorados sem ter concedido aos executados a oportunidade de corrigirem o seu requerimento.

Sabe-se que a jurisprudência tem vindo a considerar que nas situações de causa de pedir deficiente, a omissão do dever de formular convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, no sentido de a completar com a alegação ou explicitação dos factos necessários a “completar” a causa de pedir se situa “a montante”, isto é, no momento em que é omitido o exercício do poder-dever de formular o convite ao aperfeiçoamento, concluindo, desse modo, pela verificação de uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, n.º 1, segunda parte do CPC.

Diversamente, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa sustenta que a omissão do despacho de aperfeiçoamento não origina, em si mesma, uma nulidade processual, mas antes uma nulidade da decisão sempre que a deficiência do articulado constitua o fundamento em que se baseia o tribunal para julgar improcedente o pedido, o que fundamenta do seguinte modo:

“A omissão do convite ao aperfeiçoamento não gera, em si mesma, nenhuma nulidade processual. Para confirmar esta asserção, basta pensar em dois casos:

– Ainda que fosse dirigido o convite ao aperfeiçoamento e a parte correspondesse a esse convite, o pedido formulado pela parte haveria sempre de ser julgado improcedente com base numa excepção de conhecimento oficioso (como, por exemplo, a nulidade ou a caducidade) ou com base na falta de qualquer fundamento possível de procedência daquele pedido; se o tribunal vier a considerar, no despacho saneador ou na sentença final, o pedido improcedente, não há motivo para se entender que a omissão do convite ao aperfeiçoamento constitui uma nulidade processual, dado que não foi a omissão desse convite e a consequente falta de supressão das deficiências do articulado que determinaram a improcedência do pedido;

– Ainda que, num juízo objectivo, se possa considerar que o articulado é deficiente, o tribunal assim não entendeu e proferiu uma decisão de procedência sobre o pedido da parte; também neste caso não há razão para se considerar que foi cometida uma nulidade processual, dado que da omissão do despacho de aperfeiçoamento não decorreu nenhuma consequência desfavorável para a parte.

Do exposto parece poder concluir-se que a nulidade que decorre da omissão do despacho de aperfeiçoamento não é absoluta, mas apenas relativa e circunstancial: afinal, tudo depende da relevância que a deficiência não suprida pela falta daquele despacho venha a assumir na decisão do pedido. Como os exemplos acima referidos demonstram, tanto uma decisão de improcedência, como uma decisão de procedência é susceptível de justificar a conclusão de que a omissão daquele despacho não constitui nenhuma nulidade processual.

Dito de outro modo: a nulidade resultante da omissão do despacho de aperfeiçoamento só se verifica se, na apreciação do pedido da parte, for dada relevância à deficiência do articulado, ou seja, se o pedido formulado pela parte for julgado improcedente precisamente com fundamento naquela deficiência.

Se assim é, então não pode concordar-se com a afirmação de que “o vício está a montante, na omissão do despacho, que não a jusante, no conhecimento do que poderia ter sido suprido caso tal omitido despacho tivesse sido proferido…e correspondido.” Como se procurou elucidar, a omissão do despacho de aperfeiçoamento não constitui, em si mesma, um vício processual: o vício que pode decorrer daquela omissão é apenas circunstancial, dado que só ocorre se a deficiência do articulado for utilizado como fundamento da decisão do tribunal. É por isto que não parece desacertado concluir que a omissão do despacho de aperfeiçoamento se traduz num excesso (circunstancial) de pronúncia: sem o proferimento desse despacho, o tribunal não pode considerar improcedente o pedido da parte com base na deficiência do seu articulado […] Em contrapartida, tendo proferido despacho de aperfeiçoamento, o tribunal está em condições de considerar improcedente o pedido formulado pela parte com fundamento nas deficiências do seu articulado.

Em suma: a omissão do despacho de aperfeiçoamento não origina, em si mesma, uma nulidade processual, mas antes uma nulidade da decisão se (e apenas se) a deficiência do articulado constituir o fundamento utilizado pelo tribunal para julgar improcedente o pedido formulado pela parte.” – cf. Blog do Instituto Português de Processo Civil, 19/01/2015 - A consequência da omissão do convite ao aperfeiçoamento: um apontamento [...].

Todavia, no essencial, importa reter que a omissão do dever de formular convite ao aperfeiçoamento conduz à nulidade da decisão final de improcedência quando esta é motivada pela deficiência do articulado, como se verifica no caso em apreço.

Face ao explanado, considerando que a nulidade decorrente da omissão do convite ao aperfeiçoamento se revelou com a prolação da decisão de indeferimento liminar que conclui pela manifesta improcedência da oposição à penhora por falta de concretização dos factos necessários para se aferir se os bens penhorados excedem o necessário para satisfazer a quantia exequenda, há que reconhecer que a decisão, conhecendo do mérito da pretensão sem conceder a oportunidade da correcção do articulado, aprecia a questão num momento em que estão em falta factos complementares relevantes para uma correcta análise da pretensão, o que justifica, também por esta razão, a sua anulação para ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 662º, n.º 2, c) do CPC.

Em consequência, impõe-se anular a decisão recorrida, devendo o Tribunal a quo praticar os actos instrutórios omitidos, averiguando o valor da quantia exequenda ainda em dívida e dos montantes pecuniários penhorados e/ou entregues ao exequente e proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento, a fim de que os opoentes esclareçam, designadamente, o valor que atribuem aos imóveis penhorados, em conformidade com o acima explanado."

*3 [Comentário] Sobre o problema cf., por último, Jurisprudência 2019 (242)).

MTS